segunda-feira, 8 de julho de 2013

César Deve Morrer



















Trágica Liberdade

A peça teatral Júlio César, de William Shakespeare, é levada ao cinema pelos irmãos octogenários Paolo e Vittorio Taviani, 81 e 83 anos respectivamente, para ser encenada por um grupo de presidiários selecionados pelo teatrólogo Fábio Cavalli, também responsável pela montagem de A Divina Comédia, de Dante Alighieri. César Deve Morrer teve como cenário a prisão de segurança máxima Rebibbia, em Roma, conduzido pelos irmãos cineastas que fazem um belo e sensível registro documental ao ficcionar o enredo trágico numa adaptação magistral para as telonas escuras. Foi vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2012.

O formato é uma mescla de entretenimento com elementos tipicamente documentais para o ensaio e a apresentação de homens perigosos de um presídio hermético. Homicidas, traficantes, mafiosos e ladrões de alta periculosidade são os rostos que comporão aquela espetacular encenação de atores amadores recrutados entre facínoras, com uma abordagem pertinente aos travestidos intérpretes, como a busca da liberdade contrapondo com a cena final da clausura e a volta à realidade tristemente dolorosa deste painel humano.

A tirania de César com a consequente traição de Cássio e do próprio filho Brutus causam a revolta de Marco Antônio na defesa do império, originando a grande batalha final na montagem para o teatro filmado, mas sem se afastar da linguagem e o fascínio do cinema, com um cenário único como visto recentemente no extraordinário Amor (2012) de Michael Haneke; ou no bom filme Deus da Carnificina (2011), de Roman Polanski; ou ainda no magnífico Vocês Ainda Não Viram Nada!, de Alain Resnais. É bem original a jogada cênica, como foi também intuitiva a criação de Eduardo Coutinho em seus documentários Jogo de Cena (2006) e Moscou (2009). Há criatividade e o resultado é uma obra profunda e notável em todos os seus aspectos, como nos seus similares.

Outro ponto abordado com sabedoria é a ambição, mencionada várias vezes e se misturando com a liberdade de um povo e com o pedido do imperador para colocar fogo não só em Roma, mas no mundo, pela explosão de seres oprimidos e sem voz que buscam no grande testamento a saída para a libertação e o fim das amarras que prendem os súditos sofridos e esmagados pela opressão.

O clássico é na realidade mais uma busca pela desconstrução do que uma adaptação simples, como admitido pelos cineastas ao receberem o Urso de Ouro. Retrata o filho matando seu pai para satisfazer os senadores romanos contrários ao poder totalitário do imperador. É sintomático o arrependimento e o desespero na cena do epílogo, diante da busca enlouquecida de um voluntário para pôr fim no martírio do parricídio abjeto e imperdoável que leva às ruas uma multidão à procura dos traidores, diante da tragédia e a busca obstinada pela redenção.

Ao se optar pelo preto e branco na fotografia, há uma aproximação bem maior com o realismo cênico daquela fortaleza com suas celas e corredores inexpugnáveis, sem glamourizar com cores e cenários deslumbrantes, dando com precisão o sentido claro e verossímil para o olhar atento do espectador. Há uma evidente semelhança como tom de documentário no prólogo que vai se dissipando com o desenvolvimento da trama, deixando a dramaticidade na sua essência abranger o filme, secundado por uma magistral trilha sonora conduzir com suspense equilibrado no magnífico acabamento estético dos diretores de Pai Patrão (1977) e A Noite de São Lourenço (1982), inspirados pelo neorrealismo do cineasta italiano Roberto Rossellini, de Roma, Cidade Aberta (1945) e Paisá (1946).

César Deve Morrer traz uma reflexão fabulosa sobre os encarcerados atuando na amplitude das cenas em contraste com os ensaios levados com extremo rigor e profissionalismo. Uma ficção que se aproxima de uma realidade bem próxima, por ser contemporânea dentro de um presídio com a tentativa da ressocialização de marginalizados como um grande projeto criminal, levando a cultura aos detentos e refletindo sobre a ambição que desemboca na traição, bem como a tirania que torna a liberdade numa catarse explosiva pelo anseio obstruído na garganta. E lá fora existe a ideia de uma nova vida esperando, como num tormento que persegue aqueles homens fantasmas.

Nenhum comentário: