Dolorosa Transformação
O diretor canadense Xavier Dolan, de apenas 23 nos, surge
com seu terceiro longa-metragem Laurence
Anyways, que esteve na 36ª Mostra de Cinema de São Paulo e na Mostra Um Certo
Olhar do Festival de Cannes deste ano. Conquistou seu público com a
extraordinária estreia confessional Eu
Matei a Minha Mãe (2009), onde um rapaz de 17 anos com gosto kitsch, usa
roupas bregas, aparenta não amar a mãe, embora sua relação edipiana seja
visível, mas a contempla com desprezo. Os mecanismos de manipulação e a culpa utilizados
por ela também não lhe passam despercebidos, tem um ódio fora do seu controle.
Confuso, vaga por uma adolescência marginal e típica, repleta de descobertas
artísticas, experiências ilícitas, amizades e se assume como homossexual. No
segundo longa Os Amores Imaginários
(2010) é um desastrado filme mais leve e engajado na causa gay. Ou seja, uma
pequena apologia para tentar manter um relacionamento num típico ménage à trois, colocando no centro da
proposta de um "homo", um "bi" e um "hétero", deixa
a desejar como uma obra mais reflexiva, e talvez, devesse ser mais comprometida
com uma análise e crítica mais aprofundada.
O terceiro drama de Dolan mostra os paradoxos da existência
humana, onde Laurence (Melvil Poupaud) enfrenta situação delicada da troca de
sexo com a noiva Fred (Suzanne Clément- merecido o prêmio de melhor atriz na
Mostra Um Certo Olhar de Cannes). Eles vivem um grande e louco amor,
completamente fora dos padrões, durante os anos 90 e a trajetória os acompanha
por 10 anos. A felicidade aparente de seus sorrisos num mundo heterossexual
esbarra na notícia do rapaz, de que pretende fazer uma cirurgia para trocar de
sexo, numa guinada de rumo do filme já em seu início, numa convicção forte do
personagem que quer virar mulher e logo começa a se vestir como se imagina.
O filme apresenta uma noiva companheira e disposta em
ajudá-lo, depois de restabelecer-se do choque, comprando toda a indumentária
feminina, inclusive uma peruca. Mas não vivem dias fáceis, como mostra a cena
do restaurante, ao refletir o preconceito da velhinha com o modo de vestir-se
efeminado do transformista. Fred explode de raiva, num misto de raiva e descontrole
emocional pelas piadinhas e gracejos por onde anda, associada com a demissão do
companheiro no trabalho aflorados pelo preconceito sexual notório. Corrobora
ainda a mãe de Laurent (Nathalie Baye), que num primeiro momento tenta evitar o
filho, abandonando-o em seus conflitos interiores que passam a conviver com os
fantasmas que dilaceram sua alma. O pai doente é usado pela mãe em esfarrapadas
desculpas pela rejeição sem dó e piedade.
O drama mostra a cena da violência estampada na agressão
física no bar por um homofóbico, agressão verbal no restaurante que cala no
fundo da alma com o paradoxal amor enlouquecido pela noiva. É inevitável os
rumos diferentes tomados pelos protagonistas, mas na realidade nunca se afastam
totalmente, pois o vínculo da união é mantido e do por que da metamorfose? Há
uma realidade de idas e vindas, construção e rompimento do casal.
Uma película que reflete um misto de inconsciência e dúvida
aparente surgidas na trama, mas a convicção pela transformação e seu desejo de
ser mulher colidem frontalmente com a grande paixão de sua vida. Nem a
aproximação com um casal que vive em condições semelhantes supre o dilema, pelo
contrário aumenta mais a tensão. Fred desabafa e se diz heterossexual, causando
mais confusão na cabeça do noivo, que fica dividido e no meio do caminho, pois
não ama nenhum homem e sequer pensa em se relacionar com um deles, mas o
conflito cresce por não desejar o afastamento de sua paixão feminina.
Laurence Anyways
busca o paradoxal contraste como forma de análise, onde não há pretensão pela
solução de um cineasta assumidamente gay, mas embora engajado numa causa. Não
acena com facilidades demagógicas para problemas complexos como a força do
desejo sendo mais forte do que manter os laços de união. Já a opção por
planos-sequência longos com a câmera estática e com os personagens distantes
como metáfora do afastamento da realidade social neste bom e perturbador drama
de reflexão dos costumes e do moralismo abordados com razoável profundidade.
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