Memórias da História
João Moreira Salles é um especialista em documentários como
mostra sua filmografia. Dirigiu dois extraordinários filmes do gênero que
ficaram na retina do espectador acostumado com obras marcantes. Primeiro foi Nelson Freire (2003), sobre a carreira e
a vida do mestre do piano, retratando através de vários blocos a rotina do
pianista e sua contagiante música em concertos e recitais. Depois brindou
seu público com Santiago (2007),
abordando a vida do mordomo que faleceu logo após as filmagens, além da carta
filmada endereçada aos irmãos, num compartilhamento das memórias familiares de
rara sensibilidade poética. Houve interrupções por alguns anos na conclusão deste filme,
tendo em vista algumas dificuldades logísticas. É dele também Entreatos (2004), sobre os bastidores da
campanha política de Lula em 2002.
Dez anos após a última realização, o cineasta retorna com
todo fôlego para dirigir com muita sutileza e delicadeza o emblemático No Intenso Agora, além de escrever o
roteiro e o texto de apresentação na primeira pessoa. A revista Variety fez
rasgados elogios e o apontou como uma das melhores produções exibidas no último
Festival de Berlim. E ainda foi escolhido como o melhor filme brasileiro pela
Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS). Os primeiros
trechos deste longa-metragem revelam uma família alegre se divertindo, e o
diretor aparece ainda como uma criança. O ponto de partida está nos filmes
caseiros resgatados dos pertences particulares oriundos das viagens da mãe do
cineasta, verdadeiras raridades num achado fascinante destas preciosas joias,
retratando as imagens com registros históricos sobre a passagem pela China, em
1966, sob o regime de Mao Tsé-Tung, nesta experiência vivenciada na época da
Revolução Cultural.
O mote familiar é o pretexto para retratar com extrema
habilidade os inesquecíveis confrontos de maio de 1968, que brotaram como uma
força avassaladora das ruas de Paris, sob a égide revolucionária pelos
protestos estudantis pelas mudanças sociais. Porém estes logo se aliaram com os
operários em greve, parando literalmente a França, para desespero do presidente
Charles De Gaulle, o general e estadista que liderou as Forças Francesas Livres
durante a Segunda Guerra Mundial. Com seus discursos inflamados em tom paternal,
toma medidas drásticas de repressão, pede paz, ordem e disciplina. O
documentário é preciso ao focar a burguesia aliada com a classe média, com as
passeatas contrárias ao movimento cultural. Surge a marcha patriótica no
Champs-Élysées decorrente de uma acentuada camada da sociedade conservadora,
defensora da moral e dos bons costumes, reagindo aos avanços das classes
proletárias e estudantis. Mas a violência se espalha ainda mais por todos os
cantos da cidade. Um jovem acuado morre afogado ao se jogar no rio Sena; já um
policial é prensado numa ponte pela multidão, também não resiste.
Novamente Salles busca interagir com a plateia através deste
belo filme-ensaio, assim como fora em Santiago,
justapõe, através de imagens de arquivo, uma série de acontecimentos diferentes
da década de 1960, para marcar com retumbância este vigoroso painel relevante
da Revolução Cultural que se espalhou por países europeus, chegando até a
América do Sul. Eis uma rebeldia indomável que tomava conta de jovens ativistas
insatisfeitos que bradavam por uma causa libertária, sem amarras e
preconceitos, através de uma entusiasta onda mágica dos sonhos decantados.
Queriam mudanças, apesar de não terem exatamente um objetivo definido, como se
constata no encontro com o cultuado filósofo do existencialismo Jean-Paul
Sartre. O cenário era de substanciais transformações comportamentais, lideradas
pelos estudantes. Porém o encontro com os sindicalistas engajados no Partido
Comunista que selou um acordo sobre as condições de trabalho, horas extras e
espaços dignos nas fábricas, acabou por jogar um balde de água fria neste
movimento muito maior que as relações de trabalho entre sindicatos e
empregados, tendo em vista a frustração de centenas de milhares de
simpatizantes pelo sentimento de perda da ilusão pela realidade cruel.
O realizador mostra com clareza os desdobramentos na antiga
Tchecoslováquia, com os tanques da União Soviética invadindo e tomando conta
das ruas no famoso episódio denominado de Primavera de Praga. Morre
inexplicavelmente uma liderança estudantil, o que acarreta na imolação de um
outro ativista político, que ao fenecer queimado chama a atenção dos
compatriotas inebriados pela letargia. Milhares de pessoas acompanham o cortejo
fúnebre num silêncio dolorido, mas com indignação nos olhos daquela população
esmagada moralmente pelos russos. Houve respingos no Brasil em plena ditadura
militar, com o assassinato do estudante paraense Edson Luís Souto, de apenas 17
anos, quando jantava no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, diante da
invasão da polícia militar. Com o desfecho trágico, uma multidão acompanha o
enterro e protesta pelas ruas com cenas de violência pela repressão do regime.
Enquanto na Europa havia a contrariedade ao domínio comunista; na China, as
crianças decoravam os ensinamentos do Livro Vermelho ditado pela URSS,
maltratando professores e intelectuais.
Salles coloca com exatidão o material de arquivo organizado
em capítulos desta seleção minuciosa, através de uma narrativa de boa
cronologia dos fatos sobre os temas abordados. Devem ser guardados na memória pelas
imagens históricas capturadas deste acervo cultural pesquisado. Está bem
focalizado o líder da revolta, Daniel Cohn-Bendit, atualmente faz parte do
governo de Emmanuel Macron, presidente de centro de direita. Há reveladoras cenas
de dramaticidade com a intensidade dos manifestantes, ora calados e sombrios;
ora correndo e se expondo nos conflitos efervescentes das ruas. O diretor tem
méritos inquestionáveis por se afastar da fórmula recorrente já gasta dos
grandes dramas épicos sobre aqueles anos conturbados, porém quase que
esgotados. É proposta uma análise a partir de elementos pesquisados, sem
desprezar a interação do movimento com o espectador. Deixa evidente a ideia de
que os estudantes eram vistos tão somente como anarquistas que iriam contra os interesses
de Moscou. Fica marcada a falta de abertura para as mulheres, negros,
imigrantes e homossexuais, todos sem voz naqueles duros anos de 1960,
abrindo espaços para as conquistas que viriam muito tempo depois. No Intenso Agora é uma magistral obra de
registro que simboliza a liberdade de expressão, hoje tão vilipendiada pelo
conservadorismo reacionário.
2 comentários:
Que espetáculo!!!
Não se pode perder .
Obrigada por postar.
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