quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

O Insulto



Julgamento de Ódios

A aguardada produção que representa a primeira realização do Líbano na disputa pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro deste ano, O Insulto, dirigido pelo libanês Ziad Doueiri, o mesmo dos premiados Zeit Beirut (1998) e o polêmico O Atentado (2012), corresponde bem a expectativa depositada. O longa foi premiado no Festival de Veneza com a láurea de melhor ator para o veterano Kamel El Basha, no papel do palestino refugiado mestre de obras Yasser Salameh. As autoridades do país natal do diretor impuseram que fosse colocado o aviso: “o filme não representa a visão do governo libanês.” O realizador não é benquisto pelos governantes. Chegou a ser preso após a premiação do filme anterior na Itália, tendo em vista que gravou as cenas em Israel, mas logo foi solto. Já a realização atual tem como cenário a capital Beirute.

A forma é alegórica da trama para enfatizar as desavenças pelos ódios raciais e religiosos na conflitada região do Oriente Médio que vive permanentemente em alta tensão, principalmente no campo político. Logo já se observa quando no prólogo do enredo, o libanês Toni Hanna (Adel Karam) entra em confronto por uma situação banal. É um adepto fervoroso do Partido Cristão da extrema-direita, admirador confesso e fiel do líder nacionalista Bashir Gemayel, mecânico de profissão, ele tem uma oficina de automóveis num bairro populoso na Capital, na qual sustenta a família. Sua esposa, Shirini (Rita Hayek), está grávida e prestes a dar à luz ao primeiro filho do casal. Mas num dia qualquer, Toni que sempre rega as plantas de sua varanda, acidentalmente, acaba molhando por uma calha estragada o palestino. Este vai até o pequeno apartamento e se oferece para realizar o conserto, mas não há guarida do proprietário. Mesmo assim, tenta com sua equipe de trabalhadores fazer o reparo pelo lado externo sem a permissão expressa do libanês, que ao perceber a atividade profissional, acaba por rebentar a marretadas o novo cano ali instalado. Yasser não deixa por menos e responde com um impropério ultrajante, mas Toni responde asperamente que teria sido bom que o ex-primeiro-ministro israelense Ariel Sharon tivesse dizimado todos os palestinos.

Diante do conflito exposto como metáfora dos desatinos raciais e religiosos, começa uma intensa batalha verbal com desdobramentos que ultrapassam as matizes do bom senso e da civilidade. Toni quer uma retratação formal e não deixa por menos, exige desculpas do acusado. Depois de algumas tentativas de acordo, partem para as vias de fato e o caso vai parar no tribunal, com contornos políticos e repercussão nacional. Um advogado renomado das causas do Partido Cristão se oferece para defender o pseudo-herói da resistência libanesa contra uma experiente advogada das causas palestinas, por coincidência filha do veterano bacharel, que assume a defesa do muçulmano agressor pelas grosserias verberadas. Simbolizado como um palestino refugiado à procura de um lugar seguro para residir e trabalhar dignamente, mas que enfrenta ações extremadas.

O roteiro eclético do diretor em parceria com Joëlle Touma conduz para um estrondoso julgamento com ampla cobertura midiática, num tom circense de espetacularização em uma estrutura de melodrama. O drama social de uma pendenga pessoal de dois cidadãos vai ao encontro dos conflitos recorrentes por questões de âmbito racial, religioso e político, numa mescla que explode numa quase catarse pelas manifestações nas ruas em defesa de suas causas propriamente ditas do mundo árabe. Eis um cotidiano que é abordado através de uma história aparentemente singela, mas complexa na essência, ao adquirir grande amplitude no desenrolar da trama. O intimismo dos personagens em foco é esmiuçado pelo diretor em vários momentos distintos pela importância da história no contexto, com revelações pretéritas que deixaram feridas abertas da guerra civil no Líbano entre 1975 e 1990. As raízes do conflito afloram do passado com marcas tingidas pelo sangue, através da memória das lutas contra Israel, os massacres constantes nas aldeias e o revide de facções do povo da Palestina e sua luta por mais terras com o aumento geográfico de seu território.

A narrativa segue a descrição dos debates jurídicos de filmes hollywoodianos, com as reviravoltas de expectativas do binômio: do bem e do mal, para um desfecho ambíguo a todos os envolvidos. Não há vítimas e réus distintos, todos podem assumir qualquer papel no enredo, sem que haja discordância ou heroísmos. A fragilidade da paz entra em choque com os distúrbios sociais confrontando com a esperança em formato de quimera. O tribunal está ali com seus julgadores e uma imprensa sensacionalista sequiosa por noticiar mais um descalabro de um evento transformado num gigantismo desproporcional à causa da origem. Uma realidade sombria para o desenvolvimento bem urdido do roteiro proposto para uma eficiente alegoria. Não propõe mostrar inocentes neste painel de erros, culpas e nenhum arrependimento, onde todos estão interligados numa babel de confrontos e acusações. Todavia, nem mesmo o que há como elementos fortes de ligação justificam as atitudes que ficam à deriva como consequência de uma crise institucional desde o passado pelos seus fantasmas, sem grandes esperanças no futuro. Repete-se neste aspecto pelo olhar realista para um país de discutíveis atitudes certas ou erradas, bem longe do maniqueísmo de alguns realizadores, mas que mantém com força significativa, sem simplificar, o conteúdo contextualizado de um clímax com direcionamento para descobrir se há um verdadeiro culpado.

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