quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Curvas da Vida



Reconciliação Familiar

Robert Lorenz estreia atrás das câmeras com Curvas da Vida, dirigindo Clint Eastwood no papel bem construído de Gus, um caçador de talentos para um clube de beisebol de Atlanta, que está envelhecendo e corroído por uma cegueira parcial, mas não quer parar e ainda acha que tem muito para dar. Eastwood está com 82 anos e foi dirigido pela última vez em Na Linha de Fogo (1993), de Wolfgang Petersen. Nestes últimos 20 anos sempre atuou e dirigiu, tendo Lorenz entre tantos que colaborou e produziu os longas Menina de Ouro (2002), Além da Vida (2010) e J. Edgar (2011).

O drama retrata a relação entre Gus, um pai ausente e complicado, com a filha Mickey (Amy Adams), uma advogada promissora que acabara de ingressar numa grande sociedade, perde espaço e cria um desgaste na empresa, ao afastar-se para cuidar do pai e acompanhá-lo discretamente em mais uma jornada de trabalho na Carolina do Norte. Há um conflito familiar com marcas do passado quando faleceu a mãe, tinha somente 6 anos e Gus deixou-a com um tio distante e sem dar explicações, numa situação que para ela era insólita. Teve transtornos emocionais e frequentou por muitos anos sessões de terapia, decorrentes do fato atípico para uma criança que vê a mãe morrer tão cedo e o pai sumir.

O protagonista é um bronco e ranzinza ao melhor estilo de Eastwood, como bem caracterizado em Walt Kowalski, um velho polaco veterano de guerra, no filme Gran Torino (2008). Não aceita conselhos de ninguém, sequer do melhor amigo Peto (John Goodman) e muito menos da filha. O longa mostra um personagem envelhecendo que não aceita e se nega a administrar a terceira idade, acarretando em problemas profissionais complicados, como a própria prorrogação do contrato que está por expirar em 3 meses. Mas o filme não é só problemas, pois a garota conhece um ex-jogador (Justin Timberlake) descoberto pelo pai, mas por problemas físicos abandonou a careira e sonha ser um grande narrador. Logo dá a liga e o namoro engata e é saudado com satisfação pelo sogrão, que zela da filha agora como não cuidara quando criança.

Curvas da Vida mostra uma filha de nariz empinado e teimosa, igual ao pai, onde o relacionamento da advogada com o velho sorumbático começa a se decifrar, após várias tentativas de aproximação por parte dela, onde o enigma da infância é relatado de forma simples e sem maiores emoções decorrentes de traumas possíveis, como se tudo fosse um fato corriqueiro e sem consequências. A confissão e os esclarecimentos são fundamentais para o reatamento da confiança e do vínculo entre os dois.

Lorenz mostra discreta inspiração e uma profundidade rasa na abordagem do tema proposto. É um filme denominado drama, mas está mais para uma comédia dramática familiar com algum gosto, embora o pouco tempero no sabor, ao melhor estilo americano de happy end. É para ser assistido sem muito compromisso, desde que não seja levado com relevância, pois nem o novo e desastrado olheiro conseguiu desbancar o cavaleiro solitário de suas andanças pelos campos de beisebol. Ver Eastwood com o rosto empedernido, soltando um discreto sorriso após um choro compulsivo no cemitério, sempre é salutar, ainda mais que ele anunciara a aposentadoria recentemente, mesmo que numa película de um roteiro sem nenhuma inovação, com uma boa fotografia. Tudo bem simplesinho, previsível da primeira até a última cena, sem metáforas, alegorias ou alguma situação embaraçosa para ser refletida, exceto que a experiência do homem jamais será suplantada pela tecnologia.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Laurence Anyways
















Dolorosa Transformação

O diretor canadense Xavier Dolan, de apenas 23 nos, surge com seu terceiro longa-metragem Laurence Anyways, que esteve na 36ª Mostra de Cinema de São Paulo e na Mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes deste ano. Conquistou seu público com a extraordinária estreia confessional Eu Matei a Minha Mãe (2009), onde um rapaz de 17 anos com gosto kitsch, usa roupas bregas, aparenta não amar a mãe, embora sua relação edipiana seja visível, mas a contempla com desprezo. Os mecanismos de manipulação e a culpa utilizados por ela também não lhe passam despercebidos, tem um ódio fora do seu controle. Confuso, vaga por uma adolescência marginal e típica, repleta de descobertas artísticas, experiências ilícitas, amizades e se assume como homossexual. No segundo longa Os Amores Imaginários (2010) é um desastrado filme mais leve e engajado na causa gay. Ou seja, uma pequena apologia para tentar manter um relacionamento num típico ménage à trois, colocando no centro da proposta de um "homo", um "bi" e um "hétero", deixa a desejar como uma obra mais reflexiva, e talvez, devesse ser mais comprometida com uma análise e crítica mais aprofundada.

O terceiro drama de Dolan mostra os paradoxos da existência humana, onde Laurence (Melvil Poupaud) enfrenta situação delicada da troca de sexo com a noiva Fred (Suzanne Clément- merecido o prêmio de melhor atriz na Mostra Um Certo Olhar de Cannes). Eles vivem um grande e louco amor, completamente fora dos padrões, durante os anos 90 e a trajetória os acompanha por 10 anos. A felicidade aparente de seus sorrisos num mundo heterossexual esbarra na notícia do rapaz, de que pretende fazer uma cirurgia para trocar de sexo, numa guinada de rumo do filme já em seu início, numa convicção forte do personagem que quer virar mulher e logo começa a se vestir como se imagina.

O filme apresenta uma noiva companheira e disposta em ajudá-lo, depois de restabelecer-se do choque, comprando toda a indumentária feminina, inclusive uma peruca. Mas não vivem dias fáceis, como mostra a cena do restaurante, ao refletir o preconceito da velhinha com o modo de vestir-se efeminado do transformista. Fred explode de raiva, num misto de raiva e descontrole emocional pelas piadinhas e gracejos por onde anda, associada com a demissão do companheiro no trabalho aflorados pelo preconceito sexual notório. Corrobora ainda a mãe de Laurent (Nathalie Baye), que num primeiro momento tenta evitar o filho, abandonando-o em seus conflitos interiores que passam a conviver com os fantasmas que dilaceram sua alma. O pai doente é usado pela mãe em esfarrapadas desculpas pela rejeição sem dó e piedade.

O drama mostra a cena da violência estampada na agressão física no bar por um homofóbico, agressão verbal no restaurante que cala no fundo da alma com o paradoxal amor enlouquecido pela noiva. É inevitável os rumos diferentes tomados pelos protagonistas, mas na realidade nunca se afastam totalmente, pois o vínculo da união é mantido e do por que da metamorfose? Há uma realidade de idas e vindas, construção e rompimento do casal.

Uma película que reflete um misto de inconsciência e dúvida aparente surgidas na trama, mas a convicção pela transformação e seu desejo de ser mulher colidem frontalmente com a grande paixão de sua vida. Nem a aproximação com um casal que vive em condições semelhantes supre o dilema, pelo contrário aumenta mais a tensão. Fred desabafa e se diz heterossexual, causando mais confusão na cabeça do noivo, que fica dividido e no meio do caminho, pois não ama nenhum homem e sequer pensa em se relacionar com um deles, mas o conflito cresce por não desejar o afastamento de sua paixão feminina.

Laurence Anyways busca o paradoxal contraste como forma de análise, onde não há pretensão pela solução de um cineasta assumidamente gay, mas embora engajado numa causa. Não acena com facilidades demagógicas para problemas complexos como a força do desejo sendo mais forte do que manter os laços de união. Já a opção por planos-sequência longos com a câmera estática e com os personagens distantes como metáfora do afastamento da realidade social neste bom e perturbador drama de reflexão dos costumes e do moralismo abordados com razoável profundidade.

Argo



O Resgate

Ben Affleck dirige Argo em seu terceiro longa-metragem, sendo os anteriores Medo da Verdade (2007) e Atração Perigosa (2010). Também atua e é sofrível como o agente da CIA Antônio Mendez, com aquela cara de paspalho mimado misturado com canastrão. Bem que o protagonista merecia um ator mais carismático e de uma razoável dramaticidade, pois assim o papel teria crescido muito mais, diante da pálida interpretação de Affleck que atrás das câmeras é bem melhor.

O drama policial tem como ponto de partida o Irã, em 1979, sob o governo do Aiatolá Khomeini, que recém assumira o poder e já determina o sequestro dos diplomatas americanos que acabam se refugiando clandestinamente na Embaixada do Canadá, depois de fugirem do reduto dos EUA. Se fossem presos poderiam ir à forca no temido regime do presidente empossado pelo povo que antes derrubara o xá Reza Pahlevi, que se exilou nos Estados Unidos, despertando mais ódio e uma fúria ensandecida nos iranianos.

A trama tem bons momentos cinematográficos, como a invasão da embaixada americana no Teerã fazendo diversos reféns presos e isolados do mundo por mais de um ano em total incomunicabilidade, causando furor no governo de Jimmy Carter, que chegou a ordenar um resgate forçado, mas somente tornado público no governo de Bill Clinton. Porém rendeu-se ao plano de Mendez que articulou uma saída aparentemente inverossímil e temerária, ao montar uma equipe fictícia de cinema para realizar um documentário nos principais pontos turísticos da Capital do Irã. Há a prestimosa ajuda do maquiador John Cambers (John Goodman), mestre dos efeitos especiais e ganhador de vários prêmios na categoria, como no longa O Planeta dos Macacos (1968); e do produtor Lester Siegel (Alan Arkin), obedecendo as ordens do chefe maior Jack O’Donnell (Bryan Cranston). A dupla Cambers e Siegel está muito bem nos grandes momentos hilários do filme, com uma dose de ironia fina e sutil nos diálogos.

O filme mostra uma missão arriscada do agente da CIA que atuou por 27 anos no Oriente Médio, com chances remotas de alcançar um total sucesso, mas assim mesmo é colocado em prática o plano mirabolante para deleite do espectador, numa montagem eficiente e com cenas eletrizantes, tendo um respeitável amparo musical de uma trilha sonora elogiável, com as participações de bandas consagradas como Led Zeppelin e Van Halen. A reconstituição de época é impecável, tanto no figurino como num cenário típico e convincente da década de 70.

Mas o longa apresenta equívocos como o heroísmo desbragado americano insuflado pela paixão nacionalista sem limites, numa louvação de enaltecimento desproporcional, mesmo após o epílogo. Há uma singela homenagem ao Canadá, país que foi fundamental para a epopeia do resgate dos diplomatas americanos em território iraniano, agasalhado pelo roteiro tendenciosamente maniqueísta de Chris Terrio, que se baseou num artigo publicado pelo jornalista Joshuah Bearman.

Em Argo não dá para dizer que há um componente meramente apelativo nas cenas de suspense, pois possui um clímax bem aprimorado e a trajetória do filme é instigante e leva para um final angustiante. Talvez aí o mérito maior de Affleck com a tensão sendo mantida em dose equilibrada, intercalada com algum humor para descontrair, mostrando que tanto na política como no cinema o que importa fundamentalmente é iludir e convencer, como estabelece as normas de Hollywood e a CIA. A representação dos políticos mentirosos faz parte do sistema e contexto, excetos os atos de heroísmos excessivos, chega a ser um bom e instigante filme, que mescla com ironia uma realidade advinda da ficção. Tudo soa falso e aos poucos vai virando uma contraditória verdade.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Gonzaga- De Pai Pra Filho















Conflito de Gerações

Breno Silveira em seu terceiro longa-metragem realiza um comovente drama familiar mesclado com uma cinebiografia musical que vai direto ao coração do espectador na busca da emoção, sobre a relação conflitada do pai Luiz Gonzaga, o Gonzagão, o Rei do Baião, com seu filho Luiz Gonzaga Filho, o Gonzaguinha, um dos maiores compositores e cantores da música popular brasileira de todos os tempos. Conduz no mesmo estilo do excelente e cultuado 2 Filhos de Francisco (2005), ao abordar a trajetória da vida e obra da dupla Zezé di Camargo e Luciano até chegar ao estrelato e afasta-se do penúltimo longa À Beira do Caminho (2012), onde fracassou ao deixar o pieguismo e a emoção fácil corroborados por soluções previsíveis.

Gonzaga- De Pai Pra Filho é baseado na biografia de Regina Echeverria e o diretor preferiu contar o filme na forma mais tradicional possível, intercalando ocasionalmente cenas de documentários antigos com fotos, entrevistas e vídeos, o que faz perder a clímax do longa. Opta por usar três atores para cada personagem nas fases diferentes da vida. Gonzagão é interpretado por Land Vieira, na adolescência, Nivaldo Expedito de Carvalho/ o Chambinho do Acordeom, já adulto, e Aurélio Lima, mais velho. Chambinho se destaca por seu carisma e entrega musical, embora com poucos recursos dramáticos, é promissor na carreira, pode crescer muito e demonstrou ter potencial. Deixa seu personagem bem próximo do público e torna fácil de entender sua personalidade forte e difícil como um homem fanfarrão e brigão por vezes. Já Júlio de Andrade, com sua semelhança física incrível com Gonzaguinha, está ótimo e constrói um protagonista fragilizado e sensível que vai até o Sertão buscar a reconciliação com o velho pai na década de 80. Antes fora interpretado na fase de criança por Alison Santos e como adolescente por Giancarlo Di Tommaso.

Silveira tem na parceira dos filmes anteriores a roteirista Patrícia Andrade, uma trama focada eminentemente na vida conturbada do cancioneiro famoso com o filho que buscava seu espaço musical, depois de uma infância terrível, pois perdeu a mãe (Nanda Costa) muito cedo de tuberculose e foi criado por pais adotivos (Luciano Quirino e Silvia Buarque). É internado num colégio do interior por Gonzagão para estudar e virar doutor, convalesce também da mesma doença que vitimou a mãe, mas se safa e vai embora ao som da bela canção “Com a perna no mundo”. Sofre rejeição da madrasta e não tem apoio familiar, sequer do péssimo pai que nunca encontra e parece quer sempre se livrar dele.

O longa mostra o Rei do Baião como um pai e marido ausentes, voltado para sua música de forró e cantando: “minha vida é andar por este país...”, embora como pessoa fosse sujeito quase que irascível, filho de seu Januário (Cláudio Jaborandy), grande sanfoneiro que lhe inspirou para a carreira. Sofreu preconceito racial na juventude ao tentar se casar com a filha do coronel Raimundo (Domingos Montagner), o grande e eterno amor de sua vida e cenário do encontro com Gonzaguinha que tenta entendê-lo melhor. É ameaçado de morte e ouve o conselho da mãe e vai embora de Exu, uma cidade do Sertão de Pernambuco. Serve no Exército e ao ir lutar na Revolução de 1930, simula uma situação estranha para ser preso e abandonar o quartel, pois prometera ao genitor que jamais mataria alguém. Sua juventude é difícil no Rio de Janeiro, custa para deslanchar como o mestre cancioneiro nordestino, tentando se livrar de tangos sambas, valsas e choros. A carreira vai explodir bem depois, na sua volta às raízes, especialmente com o clássico Asa Branca, em a parceria com o advogado cearense Humberto Teixeira (protagonista do documentário O Homem que Engarrafava Nuvens (2009), de Lírio Ferreira).

O drama aborda o relacionamento difícil com a cantora e dançarina que origina o nascimento de Gonzaguinha. Fica no contexto a incógnita se realmente é o pai daquele menino, pela carreira extrovertida da companheira. Teria havido traição, tal qual no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, onde Capitu traiu ou não Bentinho com seu melhor amigo? Gonzaguinha não deixa passar em branco a dúvida e questiona o pai de microfone em punho gravando como se fosse uma entrevista, numa cena de constrangimento para ambos. O silêncio na resposta mostra a dúvida, mas logo vem a resposta dissimulada: “tanto faz se o sangue corre ou não das veias...”.

O diretor deixa para o epílogo a cena dos dois subindo juntos no palco, no ano de 1981. Em 89 morre o Rei do Baião e um ano e meio depois Gonzaguinha desaparece tragicamente num acidente de carro, como por ironia do destino. É um equívoco do roteiro o didatismo e a explicação desnecessária passo a passo, como se fosse uma telenovela global. Mas o encontro de pai e filho discutindo a relação do passado, onde Gonzaguinha conhece fatos que não imaginava existir entre eles é o ponto alto da trama, numa verdadeira lavagem das dúvidas do passado e do conflito de gerações entre os dois grandes artistas.

Há uma busca do cineasta pelo resgate do velho cancioneiro do baião e do forró, mas há falhas graves do roteiro, como não mostrar sua simpatia e o apoio de forma explícita pelo governo da ditadura, deixando apenas escondidos nas entrelinhas dos banquetes dos militares, sob a pífia argumentação que fazia isto apenas para ganhar dinheiro e chamava o filho de autor de músicas comunistas. Outro equívoco é Gonzaguinha não chega ser aclamado como célebre e notável compositor que foi, com suas músicas contestadoras do regime de exceção da época, um mestre das metáforas de suas canções sutis e arrebatadoras. Um artista emblemático com suas canções que cutucavam as forças governantes, por isso perseguido nos anos de chumbo. Um tributo que bem poderia ter sido melhor elaborado.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

E Agora, Aonde Vamos?

















A Força Feminina

Vem do Líbano, em coprodução com a França, Egito e Itália, de 2011, o segundo longa-metragem provocante de Nadine Labaki, onde também atua como a protagonista Amale, com sua beleza estonteante de grandes olhos verdes, cabelos negros compridos, lembrando Penélope Cruz. Já havia encantado com a comédia dramática Caramelo (2007), filme de estreia atrás das câmeras como uma diretora inteligente, sobre os problemas pessoais de cinco mulheres que tinham por referência seus trabalhos e encontros assíduos num salão de beleza, em um aconchegante bairro de Beirute, onde conversam francamente, sem preconceitos ou mentiras para um questionamento amargo, buscando o sentido do cotidiano da vida.

O tema sobre os conflitos pessoais das mulheres está de volta e em grande estilo no E Agora, Aonde Vamos?, vencedor do Prêmio do Público no Festival de Cinema de Toronto e representa o Líbano no Oscar de melhor filme estrangeiro. Centrado num contexto de um país devastado pelas constantes guerras como pano de fundo para a sua reconstrução, sob o abrigo do fanatismo religioso e os conflitos entre cristãos e muçulmanos que desencadeiam situações de beligerância frequente.

Recentemente foi visto o extraordinário filme Incêndios (2010), do canadense Denis Villeneuve, numa abordagem profunda sobre os dilemas, intolerâncias nefastas e devaneios das múltiplas guerras oriundas de divergências implacáveis, principalmente entre cristãos e muçulmanos, num cenário que indicava fosse o Líbano, pelas constantes desavenças entre os povos irmãos, porém divididos pela nem tão singela opção religiosa, onde se estabeleceu um conflito interminável que gerou uma guerra civil de 1975 a 1990, num derramamento de sangue desnecessário se houvesse bom senso, mas que diante de uma desavença exacerbada que resultou em mais uma tolice absurda naquela região conflitada.

Labaki também dá indícios de ser o cenário no Líbano, bem como Villeneuve em Incêndios, em ambas as tramas, as cenas são construídas meticulosamente, desde um início em que já se pressupõe que a violência está arraigada naquele lugar. No drama canadense há a estúpida execução pelos futuros cunhados do jovem ativista que engravidou a namorada e o filho que nasceu sob a égide do ódio e da barbárie, fruto de uma bestialidade descabida, numa ciranda de ódio que se transformou em vingança e uma dor que verterá e o possuirá por todo seu corpo e alma combalidos.

Já na comédia dramática da diretora libanesa, um grupo de mulheres cristãs e muçulmanas vive numa aldeia isolada e perigosa unem-se para pacificar os homens que estão se matando como bestas humanas disfarçados de idiotas guerreiros, mas que não levam a lugar nenhum. A sacada da cineasta é magistral, quando no filme as fogosas dançarinas ucranianas são recrutadas para acalmar os violentos machos imbecis. Para isto comem bolinhos caramelados com haxixe, deixando-os numa letargia de homens prostrados e bobalhões. Há ainda a instigante cena do prefeito tentando conciliar seus munícipes, com a prestimosa colaboração da esposa e os supostos milagres forjados na igreja da santa que chora sangue, como metáfora da morte da população daquele lugar.

Labaki inverte os papéis religiosos em outra cena reveladora, como uma tacada definitiva na trama, tudo para obter a almejada trégua na guerra entre irmãos do mesmo povo diferenciados somente pela incivilidade de uma causa religiosa fanatizada, numa sátira esplêndida do milagre e da união entre rivais pelo antagonismo oriundos de seitas e ramificações do islamismo de Alá com o Deus dos cristãos.

E Agora, Aonde Vamos? mostra a tragédia libanesa por uma forma mais leve, mas não menos cruel, assim como no longa anterior Caramelo os personagens flutuavam, neste há o conflito permanente, porém sempre mostrando a intolerância viciada dogmática como algo abjeto e inconsequente, mesmo que para isto a protagonista tenha seu romance truncado pelas diferenças religiosas, tornando-se proibido pelas contingências. Não é à toa que vê o sofrimento da mãe escondendo o cadáver do irmão dentro de um poço, morto por vingança, para evitar novos derramamentos de sangue, numa cena comovente e arrebatadora sob o ponto de vista da luta pela paz, pelo olhar feminino e a força eloquente da mulher, como características marcantes da diretora, nesta fabulosa comédia como um obra maior na sua temática, inscrevendo-se desde já como uma das 10 melhores realizações neste 2012.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Elefante Branco



Mosaico Debilitado

Encerrada a grandiosa 36ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, com ótimos e inesquecíveis filmes, voltamos à realidade porto-alegrense. Para começar temos Elefante Branco, exibido na mostra paralela do Festival de Cannes deste ano, dirigido por Pablo Trapero, que gosta de abordar situações cotidianas e sociais de uma maneira crua e fria, sem grandes alegorias e metáforas. Assim foi com o excelente Leonera (2008), talvez seu melhor e mais profundo filme, discutindo sobre o sistema prisional argentino de uma detenta grávida e as consequências nefastas para os filhos recém-nascidos naquele lugar inóspito. Outro filme de grande repercussão foi Abutres (2010), tendo também Ricardo Darín no papel principal, com um viés pela inverossimilhança da máfia obcecada pelos prêmios de seguros de acidentes de veículos automotores das vítimas fatais, aproveitando-se das brechas deixadas pelas leis reguladoras do trânsito. Sem esquecer ainda que fizera antes outros belos longas como Nascido e Criado (2006) e Família Rodante (2004).

Agora desponta com esta película que busca inspiração no longa brasileiro Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles. A abordagem é explícita com problemas similares como o tráfico de drogas, brigas de gangues e os subempregos de crianças envolvidas no mundo do crime com muito realismo e expressividade. Trapero busca nas situações múltiplas de temas como a igreja e sua influência no governo para fazer pressão no governo para liberar verbas para a construção de casas próprias no subúrbio de Buenos Aires, na comunidade de Ciudad Oculta, uma favela com problemas estruturais desde a década de 40. O drama tem em seu personagem principal Julián (Ricardo Darín- sempre em atuação elogiável), um padre doente que vai ao encontro do colega Nicolás, também engajado em causas sociais que aparece num massacre de camponeses na Amazônia, bem interpretado pelo carismático ator belga Jéremie Renier, consagrado nos filmes dos irmãos Dardenne, entre eles A Criança (2002) e O Silêncio de Lorna (2008).

O diretor mostra o padre belga se envolvendo emocionalmente com a assistente social Luciana (Martina Gusman- mulher de Trapero), porém sem um aprofundamento maior da discussão do celibato no catolicismo. Um tema interessante que passa quase despercebido dentro de uma complexidade de outras discussões também relevantes. Uma questão que mereceria uma abordagem bem melhor, mas que dá a entender que é natural um sacerdote de Deus ter um romance e não há cobrança de ninguém, sequer da conservadora igreja, o que se sabe não é uma realidade. Surge no enredo a figura emblemática no passado do padre Mugica, morto em circunstâncias desconhecidas há mais de 30 anos e que a igreja, através da liderança de Julián, tenta fazê-lo um santo, por supostos milagres que são colhidos na população. Mas o filme se concentra em boa parte no embate ente a truculenta polícia e miseráveis favelados, lembrando os confrontos existentes nos morros brasileiros da Rocinha e Alemão, no Rio de Janeiro, sob a forte influência da película de Meireles. Peca, por vezes, em alavancar um drama e não se deter como um analista mais mordaz. Já os planos-sequência nos escombros do hospital, bem como dos corredores estreitos das favelas são eletrizantes, deixando os espectadores embasbacados.

Trapero se afasta de suas temáticas anteriores, onde haviam reflexões bem mais profundas oriundas de temas simples do cotidiano. Ao optar pela multiplicidade de temas, como drogas, casa própria, má gestão pública, subempregos, celibato, questões sociais da criminalidade nas favelas pelas mortes do tráfico, massacre de camponeses na Amazônia, acaba por não aprofundar nenhum deles, gerando um mosaico enfraquecido numa narrativa quase que vazia e desconexa. O grande equívoco do diretor foi abordar tudo dentro de um mesmo contexto, pois começa questionando o hospital que deveria ser o maior da América Latina, mas que vira um esqueleto de um prédio gigantesco e inacabado, tornando-se um “elefante branco”. É bem diferente de Cidade de Deus que se debruça de forma nua dentro de uma realidade dura do tráfico de drogas na criminalidade entre os adolescentes brasileiros.

Em Elefante Branco sempre surgem novos fatos que vão se misturando e há uma sobreposição de temas, acarretando numa abordagem reflexiva rasa num longa que vai aos solavancos para o epílogo. O cineasta tem em sua filmografia filmes bem melhores, especialmente Leonera, mas sua proposta não chega ser inválida neste longa apenas interessante, mas longe do melhor cinema argentino.