Ironicamente o primeiro longa-metragem totalmente rodado na
Arábia Saudita que não tem salas de cinema, vem com a assinatura de uma mulher.
O ineditismo foi quebrado pela diretora Haifaa Al- Mansour, que buscou recursos
financeiros na Alemanha para realizar O
Sonho de Wadjda, neste sensível libelo feminino contra a opressão machista
diante da posição da mulher num papel meramente secundário, sem nenhum poder de
interferência ou tentativa de marcar posição na sociedade muçulmana dominada
eminentemente pelos homens, onde tudo converge para agradar seu Deus (Alá), revelado
ao profeta Maomé, onde a liberdade é tolhida e os direitos são normalmente
submetidos às leis e dogmas religiosos ditados e seguidos rigorosamente pelos
mandamentos do Alcorão, o livro sagrado do Islã.
Numa linguagem simples, mas eficiente e com um poder de fogo
potente, a cineasta reflete a condição feminina precária, sem voz e que vive de
sonhos e ilusões, como a protagonista Wadjda (Waad Mohammed- de atuação
magnífica para uma atriz infantil), uma garotinha de 12 anos como qualquer
outra, que quer brincar, ter uma bicicleta para passear- seu sonho maior-,
andar com o rosto descoberto de lenços e burcas. Busca com intensidade viver
uma pré-adolescência saudável, mas é vista como revoltada e fora dos princípios
religiosos ditados em seu país, pois frequentemente esquece por distração das
convenções. Ao entrar num concurso sobre Alá para obter o prêmio máximo em
dinheiro, terá nova decepção e outro golpe na sua infância lhe será aplicado.
Até a legítima causa da Palestina soará contraditória,
embora nem tenha noção da absurda decisão da diretora da escola. A liberalidade
da menina não é vista com bons olhos pela cúpula diretiva e haverá de certa
forma retaliações futuras. Porém tem a solidariedade e o ombro do seu amiguinho
dócil e carismático. Na mesma posição desafiadora do sistema está a mãe de
Wadjda (Reem Abdullah), ao enfrentar até as últimas consequências, na tentativa
de conquistar o pai de sua filha, com a tênue esperança de se casar com ele.
Sua luta é difícil, pois encontra vários obstáculos para ingressar no sistema
patriarcal enraizado. Tanto a mãe como a filha sofrem muito com a rejeição à
figura da mulher, mas há o toque sutil de Al- Mansour com seu olhar pelo ponto
de vista feminino, sem partir para o confronto ou colocar uma dualidade de
choque de ideias e posições naquela sociedade estereotipada.
Não dá para se exigir num primeiro momento uma posição cabal
ou uma reivindicação mais aprofundada, tendo em vista as dificuldades para a
realização da obra. Ainda assim, apesar da intolerância do regime, o filme
atinge seus objetivos e mexe com o púbico, ao alertar para a dura realidade
conservadora machista ali instalada. As mulheres são vistas como seres de uma
subespécie, onde as rédeas do comando estão concentradas nas mãos dos homens,
sem nenhuma abertura ou concessão, exceto nas denúncias esporádicas que surgem
pelo cinema.
A cineasta é promissora e demonstra intimidade com a câmera
e possibilita um elenco leve, deixando o filme fluir através da espontaneidade
dos atores amadores infantis com desempenhos acima da média. Tanto o roteiro
como própria estética simples de filmar com naturalidade, voltada
essencialmente paras as coisas do cotidiano, são muito semelhantes aos
consagrados diretores iranianos, tais como Abbas Kiarostami com Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Jafar
Panahi em O Balão Branco (1995)
e O Círculo (2000) e Asghar Farhadi
com A Separação (2011).
O Sonho de Wadjda é o início de uma proposta para romper a barreira da passividade feminina, diante do claro e inequívoco relato sobre as meninas criadas e educadas para o casamento imposto, sem se importar com seus sentimentos ou desejos de escolha. A missão é viver passivamente, sem contrariar jamais, sob a ameaça constante de estar infringindo o Alcorão e desagradando Alá. Um filme apreciável e surpreendente pela qualidade de um resultado emblemático e com autonomia pela busca da dignidade e da delicadeza das personagens femininas em seu conteúdo de protesto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário