Rastros de Intolerância
Vencedor de quatro prêmios no Globo de Ouro, entre eles o de
Melhor Filme drama e forte candidato ao Oscar, concorrendo em seis categorias, Três Anúncios Para Um Crime tem a competente
direção do britânico Martin McDonagh, que também escreveu o dinâmico roteiro. É
reconhecido por Na Mira do Chefe (2008)
e Sete Psicoptas e Um Shih Tzu (2012),
realizações que tiveram boa repercussão no meio cinematográfico. O cineasta está
de volta com este vigoroso drama mesclado com faroeste contemporâneo. Trata-se de um filme consistente, com uma abordagem bem mais profunda que as produções anteriores, enfatizando
temas como a vingança, a culpa, a hipocrisia, o trauma e as injustiças sociais
na pequena e pacata cidade de Ebbing, no estado de Missouri, no Sul dos EUA.
Talvez seja a obra mais madura de McDonagh, que monta um
painel distinto para contar uma história que não tem vilões, heróis e nem
vítimas determinadas neste contexto de violência numa região fortemente marcada
com tintas remanescentes de um racismo ignóbil e persistente. As
intolerâncias não são somente quanto à distinção de raças: branco e negro, mas
também pela discriminação sexual aos homossexuais e o rancor destilado aos
imigrantes, principalmente os cubanos, como no personagem retratado pela
perseguição. O filme é tangenciado por certa generosidade com toques de humor,
embora em escala bem menor, e a ira latente. O conservadorismo está presente
nos sulistas norte-americanos e a intolerância é uma das apresentações hostis
para quem ousar bater de frente ou contrastar aquelas ideias ali encravadas e
pouco solidárias com o politicamente correto estabelecido por um expressivo
contingente de uma sociedade doentia e deformada pelo preconceito da realidade
sombria para o desenvolvimento de uma pacificação.
O mote do enredo do longa está centrado no inconformismo de
uma mãe pela ineficácia da polícia em encontrar o culpado pelo brutal estupro
sucedido pelo assassinato de sua filha com requintes de crueldade. Mildred Hayes
(Frances McDormand- estupenda atuação), ao ver três outdoors abandonados na
beira de uma estrada secundária, decide chamar a atenção para o crime insolúvel
ocorrido sete meses atrás e sem mostras de uma investigação eficaz. Tem a ideia
de alugá-los e fazer uma cobrança direta pedindo explicações ao xerife da
cidade, Willoughby (Woody Harrelson), que está agonizando em silêncio de uma
doença grave e terminal. A inesperada atitude repercute e terá consequências trágicas
com a explosão de uma onda de violência beirando a uma atmosfera catártica, com
incêndios, morte, lesões graves por queimaduras, numa devastação que toma
contornos surreais afetando parte da população. É a simbolização de desencanto
que sofre uma comunidade de pouca lucidez numa iminente desagregação que deixa
rastros de ódios e resultados pouco convencionais. A fragilidade da paz entra
em choque com os distúrbios ocorridos simultaneamente confrontando com a
esperança da solução pragmática esfacelada.
As relações conturbadas são fragmentadas pela dura ruptura
de um ordenamento ineficaz pelo fracasso das apurações policiais, que
desencadeiam de um episódio para a perda de controle como elementos magníficos
retratados de uma realidade cruel e selvagem, bem construída pelo realizador.
Mostra a cobertura midiática televisiva que busca dar o tom parcial pela
espetacularização do caso, diante dos desdobramentos e as ligações do fato com
a morte inesperada. Mas as cartas deixadas irão dar luzes e afastar as
referências maldosas e tendenciosas, tanto da imprensa afoita em dar show, bem
como de alguns personagens sequiosos por culpar o possível responsável pelo
desatino circunstancial, inclusive o padre entra em cena para opinar com um
discurso demagógico. Ao colocar lado a lado, o grotesco, violento e perverso policial
Jason Dixon (Sam Rockwell) com a protagonista para irem atrás de um improvável
suspeito, o realizador escapa com boa imparcialidade dos maniqueísmos que
rodeiam e poderiam aflorar para um desenlace reduzido da obra. Ali fica
estampado que a heroína está bem longe da justiça propriamente dita, pois seu
lema é a vingança pela velha lei de talião: “olho por olho, dente por dente”. Por
isto, confunde-se com a própria polícia inoperante pela lerdeza de investigar,
o que caracteriza o fracasso do sistema, porém com desdobramentos que
transbordam da civilidade. Um dos méritos do filme é deixar para o espectador
escolher o melhor resultado para o epílogo em aberto, ao abandonar a clássica
simplificação caolha, facilmente encontrada em produções menores de qualidade
pífia.
Três Anúncios Para Um
Crime é uma realização exemplar pelo seu coeso elenco, em que todos
brilham, especialmente Frances McDormand na pele da protagonista pouco óbvia, ao
encarnar uma mulher fria e calculista com obstinação implacável, às vezes até esboça
lampejos de algum carinho e seus diálogos fluem naturalmente assustando pelo
sentimento arraigado de cólera vingativa. Deverá levar a estatueta pela sua
imposição e facilidade de comunicação expressiva. Sam Rockwell e Woody Harrelson
disputam o Oscar de ator coadjuvante e ambos têm chances, especialmente o
primeiro pelo inesquecível personagem truculento, às vezes forte e arrogante e em
outras fragilizado como o macho alfa. A trilha sonora é fascinante em seu todo,
por não ser invasiva e entrar no momento oportuno sem atravessar a narrativa.
Destaque para a composição irlandesa no prólogo do drama, a canção A Última Rosa do Verão, de autoria de
Thomas Moore, belissimamente interpretada pela soprano americana Renée Fleming.
São componentes de uma realização de humor cáustico, intercalado com algum
lirismo em cenas marcantes pela violência de um conservadorismo arcaico,
através de um crime hediondo como pano de fundo para reflexão da intolerância
sexual e das crônicas questões de cunho racial, além da raiva, da vingança e do
ódio aplastantes numa região conflagrada.
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