Julgamento de Ódios
A aguardada produção que representa a primeira realização do
Líbano na disputa pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro deste ano, O Insulto, dirigido pelo libanês Ziad
Doueiri, o mesmo dos premiados Zeit
Beirut (1998) e o polêmico O Atentado
(2012), corresponde bem a expectativa depositada. O longa foi premiado no
Festival de Veneza com a láurea de melhor ator para o veterano Kamel El Basha,
no papel do palestino refugiado mestre de obras Yasser Salameh. As autoridades
do país natal do diretor impuseram que fosse colocado o aviso: “o filme não
representa a visão do governo libanês.” O realizador não é benquisto pelos
governantes. Chegou a ser preso após a premiação do filme anterior na Itália,
tendo em vista que gravou as cenas em Israel, mas logo foi solto. Já a
realização atual tem como cenário a capital Beirute.
A forma é alegórica da trama para enfatizar as desavenças
pelos ódios raciais e religiosos na conflitada região do Oriente Médio que vive
permanentemente em alta tensão, principalmente no campo político. Logo já se
observa quando no prólogo do enredo, o libanês Toni Hanna (Adel Karam) entra em
confronto por uma situação banal. É um adepto fervoroso do Partido Cristão da
extrema-direita, admirador confesso e fiel do líder nacionalista Bashir Gemayel,
mecânico de profissão, ele tem uma oficina de automóveis num bairro populoso na
Capital, na qual sustenta a família. Sua esposa, Shirini (Rita Hayek), está
grávida e prestes a dar à luz ao primeiro filho do casal. Mas num dia qualquer,
Toni que sempre rega as plantas de sua varanda, acidentalmente, acaba molhando por
uma calha estragada o palestino. Este vai até o pequeno apartamento e se
oferece para realizar o conserto, mas não há guarida do proprietário. Mesmo
assim, tenta com sua equipe de trabalhadores fazer o reparo pelo lado externo
sem a permissão expressa do libanês, que ao perceber a atividade profissional,
acaba por rebentar a marretadas o novo cano ali instalado. Yasser não deixa por
menos e responde com um impropério ultrajante, mas Toni responde asperamente
que teria sido bom que o ex-primeiro-ministro israelense Ariel Sharon tivesse
dizimado todos os palestinos.
Diante do conflito exposto como metáfora dos desatinos
raciais e religiosos, começa uma intensa batalha verbal com desdobramentos que
ultrapassam as matizes do bom senso e da civilidade. Toni quer uma retratação
formal e não deixa por menos, exige desculpas do acusado. Depois de algumas tentativas de acordo, partem para as vias de fato
e o caso vai parar no tribunal, com contornos políticos e repercussão nacional.
Um advogado renomado das causas do Partido Cristão se oferece para defender o
pseudo-herói da resistência libanesa contra uma experiente advogada das causas
palestinas, por coincidência filha do veterano bacharel, que assume a defesa do
muçulmano agressor pelas grosserias verberadas. Simbolizado como um palestino
refugiado à procura de um lugar seguro para residir e trabalhar dignamente, mas
que enfrenta ações extremadas.
O roteiro eclético do diretor em parceria com Joëlle Touma
conduz para um estrondoso julgamento com ampla cobertura midiática, num tom
circense de espetacularização em uma estrutura de melodrama.
O drama social de uma pendenga pessoal de dois cidadãos vai ao encontro dos
conflitos recorrentes por questões de âmbito racial, religioso e político, numa
mescla que explode numa quase catarse pelas manifestações nas ruas em defesa de
suas causas propriamente ditas do mundo árabe. Eis um cotidiano que é abordado
através de uma história aparentemente singela, mas complexa na essência, ao
adquirir grande amplitude no desenrolar da trama. O intimismo dos personagens
em foco é esmiuçado pelo diretor em vários momentos distintos pela importância
da história no contexto, com revelações pretéritas que deixaram feridas abertas
da guerra civil no Líbano entre 1975 e 1990. As raízes do conflito afloram do
passado com marcas tingidas pelo sangue, através da memória das lutas contra
Israel, os massacres constantes nas aldeias e o revide de facções do povo da
Palestina e sua luta por mais terras com o aumento geográfico de seu
território.
A narrativa segue a descrição dos debates jurídicos de
filmes hollywoodianos, com as reviravoltas de expectativas do binômio: do bem e
do mal, para um desfecho ambíguo a todos os envolvidos. Não há vítimas e réus
distintos, todos podem assumir qualquer papel no enredo, sem que haja
discordância ou heroísmos. A fragilidade da paz entra em choque com os
distúrbios sociais confrontando com a esperança em formato de quimera. O
tribunal está ali com seus julgadores e uma imprensa sensacionalista sequiosa
por noticiar mais um descalabro de um evento transformado num gigantismo
desproporcional à causa da origem. Uma realidade sombria para o desenvolvimento
bem urdido do roteiro proposto para uma eficiente alegoria. Não propõe mostrar
inocentes neste painel de erros, culpas e nenhum arrependimento, onde todos estão
interligados numa babel de confrontos e acusações. Todavia, nem mesmo o que há
como elementos fortes de ligação justificam as atitudes que ficam à deriva como
consequência de uma crise institucional desde o passado pelos seus fantasmas,
sem grandes esperanças no futuro. Repete-se neste aspecto pelo olhar realista para
um país de discutíveis atitudes certas ou erradas, bem longe do maniqueísmo de
alguns realizadores, mas que mantém com força significativa, sem simplificar, o
conteúdo contextualizado de um clímax com direcionamento para descobrir se há
um verdadeiro culpado.
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