quarta-feira, 2 de maio de 2018

Baseado em Fatos Reais



Crise da Criação

Roman Polanski, aos 84 anos, está em boa forma e é um dos mais competentes cineastas em atividade, embora sua conturbada vida pessoal atrapalhe seu destino no território dos EUA e países que façam extradição para lá. Seus problemas pessoais e sua suposta dívida para com a justiça não impedem e nem devem servir de obstáculo para atenuar os efeitos de sua meritória trajetória na sétima arte. Em 2010, preso na Suíça, não pôde receber o Urso de Prata de direção, em Berlim, por O Escritor Fantasma (2010). Voltou a participar do Festival de Cannes com A Pele de Vênus (2013), penúltima realização, baseada na peça Venus in Fur, do norte-americano David Ives, que por sua vez inspirou-se no romance de Leopold von Sacher-Masoch, publicado em 1870, que viria tornar-se célebre definidor da fábula clássica da dominação sexual nas relações por perversão, advindo dele a terminologia masoquismo.

Já o excelente longa O Escritor Fantasma, adaptado do romance do jornalista e escritor Robert Harris, retrata um ex-ministro inglês chamado ficticiamente de Adam Lang, casado com Ruth, vivia em semi-exílio numa ilha do estado de Maine, nos Estados Unidos, que na realidade nada mais é que as memórias do primeiro-ministro britânico Tony Blair e suas incursões desastradas e subservientes ao governo americano de George W. Bush. É criticado asperamente por uma imprensa livre, por ter autorizado a prisão e tortura de suspeitos de terrorismo, em conluio com o governo americano, exatamente como aconteceu entre Blair e Bush. Trabalha sua autobiografia, pela qual recebeu US$ 10 milhões antes de escrevê-la. Contratado pela editora como ghost writer, McCrea morre misteriosamente. Logo tem seu substituto, passando então a realizar suas pesquisas para terminar o livro de memórias de Lang/Blair. Havia similitudes com Budapeste (2009), de Walter Carvalho, baseado na obra de Chico Buarque de Holanda, onde um homem separado por dois continentes e dividido por duas mulheres, tem na fascinante viagem a descoberta da capital da Hungria, com suas peculiaridades e as situações políticas controversas e ricas de um passado sempre presente de ditadores como estátuas descendo dentro de um barco enferrujado e decadente, pelo Rio Danúbio, numa metáfora do ocaso do comunismo, contadas por um escritor anônimo.

Agora em sua última realização, Baseado em Fatos Reais, Polanski retoma a temática e dá uma espécie de continuidade ao filme O Escritor Fantasma, ao adaptar para a telona o livro de Delphine de Vigan, em parceria com o realizador francês Oliver Assayas. O roteiro é inspirado não por acaso em Acima das Nuvens (2014), de Assayas, que retrata a relação desarrazoada de sentimentos entre duas mulheres, ponto nevrálgico daquela produção francesa. Porém, em sua nova realização, o diretor polonês se afasta da política e vai fundo na perseguição de uma admiradora em uma sessão de autógrafos de uma escritora famosa para abordar a invasão de privacidade como uma neurose obsessiva, valorizar o realismo e lançar a tênue divisória entre a fronteira da realidade com a ficção, através de uma narrativa sobre a vida alheia, as redes sociais e as cartas anônimas endereçadas à protagonista em crise de criação e acusada de apropriar-se de dramas dos outros, tema também visto recentemente na ótima coprodução da Argentina com a Espanha O Cidadão Ilustre (2016), da dupla Mariano Cohn e Gastón Duprat.

O thriller psicológico, gênero em que o diretor é mestre, como no tensionamento sinistro e apavorante de O Bebê de Rosemary (1968), obra-prima do terror; o instigamento de O Inquilino (1976), um verdadeiro achado de suspense e que está presente em Baseados em Fatos Reais, como nas aparições por trás das janelas da fã endiabrada. O cenário da obra atual é o lançamento do mais novo best-seller de Delphine (Emmanuelle Seigner- casada há mais de 20 anos com o cineasta polonês), baseado na história de sua própria mãe, que conhecerá por acaso Elle (Eva Green), uma de suas admiradoras, que lhe pede para autografar um exemplar e se diz escritora, com trabalhos de ghost writer em biografias de celebridades. Aos poucos as duas se aproximam, a moça se torna cada vez mais íntima e presente na vida da autora consagrada. Cria-se um vínculo estreito e quase que insuperável, porém por mais que se sinta incomodada com a onipresença da nova amiga, Delphine permite a aproximação devido à sua fragilidade emocional, por sentir-se solitária, vulnerável com a ausência dos filhos que saíram de casa e a distância do marido (Vincent Perez) sempre envolvido com o trabalho na TV, onde é apresentador de um programa literário. Acaba sendo dopada de remédios pela amiga imaginária ou não, eis a grande questão lançada, que cuidará de sua agenda pessoal e a isolará do mundo num lugar distante para escrever o próximo livro, diante da crise do poder criativo ausente pela falta de novas ideias.

Polanski imprime consistência num aparente mote simples, embora haja complexidade humana que toma vulto e persista nas relações dolorosas e instigantes da intelectual submissa com a dominação tresloucada da personagem usurpadora, que dará durante a trajetória algumas pistas para o espectador optar pela ficção imaginária ou pelo realismo duro e doentio, diante da sucessão de fatos que acontecem até o desfecho pouco convencional, que irá desfazendo o quebra-cabeça, numa verdadeira ciranda de situações inusitadas que se avolumam com o desenrolar da história, marca registrada do cineasta que nunca passa indiferente e seus filmes sempre causam reações na plateia, por sua verve sarcástica inerente. São as relações intrincadas com submissões quase que humilhantes, num desdobramento que segue um ritmo fervoroso até o epílogo, por ser complexo e provocativo, pois consegue fazer de um encontro de amizade e solidariedade numa sessão de autógrafos, para uma transformação do cotidiano da vida numa prisão de almas amarguradas e ressentidas em busca da libertação de seus fantasmas. O resultado de Baseado em Fatos Reais é um suspense psicológico equilibrado e envolvente para uma sensível reflexão sobre as relações de sedução, obsessão, submissão, malícia, perversidade e o delírio catártico, com impacto que só o cinema propicia.

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