quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Sem Amor



Desagregação Familiar

Vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2017 e forte candidato ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro deste ano, Sem Amor é o digno representante da Rússia, com a excelente direção de Andrey Zvyagintsev, que dividiu o enxuto roteiro com Oleg Negin. A fascinante fotografia é assinada pelo competente Mikhail Krichman. O cineasta tem em seu currículo o cultuado longa-metragem Leviatã (2014), também finalista do Oscar daquele ano, que retrata na península do Mar de Barents, no Ártico, um pai de família lutando contra os desmandos e falcatruas de um prefeito corrupto que quer se manter no poder. Porém, para enfrentar o político desonesto que o coage para tentar desalojá-lo, ele recorre a um colega influente de Moscou. É dele também O Retorno (2003), premiado no Leão de Ouro no Festival de Veneza.

O mote do enredo do longa de Zvyagintsev está centrado numa família em processo de divórcio já encaminhado pelos protagonistas da dissolução dos vínculos ainda restantes do casamento. Boris (Alexey Rozin) e Zhenya (Maryana Spivak) estão concluindo a divisão da partilha dos bens materiais deles, com a venda do apartamento, único patrimônio que os mantêm precariamente próximos através de diálogos ríspidos e rancorosos, repletos de mágoas e ressentimentos. Depois de anos juntos, os dois se preparam para suas novas vidas paralelas em curso repletas de esperanças. Ele com sua nova namorada (Varvara Shmykova), que já está grávida e cobra constantemente uma participação mais efetiva durante a gestação. Ela com seu parceiro milionário (Andris Keiss), um homem já separado e que tem uma aparência distante pelo olhar perdido no universo, de vez em quando faz contato com a filha pela internet. É a simbolização de desencanto que sofre a sociedade russa numa iminente desagregação pela melancólica alegoria apresentada.

Diante das preocupações futuras, o casal pouco liga para o bem-estar do filho, Alyosha (Matvey Novikov), um menino de 12 anos que acaba desaparecendo misteriosamente, logo após uma discussão dos pais e a rejeição explícita a ele sobre a respectiva guarda. Sente-se um verdadeiro estorvo, chora copiosamente e resolve por conta própria sumir da vida deles, diante da negligência familiar estampada para o fato consumado, após o clímax daquele ambiente sem saída. Aflora a falta de amor, o carinho e a desatenção. As metáforas políticas envolvendo o país natal do realizador são evidentes, através do tom seco e os relacionamentos mal resolvidos como características presentes na sua filmografia. Sem Amor é daquelas produções típicas da escola soviética, com uma bem elaborada história, numa narrativa seca, direta e sem subterfúgios pirotécnicos. Mostra uma triste realidade construída a partir de um imenso vazio naquele microcosmo familiar entre os pais e o filho num cenário gelado pelas nevascas, para abordar metaforicamente uma falsa aparente simples separação. Aprofunda-se quando deixa transparecer nas entrelinhas as relações de rompimentos da Rússia com os países que almejam a independência, como no caso específico do noticiário da TV sobre a Ucrânia no epílogo, dividida pela linguagem, pelo histórico social de divisão e por fatores políticos.

As relações conturbadas são fragmentadas pela ruptura, que desencadeiam num episódio de fuga como elemento magnífico da alegoria bem construída pelo diretor. A rejeição, na verdade, se dá bem no início, antes do desenlace inusitado. Os diálogos da mãe, explicitando a opção pelo aborto, soam como um acontecimento que estava desenhado. Há uma série de fatores para o desfecho, como o retorno à noite para casa, após o encontro com o atual namorado, sem sequer ir ao quarto do filho. O pai que está dividido entre a atual namorada e o filho que logo nascerá, além dos trâmites da separação, afasta-se completamente daquela criança abandonada, que se veste, pega a mochila, vai para o colégio, retorna, dorme, acorda, numa rotina sem o acompanhamento de nenhum deles.

Na procura incessante pelo menino desaparecido, surge a figura da avó materna, que vive num lugar distante, escondida entre muros, explicita-se a péssima relação com a filha. Chamada simbolicamente de stalinista, pela sua conduta de durona, cruel e ditatorial, tendo em vista pelos conceitos em relação aos conterrâneos que não são de seu agrado ou pensam contrariamente. Enclausurada num contexto amargo e com atitudes pouco amigáveis aos parentes, inclusive ao neto e à filha. Eis um retrato não só do casal em litígio, mas ao país e o seu contexto social em ebulição antidemocrática sob o comando de Vladimir Putin. O sumiço sem vestígios focado do garoto é o mesmo do opositor que desaparece sob o regime vigente, em uma alusão desde Josef Stalin até os tempos atuais. É a metáfora de um povo e sua desintegração pela desinformação de um sistema antiquado e distante da população sofrida, pela ausência de uma união por laços de amizade, carinho e afetuosidade.

Sem Amor é estruturalmente uma realização que lembra o iraniano Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987), de Abbas Kiarostami, pela retratação similar da trama. Há algumas semelhanças com A Floresta (2017), do compatriota Roman Zhigalov, na abordagem das relações de família e a interação com a vizinhança e seu cotidiano inerente, além do avanço acelerado do capitalismo e da ganância diante da crise de valores. Mas aproxima-se bem mais de A Separação (2010), outra produção iraniana, dirigida por Asghar Farhadi, monumental metáfora que separa o estado de direito democrático, simbolizado pela esposa; do outro lado está um regime ditatorial, de pouco ou quase nada de direitos, representado pelo marido, um defensor até por ali da situação caótica em que vive em seu país. São obras com temáticas que vão ao encontro do regime dissociado com os vínculos da integração, pelo estado de fratura, assim como nas típicas relações familiares em rupturas. As alegorias são emblemáticas e indicam uma dolorosa realidade, como se depreende deste singular drama familiar, ambientado com consistência na burocracia de uma polícia inoperante para investigar, ao deixar a responsabilidade para os voluntários realizarem as buscas, o que torna um fracasso do sistema.

2 comentários:

Cecilia Peixoto disse...

Ótima análise, completa e perfeita.

Roni Figueiró disse...

Um filme imperdível e com uma temática complexa pela alegoria.