sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

No Intenso Agora



Memórias da História

João Moreira Salles é um especialista em documentários como mostra sua filmografia. Dirigiu dois extraordinários filmes do gênero que ficaram na retina do espectador acostumado com obras marcantes. Primeiro foi Nelson Freire (2003), sobre a carreira e a vida do mestre do piano, retratando através de vários blocos a rotina do pianista e sua contagiante música em concertos e recitais. Depois brindou seu público com Santiago (2007), abordando a vida do mordomo que faleceu logo após as filmagens, além da carta filmada endereçada aos irmãos, num compartilhamento das memórias familiares de rara sensibilidade poética. Houve interrupções por alguns anos na conclusão deste filme, tendo em vista algumas dificuldades logísticas. É dele também Entreatos (2004), sobre os bastidores da campanha política de Lula em 2002.

Dez anos após a última realização, o cineasta retorna com todo fôlego para dirigir com muita sutileza e delicadeza o emblemático No Intenso Agora, além de escrever o roteiro e o texto de apresentação na primeira pessoa. A revista Variety fez rasgados elogios e o apontou como uma das melhores produções exibidas no último Festival de Berlim. E ainda foi escolhido como o melhor filme brasileiro pela Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS). Os primeiros trechos deste longa-metragem revelam uma família alegre se divertindo, e o diretor aparece ainda como uma criança. O ponto de partida está nos filmes caseiros resgatados dos pertences particulares oriundos das viagens da mãe do cineasta, verdadeiras raridades num achado fascinante destas preciosas joias, retratando as imagens com registros históricos sobre a passagem pela China, em 1966, sob o regime de Mao Tsé-Tung, nesta experiência vivenciada na época da Revolução Cultural.

O mote familiar é o pretexto para retratar com extrema habilidade os inesquecíveis confrontos de maio de 1968, que brotaram como uma força avassaladora das ruas de Paris, sob a égide revolucionária pelos protestos estudantis pelas mudanças sociais. Porém estes logo se aliaram com os operários em greve, parando literalmente a França, para desespero do presidente Charles De Gaulle, o general e estadista que liderou as Forças Francesas Livres durante a Segunda Guerra Mundial. Com seus discursos inflamados em tom paternal, toma medidas drásticas de repressão, pede paz, ordem e disciplina. O documentário é preciso ao focar a burguesia aliada com a classe média, com as passeatas contrárias ao movimento cultural. Surge a marcha patriótica no Champs-Élysées decorrente de uma acentuada camada da sociedade conservadora, defensora da moral e dos bons costumes, reagindo aos avanços das classes proletárias e estudantis. Mas a violência se espalha ainda mais por todos os cantos da cidade. Um jovem acuado morre afogado ao se jogar no rio Sena; já um policial é prensado numa ponte pela multidão, também não resiste.

Novamente Salles busca interagir com a plateia através deste belo filme-ensaio, assim como fora em Santiago, justapõe, através de imagens de arquivo, uma série de acontecimentos diferentes da década de 1960, para marcar com retumbância este vigoroso painel relevante da Revolução Cultural que se espalhou por países europeus, chegando até a América do Sul. Eis uma rebeldia indomável que tomava conta de jovens ativistas insatisfeitos que bradavam por uma causa libertária, sem amarras e preconceitos, através de uma entusiasta onda mágica dos sonhos decantados. Queriam mudanças, apesar de não terem exatamente um objetivo definido, como se constata no encontro com o cultuado filósofo do existencialismo Jean-Paul Sartre. O cenário era de substanciais transformações comportamentais, lideradas pelos estudantes. Porém o encontro com os sindicalistas engajados no Partido Comunista que selou um acordo sobre as condições de trabalho, horas extras e espaços dignos nas fábricas, acabou por jogar um balde de água fria neste movimento muito maior que as relações de trabalho entre sindicatos e empregados, tendo em vista a frustração de centenas de milhares de simpatizantes pelo sentimento de perda da ilusão pela realidade cruel.

O realizador mostra com clareza os desdobramentos na antiga Tchecoslováquia, com os tanques da União Soviética invadindo e tomando conta das ruas no famoso episódio denominado de Primavera de Praga. Morre inexplicavelmente uma liderança estudantil, o que acarreta na imolação de um outro ativista político, que ao fenecer queimado chama a atenção dos compatriotas inebriados pela letargia. Milhares de pessoas acompanham o cortejo fúnebre num silêncio dolorido, mas com indignação nos olhos daquela população esmagada moralmente pelos russos. Houve respingos no Brasil em plena ditadura militar, com o assassinato do estudante paraense Edson Luís Souto, de apenas 17 anos, quando jantava no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, diante da invasão da polícia militar. Com o desfecho trágico, uma multidão acompanha o enterro e protesta pelas ruas com cenas de violência pela repressão do regime. Enquanto na Europa havia a contrariedade ao domínio comunista; na China, as crianças decoravam os ensinamentos do Livro Vermelho ditado pela URSS, maltratando professores e intelectuais.

Salles coloca com exatidão o material de arquivo organizado em capítulos desta seleção minuciosa, através de uma narrativa de boa cronologia dos fatos sobre os temas abordados. Devem ser guardados na memória pelas imagens históricas capturadas deste acervo cultural pesquisado. Está bem focalizado o líder da revolta, Daniel Cohn-Bendit, atualmente faz parte do governo de Emmanuel Macron, presidente de centro de direita. Há reveladoras cenas de dramaticidade com a intensidade dos manifestantes, ora calados e sombrios; ora correndo e se expondo nos conflitos efervescentes das ruas. O diretor tem méritos inquestionáveis por se afastar da fórmula recorrente já gasta dos grandes dramas épicos sobre aqueles anos conturbados, porém quase que esgotados. É proposta uma análise a partir de elementos pesquisados, sem desprezar a interação do movimento com o espectador. Deixa evidente a ideia de que os estudantes eram vistos tão somente como anarquistas que iriam contra os interesses de Moscou. Fica marcada a falta de abertura para as mulheres, negros, imigrantes e homossexuais, todos sem voz naqueles duros anos de 1960, abrindo espaços para as conquistas que viriam muito tempo depois. No Intenso Agora é uma magistral obra de registro que simboliza a liberdade de expressão, hoje tão vilipendiada pelo conservadorismo reacionário.

2 comentários:

Teresa Cristina disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Teresa Cristina disse...

Que espetáculo!!!
Não se pode perder .
Obrigada por postar.