Crise da Criação
Roman Polanski, aos 84 anos, está em boa forma e é um dos
mais competentes cineastas em atividade, embora sua conturbada vida pessoal
atrapalhe seu destino no território dos EUA e países que façam extradição para
lá. Seus problemas pessoais e sua suposta dívida para com a justiça não impedem
e nem devem servir de obstáculo para atenuar os efeitos de sua meritória trajetória
na sétima arte. Em 2010, preso na Suíça, não pôde receber o Urso de Prata de
direção, em Berlim, por O Escritor
Fantasma (2010). Voltou a participar do Festival de Cannes com A Pele
de Vênus (2013), penúltima
realização, baseada na peça Venus in Fur, do norte-americano David
Ives, que por sua vez inspirou-se no romance de Leopold von Sacher-Masoch,
publicado em 1870, que viria tornar-se célebre definidor da fábula clássica da
dominação sexual nas relações por perversão, advindo dele a terminologia masoquismo.
Já o excelente longa O
Escritor Fantasma, adaptado do romance do jornalista e escritor Robert
Harris, retrata um ex-ministro inglês chamado ficticiamente de Adam Lang,
casado com Ruth, vivia em semi-exílio numa ilha do estado de Maine, nos Estados
Unidos, que na realidade nada mais é que as memórias do primeiro-ministro
britânico Tony Blair e suas incursões desastradas e subservientes ao governo
americano de George W. Bush. É criticado asperamente por uma imprensa livre,
por ter autorizado a prisão e tortura de suspeitos de terrorismo, em conluio
com o governo americano, exatamente como aconteceu entre Blair e Bush. Trabalha
sua autobiografia, pela qual recebeu US$ 10 milhões antes de escrevê-la.
Contratado pela editora como ghost
writer, McCrea morre misteriosamente. Logo tem seu substituto, passando
então a realizar suas pesquisas para terminar o livro de memórias de
Lang/Blair. Havia similitudes com Budapeste
(2009), de Walter Carvalho, baseado na obra de Chico Buarque de Holanda, onde
um homem separado por dois continentes e dividido por duas mulheres, tem na
fascinante viagem a descoberta da capital da Hungria, com suas peculiaridades e
as situações políticas controversas e ricas de um passado sempre presente de
ditadores como estátuas descendo dentro de um barco enferrujado e decadente,
pelo Rio Danúbio, numa metáfora do ocaso do comunismo, contadas por um escritor
anônimo.
Agora em sua última realização, Baseado em Fatos
Reais , Polanski retoma a temática e dá uma espécie de
continuidade ao filme O Escritor Fantasma, ao adaptar para a
telona o livro de Delphine de Vigan, em parceria com o realizador francês
Oliver Assayas. O roteiro é inspirado não por acaso em Acima das Nuvens (2014), de Assayas, que retrata a relação desarrazoada de
sentimentos entre duas mulheres, ponto nevrálgico daquela produção francesa. Porém, em sua nova realização, o diretor polonês se afasta da política e vai fundo na perseguição de uma admiradora em uma
sessão de autógrafos de uma escritora famosa para abordar a invasão de
privacidade como uma neurose obsessiva, valorizar o realismo e lançar a tênue
divisória entre a fronteira da realidade com a ficção, através de uma narrativa
sobre a vida alheia, as redes sociais e as cartas anônimas endereçadas à
protagonista em crise de criação e acusada de apropriar-se de dramas dos outros,
tema também visto recentemente na ótima coprodução da Argentina com a Espanha O Cidadão Ilustre (2016), da dupla
Mariano Cohn e Gastón Duprat.
O thriller psicológico,
gênero em que o diretor é mestre, como no tensionamento sinistro e apavorante
de O Bebê de Rosemary (1968),
obra-prima do terror; o instigamento de O
Inquilino (1976), um verdadeiro achado de suspense e que está presente em Baseados em Fatos Reais, como nas aparições por trás das janelas da fã endiabrada. O
cenário da obra atual é o lançamento do mais novo best-seller
de Delphine (Emmanuelle Seigner- casada há mais de 20 anos com o cineasta
polonês), baseado na história de sua própria mãe, que conhecerá por acaso Elle (Eva Green),
uma de suas admiradoras, que lhe pede para autografar um exemplar e se diz
escritora, com trabalhos de ghost writer
em biografias de celebridades. Aos poucos as duas se aproximam, a moça se torna
cada vez mais íntima e presente na vida da autora consagrada. Cria-se um vínculo estreito
e quase que insuperável, porém por mais que se sinta incomodada com a
onipresença da nova amiga, Delphine permite a aproximação devido à sua
fragilidade emocional, por sentir-se solitária, vulnerável com a ausência dos
filhos que saíram de casa e a distância do marido (Vincent Perez) sempre
envolvido com o trabalho na TV, onde é apresentador de um programa literário.
Acaba sendo dopada de remédios pela amiga imaginária ou não, eis a grande
questão lançada, que cuidará de sua agenda pessoal e a isolará do mundo num
lugar distante para escrever o próximo livro, diante da crise do poder criativo
ausente pela falta de novas ideias.
Polanski imprime consistência num aparente mote simples,
embora haja complexidade humana que toma vulto e persista nas relações
dolorosas e instigantes da intelectual submissa com a dominação tresloucada da personagem
usurpadora, que dará durante a trajetória algumas pistas para o espectador
optar pela ficção imaginária ou pelo realismo duro e doentio, diante da
sucessão de fatos que acontecem até o desfecho pouco convencional, que irá
desfazendo o quebra-cabeça, numa verdadeira ciranda de situações inusitadas que
se avolumam com o desenrolar da história, marca registrada do cineasta que
nunca passa indiferente e seus filmes sempre causam reações na plateia, por sua
verve sarcástica inerente. São as relações intrincadas com submissões quase que
humilhantes, num desdobramento que segue um ritmo fervoroso até o epílogo, por
ser complexo e provocativo, pois consegue fazer de um encontro de amizade e
solidariedade numa sessão de autógrafos, para uma transformação do cotidiano da
vida numa prisão de almas amarguradas e ressentidas em busca da libertação de
seus fantasmas. O resultado de Baseado em Fatos Reais é um suspense
psicológico equilibrado e envolvente para uma sensível reflexão sobre as
relações de sedução, obsessão, submissão, malícia, perversidade e o delírio
catártico, com impacto que só o cinema propicia.
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