Relações Amorosas
O veterano cineasta francês Philippe Garrel, discípulo da Nouvelle Vague, no qual ingressou bem
depois de fundado, para dar continuidade com o inerente naturalismo da proposta
do movimento que revolucionou o cinema.
Tem em seu currículo o longa de estreia Marie
Pour Mémoire, ganhador do Grande Prêmio do Festival du Jeune Cinéma de
Hyères, em 1969, também abocanhou o Leão de Prata no Festival de Veneza de 1992
com J'Entends Plus la Guitare , prêmio que voltaria
a receber por Amantes Constantes, em 2005.
É detentor de uma filmografia elogiável como A Fronteira da Alvorada (2008); Um
Verão Escaldante (2011); o autobiográfico O Ciúme (2013), que dirigiu seu filho Louis Garrel; e a última
realização, Amante Por Um Dia (2017),
outro belo e sensível drama familiar que estreou este ano no Brasil.
Chega somente agora ao circuito comercial brasileiro seu
penúltimo filme, À Sombra de Duas
Mulheres, realizado em 2015. Novamente se debruça sobre a temática da fidelidade
e as consequências dos amores com ciúmes e traições como um ingrediente de
molho para apimentar uma relação esfriada pelo tempo de uma convivência de
muitos anos que cai na rotina do cotidiano implacável. Neste seu drama atual,
segue a mesma senda e não decepciona seu público fiel das inequívocas
circunstâncias da alma e do coração. Não falta o amor com ardor e dor, a
angústia e o prazer entrelaçados, que são criados através de momentos de pura
beleza e poesia, como na cena do epílogo. Tudo está encaixado dentro de uma
proposta aparentemente simples, na qual está presente o objeto fundamental do
estado emocional complexo envolvente de um sentimento provocado em relação ao
medo da perda pela traição (mais que a própria morte) da pessoa amada.
Pierre (Stanislas Merhar) é um aborrecido cineasta de
documentários independente, de poucos recursos, que busca uma linha autoral, é
casado com Manon (Clotilde Courau), uma roteirista e produtora. Eles sobrevivem
realizando trabalhos temporários para ter suporte nas produções mais arrojadas
que pretendem no futuro. Estão em meio às filmagens de um casal de anciões,
símbolos da resistência da França durante a ocupação da Alemanha nazista na II
Guerra Mundial, porém o desfecho revelará a verdadeira posição dos seus heróis.
Há um viés político na trama, mas seu foco principal está na investigação com
acuidade das relações do microcosmo familiar e as paixões enlouquecidas da
instantaneidade em rota de colisão com os amores duradouros de seus personagens
fragilizados pelo tempo. Apesar de amar Manon, Pierre acaba conhecendo
Elizabeth (Lena Paugam), uma estagiária de História, que conheceu numa
cinemateca. A relação com a amante, as escapadas e o desejo em manter o affair, entra em rota de colisão com a
companheira. Pretende manter as duas mulheres, mas algo está complicando a
situação. O inesperado acontece como uma surpresa e o sentimento de culpa e
perda estarão colocados em xeque pelo realizador, como uma proposta madura para
uma abordagem consistente e sem fricotes ou subterfúgios, num roteiro conciso,
enxuto e direto ao ponto, escrito por Jean- Claude Carrière, Arlette Langmann,
Caroline Deruas-Garrel (esposa do diretor) e o próprio cineasta.
Importante destacar a primorosa fotografia em preto e
branco, num tom melancólico e sem glamorização das relações, dá o equilíbrio exato
nesta trama bem urdida da história retratada. O cineasta disseca por uma lúcida
reflexão os atritos das relações surgidas no cotidiano do amor em toda sua
extensão com os prazeres sexuais e os vínculos afetivos decorrentes pelas
traições, numa obra que relembra com charme, além de provocar e instigar,
através da consagrada estrutura da Nouvelle
Vague. A solidão, o abandono, a iminência da perda e a traição conflitando
com a fidelidade estão presentes nos personagens envolvidos que representam os
papéis da vida no dia a dia da ficção e da dúvida sempre entrelaçados no
realismo lançado dentro de uma verdade inafastável e onipresente na vida
daquelas criaturas sofridas pela incerteza do amanhã, como simbologia da
existência e a reconquista como um saboroso elemento constitutivo poético e
infinito.
O genial Alain Resnais, um dos expoentes do famoso movimento da nova onda, foi insuperável
ao criar uma atmosfera de amor e tristeza de uma existência que se torna ficcional no cenário das interpretações pela estética apurada com consistência
e rigor no equilíbrio em Amar, Beber e
Cantar (2014), um drama de
sutilezas numa narrativa leve e ao mesmo tempo profunda, bem como em
Vocês Ainda Não
Viram Nada! (2011). Garrel tem uma admiração pelo velho mestre já falecido,
por isso se esmera como um bom seguidor na essência do amor, do ciúme, a
fidelidade e a traição. No filme O Ciúme,
a relação da dúvida sobre a lealdade é visível e encaixa com precisão no enredo
de um ator de teatro que vive em um modesto apartamento com uma atriz e levam
uma vida normal de dois apaixonados, embora com sérias dificuldades
financeiras. Já no drama Amante Por Um Dia,
a temática das relações atormentadas está presente outra vez, em que a filha de um professor e a
namorada dele se aturam, mas uma desconfia da outra, até que ambas acabam se aproximando e ficando amigas, mas irão deixando
rastros pelo caminho que levam para o rompimento.
À Sombra de Duas
Mulheres é uma abordagem mais elaborada e com mais verossimilhança na proposição
da reconciliação de dois seres em litígio, porém eles têm algo em comum. São personagens
mergulhados na solidão do cotidiano, além das idas e vindas conturbadas, há uma
simplicidade de rara profundidade nos romances desfeitos e refeitos, o que dá
realismo e alma ao longa. Não há culpados dentro das escolhas livres, ou
induzidas, diante das consequências que o casal irá assumir. A iminente perda
de uma grande paixão, a infidelidade fugaz no prazer sexual sem vinculação
afetiva, como pessoas maduras pelas atitudes tomadas livremente, além do
desconforto do flagrante e da traição que são contextualizados para uma
reflexão sem preconceitos tacanhos pelo falso moralismo. O realizador cria belas imagens
para uma escolha amoral num preto e branco estristecido propositalmente, como
nas sequências que indicam a felicidade sendo tragada pela decepção sombria nas
andanças pelas ruas do bairro, e no desfecho de exorcismo de fantasmas. Ao desenvolver
a narrativa com a reconstrução, desenvolve essencialmente um filme sobre a tristeza
do ser humano e sua proximidade com a vida angustiada do grande amor
incondicional e suas virtudes, que deixará fluir pela ternura, mas dentro de um
vazio da realidade dolorida e prazerosa, paradoxalmente, neste admirável
drama intimista.