quarta-feira, 11 de setembro de 2024

O Último Pub

  

Solidariedade e Xenofobia

Defensor ferrenho e inarredável das causas sociais em que estão envolvidas quase sempre as classes operárias oprimidas e pisoteadas pelo sistema, o diretor inglês Ken Loach é um humanista por natureza, e ganhou pela segunda vez a Palma de Ouro com, Eu, Daniel Blake (2016). Fez um retrato crítico e fiel sobre o controverso sistema previdenciário da Grã-Bretanha estampado como poderosa denúncia de impasse burocrático naquele fabuloso drama social sobre a perversa reforma com mudanças radicais na Previdência Social. O título foi mais uma parceria com o roteirista indiano Paul Laverty, com quem realizara A Canção de Carla (1996), O Meu Nome é Joe (1998), Ventos da Liberdade (2006), com o qual arrebatou a primeira Palma de Ouro, À Procura de Eric (2009), entre tantas realizações da bem-sucedida e inseparável dupla. No seu penúltimo filme, uma espécie de continuidade da obra anterior, realizou o magnífico Você Não Estava Aqui (2019), abordou o tema da moda: o empreendedorismo. Mostrou que nem tudo soa como algo positivo ao se escancarar a falácia da servidão pelo falso milagre do negócio próprio como solução para o desemprego no mundo capitalista. Revela situações pouco divulgadas como a capacidade de idealizar, coordenar e realizar projetos e serviços. A iniciativa de implementar novos negócios ou mudanças com alterações na rotina do empregado envolve o risco. Os conflitos históricos entre direita e esquerda como os princípios inerentes de divergências vão ao encontro do serviço e sua importância como meio de sustento e pilar basilar de esteio do ser humano.

Anunciado pelo cineasta como seu último filme, O Último Pub, denominação do estabelecimento pelo proprietário de O Velho Carvalho (The Old Oak), que empresta o nome ao título original. Conta a história de TJ Ballantyne (Dave Turner), filho de mineiros ingleses que luta para manter seu negócio vivo no decadente vilarejo no condado de Durham, no nordeste da Inglaterra, onde as pessoas estão deixando aquelas terras após o fechamento das minas. O lugar começa a perder o encanto pela falta de oportunidades no trabalho. O protagonista é um homem simples, mas que preserva valores éticos e dignos com sua forma peculiar de ajudar ao próximo, após a chegada de refugiados sírios, se recusa a fazer denúncias, mesmo que coagido. Seu negócio fica ameaçado de fechar, recinto para quem trabalha afogar as mágoas para afastar a opressão. Também é uma tentativa de ressuscitar o espaço para o convívio com a arte. Conhece uma jovem síria, a fotógrafa Yara (Ebla Mari), que mora com a mãe, pois o pai está preso pelo regime do ditador Bashar al-Assad, presidente da Síria, por motivos políticos. Uma amizade fraternal inesperada nasce entre os dois, apesar das tensões e preconceitos que pesam na vila, como na cena comovente do cãozinho que faz companhia na solidão ao personagem central, que acaba se envolvendo num ataque brutal dos pitbulls de uma milícia de jovens fascistas.

Os diálogos são bem construídos nesta narrativa de puro realismo dramático, através da estupenda fotografia estática de Robbie Ryan. Eis um retrato da dignidade humana com atos e gestos do dia a dia de solidariedade em contraste com situações extremas de xenofobia abjeta, principalmente dos homens em sua maioria com atitudes recorrentes perversas e racistas. Ao mesmo tempo, as mulheres se posicionam mais solidárias e compreensivas, num olhar feminista de grandeza e compreensão, no enxuto roteiro de Paul Laverty, novamente presente na velha parceria com o diretor. A valoração moral e ética é colocada em xeque sobre o trabalho para dignificar o homem e não humilhá-lo como forma de destruição dos alicerces do microcosmo familiar em consonância com a imigração forçada. É simbólica a cena em que os personagens visitam a catedral, construída pelos trabalhadores no século XIX, como um passeio cultural de volta ao passado. Porém, causa constrangimento e empatia no espectador atento às coisas do cotidiano a triste saga dos refugiados pela sobrevivência e luta pelo sustento dos filhos, como honra inarredável. Há algumas semelhanças com o drama Bagdá Está em Mim (2021), do diretor iraquiano Samir, que aborda com profundidade temas como os tabus da sociedade árabe, a religião, o machismo de seu povo, a homofobia explícita, os aspectos culturais e principalmente a política do passado ainda reinante no Iraque. Fez um retrato alegórico fiel e com tintas fortes do regime arbitrário, de poucos ou quase nenhum direito, representado simbolicamente por um grupo de imigrantes que transformam o café londrino Abu Nawas num refúgio de iraquianos que já não têm mais espaço em seu país. Buscam preservar com galhardia sua cultura em meio a discutíveis valores ocidentais.

O veterano Loach, de 88 anos, demonstra vigor na condução da sua realização, embora sombria e sem grandes perspectivas para um olhar mais promissor nas relações entre imigrantes e nativos, como vemos na cena em que Yara tem sua máquina fotográfica partida depois de ser arrancada à força por um jovem bêbado, que representa o desemprego, grita diversos impropérios contra os refugiados sírios naquela comunidade de ex-mineiros. Ali se estabelece o conflito entre classes, as vítimas da barbárie da civil na Síria com a guerra social dos proprietários, trabalhadores e desempregados ingleses, nesta temática universal abordada com sensibilidade sobre a intensidade da correria diária para o sustento. O desespero toma conta do dono do pub, quando fica num beco sem saída, vem a notícia da morte libertadora no exterior. No funeral, toda a comunidade vem prestar condolências de todas as matizes e nacionalidades. Enfatiza que não se pode desistir nunca de mudar o comportamento hostil das pessoas, quando parte dos agressores ao pub reconsideram suas condutas. O ato final como elemento pacificador simboliza e faz refletir sobre a nossa existência e o amor ao próximo como humanismo incomum como uma luz no futuro. As imagens do epílogo inusitado são apropriadas e desmistificadoras na tela como redenção catártica.

Cria-se com extrema magia cinematográfica um doloroso painel de improbabilidades, com contundência pelas cenas de uma realidade amarga das vicissitudes advindas da causa pela sobrevivência. Há uma construção rica de elementos sem retóricas, afastando as grandes armadilhas que poderiam levar para uma história apelativa. Um drama intenso sobre a perversidade xenofóbica imperialista que enobrece o cinema. Um enredo emocionante sobre os dissabores dos agentes honestos e com fibra de resistência, que leva para o desequilíbrio dos que têm menos poder de reivindicação na sociedade. O conflito é fruto de um sistema instável e selvagem que vira as costas para os menos favorecidos refugiados quando estes precisam, para lançar um olhar reflexivo, através de tintas bem marcantes sobre os poucos menos favorecidos pelas circunstâncias. Um filme eloquente sobre a dignidade e a ética de uns, na qual as guerras, a desesperança pelas relações sociais, o ódio, o identitarismo com seu conjunto de características próprias. A solidariedade na luta de classes, embora o desfecho seja de libertação diante das nefastas manchas por condutas reprováveis e desumanas dos racistas, com um viés arrasador, melancólico e auspicioso. É significativa a importância dada às palavras nos diálogos e as imagens reveladoras, sem maniqueísmo, nesta obra admirável no conteúdo e fabulosa no contexto. Ken Loach encerra sua carreira com chave de ouro, embora haja a esperança de que a promessa não se cumpra.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Motel Destino

 

Triângulo Amoroso

Karim Aïnouz tem uma filmografia voltada para a solidão, as perdas, a opressão feminina, o abandono e os encontros inusitados. Estas temáticas são encontradas no bom e instigante Madame Satã (2001); no excelente O Céu de Suely (2006), no qual brilha com o drama sobre a classe pobre brasileira, quando a protagonista tenta rifar seu próprio corpo para conseguir dinheiro para comprar passagens de ônibus, ir para bem longe e iniciar uma nova vida com seu filho; em codireção com Marcelo Gomes realizou o controvertido Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), em que o foco está na saudade da esposa e da família deixada para trás; em O Abismo Prateado (2011), retrata o abandono e a epopeia para encontrar o caminho de volta para a lucidez, colocar a cabeça no lugar após o trauma violento do desprezo inexplicável com o rompimento do vínculo do amor; já no magnífico Praia do Futuro (2014), tem um olhar com maturidade sobre a relação homoafetiva pelo vínculo amoroso estabelecido entre um salva-vidas com um turista alemão, em uma estrutura impecável e sem superficialidades, diante de lacunas entremeadas pelo silêncio para atingir um admirável resultado inspirado no cinema de Rainer Werner Fassbinder.

Vencedor na Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes, e indicado para representar o Brasil no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2020, A Vida Invisível (2019), seu filme mais profundo, equilibrado e abrangente, por ser complexo e eloquente na meditação sobre o conservadorismo familiar, o castramento da liberdade individual pela opressão, o estupro conjugal como forma de propriedade do corpo da mulher pelo marido e a procriação como o fim, sufocante e angustiante em sua plenitude, torna-se a obra-prima do diretor. Depois do documentário Marinheiros das Montanhas (2021) e o primeiro filme de ficção filmado em inglês Firebrand (2023), retorna com Motel Destino, com o roteiro assinado por Wislan Esmeraldo e Maurício Zacharias, ambientado em um estabelecimento de beira de estrada no fascinante litoral cearense, através da bela fotografia da francesa Hélène Louvart. Representou o Brasil no Festival de Cannes, mas sem êxito na busca da Palma de Ouro, embora aplaudido pela plateia por 12 minutos. A trama gira em torno de um triângulo com muito erotismo, boas porções de amor e muito sexo apimentado. Heraldo (Iago Xavier) é um rapaz de origem humilde que chega ao motel de beira de estrada, que dá título ao longa-metragem, em fuga do crime organizado, no qual uma facção poderosa está em seu encalço. Busca novos ares e, antes de tudo, sua sobrevivência, ao arrumar emprego ali. Tudo vai mudar naquele local aparentemente tranquilo e de um cotidiano rotineiro de clientes em busca apenas do prazer e fantasias sexuais.

O destino transforma radicalmente a vida do casal dono do estabelecimento, que é administrado pelo temperamental Elias (Fábio Assunção), um homem bruto, contraditório, possessivo e dominador, que tem na sua fogosa esposa Dayana (Nataly Rocha), uma espécie de propriedade. Às vezes, submissa; em outras, parece uma mulher liberal pela rebeldia. O realizador conta a história com certa crueza para mostrar um realismo naquele palco onde as crônicas da realidade brasileira se cruzam e se entrelaçam. Com tintas fortes, retrata o jovem tentando fugir de um ambiente hostil daquela gangue que mata por muito pouco. Logo, a curiosidade de Dayana desperta, e um sentimento de liberdade toma conta de seus sentimentos e desejos frustrados que sempre foram abafados pelo marido. Uma perigosa dança de amor e sedução inicia com um jogo de poder e aspirações mais altos entre ela e o fugitivo se estabelecem. O diretor retoma a temática da opressão feminina, assim como abordou, principalmente, em O Céu de Suely e A Vida Invisível. Outros dois temas recorrentes como a solidão e as perdas, também abordadas em sua filmografia, estão presentes no meio desse cenário para um plano arrojado de independência que começa a ser perpetrado. Eis o intimismo de uma juventude nordestina que tiveram seus sonhos de voos mais altos reprimidos por uma elite conservadora que controla sistematicamente pela ausência de uma consciência equânime de classes. A insubordinação e o conflito soam como elementos para uma saída improvável, mas possível até certo ponto.

O diretor lança tintas fortes e dá uma virada no enxuto roteiro. A traição, a culpa e a fuga estão presentes neste enredo conduzido com astúcia ao ir direto na construção de uma trajetória entrecortada por uma festinha chamada de “baguncinha” na beira de uma piscina, regada por bebidas e churrasco. São os destinos inversos traçados pelo acaso, fruto da intolerância que se entrecruzam com resultados adversos por caprichos hostis arraigados nos ditames truculentos de uma época de costumes machistas, ainda remanescentes. Há uma exposição de fragilidades da mulher vitimada pelo absurdo advindo de hábitos impiedosos ainda incrustados no microcosmo familiar, como da personagem que tenta se reencontrar com um novo amor, embora clandestino. O desfecho trará novas luzes para um futuro dela e os objetivos do rapaz que quer ir embora para São Paulo, que não foram totalmente derrotados, mesmo que a distância possa ser um elemento de frustração. Ainda há uma luz no fim do túnel como um sopro de resgate pela dignidade quando revelada de maneira mesmo convencional pela morte abrupta, no epílogo redentor da liberdade revestido de algum humanismo como ingrediente essencial, após as dores, medos e ansiedades contumazes. A aniquiladora submissão mesclada com a busca da emancipação presente somando-se às dores pretéritas que ficarão para trás.

O cineasta flutua e dialoga com mais de um gênero, indo do noir até a pornochanchada, passando pelo suspense, ainda que seja menor pelo que já realizou. A reflexão é complexa ao passar pelo medo, a submissão, a liberdade, as fantasias, o erotismo, para chegar nas fragilidades dos amantes. O sonho do futuro soa como estímulo para a iniciativa da incômoda realidade autônoma, após os transtornos dos percalços oferecidos pelo destino. As perdas são reflexos de um contexto de diferenças sociais, mas que vão se encaixar e tornar uma relação pouco consistente, já com a presença de um dos personagens como símbolo do passado na ausência transformadora daquela rotina de animais espalhados pelas paredes de pintura surreal dando asas à imaginação naquele aparato pirotécnico. São causas e contrastes por extensão para subir o grau e intensificar o sensorial. O tempo salta para uma outra realidade, quando se afasta do ambiente diário dos sons de gritos, gemidos e sussurros, para ingressar na sugestão da emoção motivadora existencial, diante da sensação de vazio e isolamento. Uma abordagem intensa com uma atmosfera sombria sobre a natureza do universo feminino e sua luta diária no meio machista, faz com que o drama regido pela tensão entre a violência e o prazer tome contornos para um desfecho duro, mas promissor, após o confinamento dos personagens ecoa como uma alegoria de libertação do enclausuramento.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

O Mal Não Existe

 

A Natureza Ameaçada

Ryüsuke Hamaguchi é um dos cineastas mais importantes do Japão na atualidade, principalmente depois de se consagrar com Drive My Car (2021), justamente premiado como Melhor Filme Internacional no Oscar, e também levou o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes. Teve o sucesso merecido ao mesclar teatro com cinema numa perfeita estrutura cênica na montagem e edição de três horas de duração. A lenta trajetória o torna admirável e reflexivo ao adaptar livremente para a telona um conto homônimo do livro Homens Sem Mulheres, do famoso escritor conterrâneo Haruki Murakami. Um filme contemplativo das viagens para o interior de cada personagem com uma imensidão infinita de sentimentos abalados. Presos a um passado, onde as amarras parecem não poder libertá-los, ou por consequência fazer entender de vez o destino traiçoeiro daqueles sentimentos doloridos. Poucos gestos ou confissões, mas significativos, para revelar as complexas dúvidas e a melancolia incrustada naqueles dois seres humanos que carregam emoções reprimidas que assombram e reduz a capacidade de lucidez. Elementos intrínsecos não faltam para a construção psicológica e suas complexidades dos personagens focados numa saga sobre perdas, danos, culpas, arrependimentos e renovações de um extraordinário drama familiar dos desajustes do amor até a solidão implacável pelas decepções e sofrimentos existenciais.

O diretor está de volta com O Mal Não Existe, vencedor do Grande Prêmio do Júri e do Prêmio da Crítica no Festival de Veneza. Com um roteiro enxuto que traz sua assinatura, pode ser encaixado no gênero do ecodrama mesclado com fábula adulta, por ser provocativo e contemplativo sobre a preservação da natureza num meio ambiente invadido por pessoas inescrupulosas de um capitalismo selvagem pós-pandemia, destruidor e sem limites. Já no longo prólogo o espectador é colocado no meio da floresta em contato direto com as árvores, as brechas entre galhos e folhagens, o chão, e a natureza deslumbrante pelos movimentos da câmera. Uma crítica política e social na construção de um panorama denso com muito realismo para contar sobre um projeto escuso de ameaça pelos planos de uma empresa para um glamping na região, ou seja, acampamentos luxuosos destinados a turistas que desejam se isolar em florestas através de cabanas. Vai de encontro à defesa ferrenha do ecossistema bem defendido por Takumi (Hitoshi Omika) que mora com sua filha, Hana (Ryo Nishikawa), numa casinha na aldeia de Mizubiki, perto de Tóquio. O protagonista, na parte inicial da história, mostra como leva sua vida pacata e tranquila, cortando árvores velhas e secas com uma motosserra e picando lenha com um machado, coleta água límpida num córrego com seu curso normal, levando para os demais moradores, entre eles a dona de um pequeno restaurante de comida caseira, como uma poesia nos seus encantos, sob as lentes das imagens fascinantes do fotógrafo Yoshio Kitagawa.

A luta de uma comunidade contra a invasão humana corporativa e seus objetivos financeiros é o fator de tensão na história. O fatídico projeto é apresentado pelos despreparados representantes de uma agência de talentos Takahashi (Ryuji Kosaka) e Mayuzumi (Ayaka Shibutani), como na apresentação da “fuga” para se conectar com a natureza, com mudanças estruturais do curso da água e os esgotos cloacais. A pressa para concluir os negócios está estampada na arrogância do empresário interessado com artimanhas sem ética e sem escrúpulos para não perder os subsídios governamentais. Não conseguem convencer, num primeiro momento, os moradores em uma tensa e reveladora assembleia. O conflito de ideias e interesses são flagrantes no panorama dos originários expondo todas as suas preocupações diante da interferência externa e agressiva ao local preservado com um santuário natural que sofreria um desequilíbrio da natureza. O que pode ser bom para a empresa que visa turistas almejando apenas o lucro rápido acaba sendo um pesadelo para os nativos ao afetar diretamente suas vidas. A convivência ficará insustentável para sobrevivência e irá marcar fundamentalmente como elemento de mudança para a ruptura no relacionamento e a simbiose do ecossistema natural e o homem na subsistência dentro da aldeia. Remete com muita similitude e astúcia para a temática abordada no badalado filme Eo (2022), do veterano diretor polonês Jerzy Skolimowski, e se aproxima ainda mais do drama perturbador da Islândia Lamb (2021), do diretor Valdimar Jóhannsson, retratando a revolta da natureza agredida de maneira egoísta, sórdida e pusilânime.

Hamaguchi conduz a narrativa com muita leveza, com cenas de bons momentos cômicos e de mordaz ironia, embora a sensação de desconforto seja evidente em um cenário de conflito iminente que cresce diante dos atrativos opostos até se tornarem insustentáveis. Os interesses se contrapõem e a ecologia reage na iminência do atentado à fauna e à flora. A filha do personagem central passeia pela floresta em harmonia com a natureza numa relação afetiva dela com os veados e corças, até desaparecer misteriosamente. A violência explode no desfecho deste drama denso e sombrio com crueldade nos pequenos detalhes, sem se afastar da contemplatividade e da discussão climática e provocativa como um alerta geral para o olhar no futuro. O ritmo lento da tensão pelo silêncio constante leva para um grau de imprevisibilidade permanente ao conduzir para uma surpresa que está por acontecer a qualquer momento na reviravolta surpreendente do roteiro para um final impactante que permite interpretações diferentes. O Mal Não Existe é um filme contagiante e traz na sua essência o lado nebuloso de um certo mistério no bojo da narrativa. Um epílogo catártico, porém com o viés redentor e significativo do conjunto de elementos do mundo natural advindos dos campos, árvores e animais decorrentes do ecossistema. Soa como um soco no estômago do espectador para sair da zona de conforto. Qualquer ação violenta abrupta haverá uma resposta de punição à humanidade pela revolta do meio ambiente vilipendiado. Um aceno de que a natureza acusou o golpe das armadilhas que foram impostas numa magnífica reflexão sobre as consequências diante da interferência da dita civilização.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Ervas Secas

 

O Sentido da Vida

O maior cineasta turco em atividades, Nuri Bilge Ceylan, de 65 anos, está de volta com Ervas Secas, um drama que aborda com profundidade a sociologia, a filosofia, os aspectos sociais e éticos ao redor. Lança um olhar sobre os efeitos internos de sentimentos de alienação e de afastamento, mas também interpreta as lutas dos moradores dessas regiões, a difícil vida e a dinâmica geográfica. Um filme de 198 minutos pode assustar no primeiro momento, mas flui e anda com uma ótima dinâmica do multifacetado roteiro, embora os diálogos sejam longos. Os conflitos escolares entre professores, alunos e direção soam como elementos alegóricos para retratar o sentido da existência de momentos marcantes na vida de personagens em busca de uma nova realidade. Salta aos olhos uma sociedade conservadora com raízes eivadas de tabus atrelada flagrantemente aos abusos autoritários. São simbolizadas pelos desmandos da derrocada e a divisão dos membros daquele microcosmo em iminente decomposição moral diante da luta pela dignidade humana dos vínculos a serem rompidos numa jornada emocional e visualmente deslumbrante. O filme estreou na Seleção Oficial do Festival de Cannes, onde Merve Dizdar venceu o Prêmio de Melhor Atriz e se tornou a primeira mulher turca laureada na história do festival. Foi selecionado oficialmente para disputar a Palma de Ouro em 2023, sendo indicado para representar a Turquia no Oscar de Melhor Filme Internacional deste ano. Pode ser visto nas plataformas Amazon Prime Video, Globoplay e Claro Now.

Ceylan já havia vencido a Palma de Ouro em Cannes e o prêmio da Federação Internacional de Críticos (FIPRESCI) com a obra-prima Winter Sleep (2014), batizado no Brasil com o título Sono de Inverno, possivelmente sua maior realização. Fez uma reflexão profunda sobre a existência e seu sentido na essência da vida, os efeitos do tédio e o ressentimento de um homem em crise e com a sensação de perda, acompanhado da solidão e da velhice que afloram de forma devastadora. Com o longa Distante (2002) venceu o Grande Prêmio do Júri de Cannes e de Melhor Ator; levou a láurea de Melhor Diretor em Cannes pelo perturbador e enigmático Três Macacos (2008). Arrasou depois com o inesquecível Era Uma na Anatólia (2011), pelo qual abocanhou novamente o Grande Prêmio do Júri em Cannes. Mescla de filme policial noir com drama social numa aparente e singela investigação de um crime, durante uma noite inteira com o desfecho no outro dia, em que nada funciona, a começar pelos arcaicos carros corroídos pelo tempo. Solidificou-se como um realizador preocupado com as questões sociais e a falência do sistema turco, onde a burocracia está presente no caos instalado nas improvisações que vão desde a polícia até a medicina, passando por um judiciário inócuo para resolver um simplório crime numa aldeia rural encravada dentro de uma estepe rodeada de colinas. Em A Árvore dos Frutos Selvagens (2018), seu penúltimo filme, mostra a crise de um jovem apaixonado por literatura que sempre sonhou em se tornar um grande escritor e ter sua primeira publicação, na qual aposta tudo. Recém-formado na faculdade, retorna à região em que nasceu, mas vive às turras com o pai, um professor fracassado em meio à complexidade da situação em que se encontra pela decadência profissional, moral e familiar, e um apostador contumaz no hipódromo.

Ervas Secas foi baseada no diário do escritor e professor Akin Aksu durante seu serviço obrigatório de três anos na Anatólia. Assinou o roteiro em parceria com o diretor e Ebru Ceylan, e levaram cerca de um ano para concluir em coprodução com a França, Alemanha e Suécia. A primeira versão ficou enorme, duas vezes maior que Winter Sleep. Retrata com uma melancolia nostálgica de um passado idealizado e uma desesperança incomum na busca do sentido em vidas presas à deriva na trajetória do professor de meia-idade, Samet (Deniz Celiloğlu), que espera ser nomeado para Istambul após cumprir uma transitória passagem obrigatória em uma pequena aldeia, na qual o personagem central chama constantemente de “buraco”. Depois de muito tempo, vai perdendo a esperança de escapar daquela vida sombria e de pouco sentido. Ceylan demonstra ser um admirador de Samuel Beckett ao frisar no enredo a longa imaginação da transferência, assim como os personagens esperam Godot. Porém, seu colega Kenan (Musab Ekici) tenta ajudá-lo como pode para recuperar seu objetivo. Como retribuição, apresenta a ex-professora ideologicamente progressista que tem uma perna mecânica devido a uma bomba que explodiu numa manifestação, Nuray (Merve Dizdar). Ela luta para superar as adversidades, porque é preciso continuar vivendo, mas logo a traição como elemento de vingança, machismo e poder se estabelece naquele triângulo amoroso.

A remota aldeia parece ter apenas duas estações: o inverno inclemente coberto de neve intensa funciona como um personagem opressor ao amplificar a sensação de afastamento daquele lugarejo inóspito e completamente isolado, e um verão que revela as suas altas belas pastagens. O protagonista desenvolve uma obsessão pouco recomendável por uma aluna ingênua de 14 anos, Sevim (Ece Bagci), quando se derrama em delicadezas e elogios. Uma denúncia desencadeada pela descoberta de uma carta de amor leva a uma imersão na identidade psicológica dos personagens envolvidos. Contrário ao instigante drama sobre pedofilia A Caça (2012), de Thomas Vinterberg, o realizador afasta a suposta dúvida sobre o que verdadeiramente aconteceu com o registro da ocorrência pela conduta inapropriada. No questionamento sobre a responsabilidade, Ceylan não dá margens para mal-entendidos, embora sinalize o revanchismo adolescente como fato motivador, mesmo que a conduta daquele professor agradável, porém onipotente não seja correta, como presentear a aluna com um espelho e solicitar segredo. É uma situação ambígua e desproporcional pela forma autoritária que se porta na sala de aula, como na tirânica cena emblemática num surto de ego ferido. O docente vocifera que são pessoas ignorantes ao ser pressionado pela acusação que complicará seus planos, acaba atingindo todos os alunos ao decretar que são agricultores que não passam de “plantadores de batatas”. A ambivalência é o ponto alto da trama, por não conduzir como um personagem eticamente correto, moral e de comportamento nada exemplar. Justamente as contradições e tormentas apresentadas levam para a percepção do educador desiludido que brada o “cansaço da esperança”.

Assim como no recente A Sala dos Professores (2023), do diretor germânico, de ascendência turca, Ilker Çatak, eis uma realização com uma temática universal sobre as angústias através de uma ética que flutua por um terreno pantanoso na temática sobre os discentes e o corpo docente com a desconfiança dos colegas. Uma imersão na vida de um personagem contraditório que provoca reflexões sobre a educação, com a insatisfação dos professores como consequência de uma má gestão pública. Um mergulho sociológico-filosófico para criar personagens consistentes, fortes ou frágeis, vencedores ou vencidos, pouco importa. Todos com alma e coração, remete para os diálogos literários em uma das melhores cenas, como o longo debate entre Samet e Nuray, mesmo com visões discordantes ideologicamente. Invoca com facilidade a técnica para prender o espectador, abordando o cotidiano que se espraia num contexto de grande cinismo e domínio do poder, tanto do secretário de educação e do professor de personalidade complexa, sobre os inferiorizados pelas circunstâncias pessimistas. O desenrolar da história traz um aprofundamento intenso nos questionamentos implacáveis, pela maneira elegante da condução com um toque de classe com extremo realismo de cenas de som direto ao melhor estilo do rigor formal clássico típico do diretor. Há movimentos interessantes de uma câmera em longos planos-sequência, raros contraplanos curtos, captando as imagens fascinantes e a valorização primordial da importância da palavra, neste regresso à Anatólia. Além disso, a breve revelação dos bastidores soa com um gesto mágico inserido, no qual só um mestre é capaz. Uma obra extraordinária da existência e o seu sentido que faz refletir sobre os conflitos como mola propulsora para ir ao encontro das decorrentes fragilidades dos aspectos sociais e éticos. “Um frescor sensível e literário, chekhoviano como o inferno, sobre a passagem do tempo e os sentimentos que renascem”, sentenciou o crítico Louis Guichard, doTélérama.

sexta-feira, 28 de junho de 2024

A Sala dos Professores

 

Educação e Valores Éticos

Indicado para representar a Alemanha no Oscar de Melhor Filme Internacional deste ano, A Sala dos Professores tem na direção o diretor germânico, de ascendência turca, Ilker Çatak, de 40 anos, em seu terceiro longa-metragem, que também assina o roteiro em parceria Johannes Duncker. Demonstra segurança e bons conhecimentos neste drama social em que a escola é o pano de fundo para tratar de vários problemas da sociedade contemporânea. A história traz reflexões necessárias, mas de forma sutil, embora haja pouco aprofundamento na temática sobre alunos, professores e a intromissão dos pais nas diretrizes e a educação. Neste mosaico inclui o racismo, a xenofobia, o bullying, o poder da desinformação, o corporativismo entre os docentes, os cancelamentos e a censura à informação, como o jornal realizado pelos jovens. O realizador coloca em xeque uma discussão importante para a população mundial no século XXI: a educação, além de dar algumas pinceladas para refletir sobre o descaso, o preconceito de funcionários que lidam com o ensino, a segurança dos alunos e dos educadores. Está em cartaz nas plataformas Amazon Prime Video, Apple TV, Google Play e You Tube.

A trama gira em torno da história de Carla Nowak (Leonie Benesch, de atuação impecável, surgiu como atriz coadjuvante em A Fita Branca (2009), de Michael Haneke), a idealista professora de matemática e física, recém-chegada, que tenta manter uma relação compreensiva com seus alunos. Apesar dos contratempos inerentes da profissão de educar, a protagonista mostra controle de classe e consegue conectar-se com seus alunos de maneira satisfatória, até eclodir um clima na escola de insubordinação dos estudantes em solidariedade a um coleguinha que teve a mãe, também professora, acusada de furto e ser filmada clandestinamente. Já, antes, uma outra docente fora vista surrupiando moedas de dentro de um cofrinho. Diante dos frequentes desaparecimentos de dinheiro no recinto, os rumos da discórdia se alastram e Carla fica numa situação antagônica e desconfortável. Tudo começa quando um de seus alunos é suspeito do crime e inquirido pela direção de maneira drástica, sem defesa ampla. Lembra em muito o belo drama Monster (2023), do cultuado cineasta japonês Hirokasu Kore-eda, em que na singeleza de uma aparente serenidade escolar há uma busca de construção dos vínculos afetivos com ternura em meio a um julgamento precipitado pelas normas morais vigentes. As imposições da sociedade que nos rege e com elementos fortes de bullying, principalmente entre os grupos de colegas do colégio onde estudam os personagens em foco. Há prática sistemática de atos de violência psicológica, intimidação e humilhação, com duras consequências pela reviravolta do roteiro, que acaba por se tornar uma amarga e cruel realidade.

A Sala dos Professores mostra com realismo a protagonista tentando investigar por conta própria, mas de forma atabalhoada, o caso com consequências inimaginadas por tomar proporções que fogem do controle, afetando o comportamento dos pais e, especialmente, dos discentes. Remete com muita astúcia para a temática também abordada no badalado filme Entre os Muros da Escola (2008), de Laurent Cantet, morto em abril deste ano, no qual a rotina comum de uma escola francesa entra em conflito. Ali são elencadas situações que exploram as relações interpessoais e profissionais que ocorrem dentro da sala de aula, onde os professores mais antigos orientam os mais novos sobre as normas de quem é ou não comportado. Castigos e punições entre outras situações do gênero vêm à tona. Aborda um professor de língua francesa em uma escola na periferia de Paris e seus colegas de ensino que buscam apoio mútuo na difícil tarefa de fazer com que os alunos problemáticos aprendam algo ao longo do ano letivo. Violência e tensões étnicas testam sua paciência e, mais importante, sua determinação como um educador. Já o diretor alemão mostra-se preocupado com o futuro da sala de aula, que torna-se emblematicamente um laboratório. Eis um microcosmo da educação que marcam o movimento migratório no país em que são esboçados problemas como um suspense da premissa carregada em apresentar culpados de imediato. A política de tolerância zero do colégio leva a uma investigação ferrenha que afeta alunos e professores num todo. Mesmo que os valores éticos sejam corrompidos e jogados para longe num contexto de precipitação e preservação de uma moral discutível pelas fragilidades apresentadas.

Çatak é bem mais modesto e metódico e está distante de Cantet e Kore-eda, e ainda mais afastado dos realizadores búlgaros Kristina Grozeva e Petar Valchanov que brilharam no drama social A Lição (2014), premiado no Festival San Sebastián, na Espanha. A dupla conta uma dolorosa história real inspirada em uma notícia estampada na página de um jornal ao acompanhar a saga de uma metódica professora certinha de ensino fundamental de uma escola pública, que descobre um furto de dinheiro dentro da sala de aula. Cria-se uma obsessão em descobrir quem foi o culpado. Um retrato profundo dos valores éticos destruídos num país deteriorado pela corrupção policial no Leste Europeu, como metáfora do regime arcaico comunista em vias de extinção pelas incongruências de uma burocracia emperrante de um sistema superado. A Sala dos Professores tem uma abordagem apenas parecida, mas completamente divorciada de uma análise mais eloquente e incisiva. Em A Lição, a professora é colocada no meio deste turbilhão na tentativa de solucionar o caso e seu envolvimento com uma série de situações inverossímeis que a faz questionar os limites éticos e morais, numa meditação sobre o que é certo ou errado, tendo como mote a ilicitude praticada em plena sala de aula por uma criança. O epílogo é sintomático ao ser estampado pelo olhar de cumplicidade entre mestre e aluno. No filme alemão, a cumplicidade escapa e os valores éticos são esfacelados a mancheias.

Mesmo que não haja uma profundidade no tema da educação e dos subtemas que estão no fulcro do enredo, tais como racismo, xenofobia, bullying, desinformação, corporativismo, cancelamentos e censura, há razoáveis méritos nesta obra interessante. O drama que trata da pedagogia pelo viés da moralidade entra em rota de colisão entre pais, o corpo docente e discente. A confusão que se estabelece na cabeça da personagem central fica caracterizada quando aparecem várias pessoas usando a mesma blusa no corredor, onde a sintonia com a desordem se evidencia como sintoma da claustrofobia completa. Mas o realizador não deixa de explorar uma narrativa recheada de tensão, medo e humilhação como elementos significativos dos questionamentos e a exposição de cicatrizes abertas do processo investigativo dentro do colégio. Remete para uma reflexão com um desfecho inusitado do garoto sendo carregado nos ombros, em câmera lenta, como um anti-herói da estupidez pedagógica alemã vigente e os princípios da tolerância zero que apontou um filho de imigrante como surrupiador. Uma realização com uma temática universal sobre as angústias que ameaçam pela dissimulação através de uma ética que flutua por um terreno pantanoso.

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Cinema Victoria Fecha Novamente

 

Já não bastavam as vidas humanas ceifadas e as astronômicas perdas materiais em maio decorrentes da maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul, temos outra triste notícia para os cinéfilos: fechou outra vez o charmoso Cinema Victoria de Porto Alegre. Estava ali, bem localizado no Centro Histórico, com entrada pela Av. Borges de Medeiros e pela Travessa Acilino de Carvalho (Rua 24 horas). Desaparece do cenário cinematográfico uma lenda do patrimônio da arte, um dos últimos cinemas de rua que foi empurrado nos últimos tempos para dentro de uma galeria. Restam nas calçadas somente a Cinemateca Capitólio, as salas da Casa de Cultura Mário Quintana e o CineBancários.

A trajetória começou com o cinema originalmente se chamando Vera Cruz, tendo sua primeira sessão em 04 de setembro de 1940, com a exibição do longa-metragem A Mulher Faz o Homem (1939), de Frank Capra. No início da década de 1950, fechou pela primeira vez, mas voltou a reabrir em 12 de setembro de 1953, com o nome de Victoria, exibindo A Dupla do Barulho (1953), de Carlos Manga, com Grande Otelo e Oscarito. Fechou novamente em 1998, reabriu em maio de 1999, vindo a fechar outra vez em 2018. Reabriu em julho de 2023, com o badalado filme Barbie, de Greta Gerwig, com Margot Robbie, Ryan Gosling e America Ferrera, e fechou, agora, em maio de 2024.

Assisti ali o meu primeiro filme na Capital gaúcha, o longa-metragem Um Certo Capitão Rodrigo (1971), de Anselmo Duarte, com Francisco Di Franco, Elza Prado e Pepita Rodrigues. Fui levado pela primeira vez naquele suntuoso cinema, com uma entrada principal ao estilo de um teatro, todo atapetado em vermelho para um pisar macio, dois andares de cadeiras de madeiras chiques para se apreciar as películas. Havia uma sala de espera repleta de sofás e poltronas de couro, portarias com funcionários engravatados e nas laterais bilheterias com educadas e belas moças, de cabelos presos e um sorriso carinhoso nos lábios pintados de um batom luzidio.

Existia uma bomboniere com as insuperáveis balas azedinhas e as imperdíveis balas de goma, barras de chocolate ao melhor estilo da Neugebauer. Pipoca não era recomendável, não ficava de bom tom, lembrava pessoas ruminando. Às vezes, os filmes paravam de repente para serem trocados os rolos, um bom momento para uma troca de beijos discretos e um tocar de mãos no escurinho da sala. Um aprazível local de referência para esperar a namorada e assistir em cinemascope naquele telão Tubarão (1975), de Steven Spielberg, E O Vento Levou (1939), de Victor Fleming, Os Dez Mandamentos (1956), de Cecil B. DeMille e o badalado O Exorcista (1973), de William Friedkin.

No Cine Victoria levei meus filhos para assistir comédias, suspense, dramas e quase sempre os infantis da Walt Disney, entre os quais Branca de Neve e os Sete Anões (1937), Cinderela (1950) A Bela Adormecida (1959), além de filmes de piratas, ilhas de tesouros, entre outros. Fica uma ponta de melancolia pelo fechamento e um ciclo que se encerra para um dos últimos cinemas de calçada, ou quase, pois já estava encolhido dentro de uma galeria. Agora, sobrou ali, apenas um espaço vazio que logo poderá ser locado por uma agência bancária, ou um restaurante, ou uma igreja pentecostal, ou ainda, quem sabe uma agência lotérica. Tudo ficou para trás, repleto de reminiscências das lembranças de um passado, na qual a arte e a cultura sucumbiram diante de uma economia combalida e quase sempre em crise. A dor da derrota novamente se faz presente no sombrio e desesperançado futuro do cinema. Triste, mas realista, diante da melancolia em consonância com o saudosismo.

terça-feira, 30 de abril de 2024

Os Colonos

Massacre Indígena

Vencedor do prêmio FIPRESCI da seleção Un Certain Regard no Festival de Cannes 2023, indicado para representar o Chile no Oscar de Melhor Filme Internacional, Os Colonos pode ser visto na plataforma do MUBI. O longa-metragem de estreia na direção de Felipe Gálvez Haberle, que também assina o enxuto roteiro em parceria com Antonia Girardi e Mariano Lilinás, explora os temas da colonização, da violência e do extermínio sofrido pela população indígena na fronteira chilena com a Argentina. Ambientado em 1901, na Terra do Fogo, através da fascinante fotografia do diretor italiano Simone D’Darcangelo que capta lindas imagens com paisagens montanhosas deslumbrantes, para retratar a brutalidade nas fronteiras destes dois países por conta da demarcação tingida com sangue e muita perversidade. Um épico com ingredientes de um faroeste revisionista que lança um olhar corajoso para um triste passado no embalo da instigante trilha sonora de Harry Allouche. O cenário enfatiza um lugar bucólico, às vezes inóspito, no qual os invasores escravizam e matam os indígenas, que lutavam pelos seus direitos numa batalha inglória e desproporcional pelas suas terras. Eram guerras pelas demarcações que colonizavam nas fronteiras do sul da América Latina, mas que surtiria resultados discutíveis dos países latinos independentes.

A trama conta a história das crescentes tensões de três cavaleiros contratados por um rico proprietário de terras de um imenso rebanho de ovelhas, conhecido pela alcunha de rei do "ouro branco", José Menéndez (Alfredo Castro), para "civilizar" a população indígena da região. Na companhia de um truculento tenente escocês travestido de britânico, Mac Lennan (Mark Stanley), do mercenário racista norte-americano, Bill (Benjamin Westfall), está o emérito atirador mestiço silencioso com boas sobras de moral naquele lugar sem lei, Segundo (Camilo Arancibia), que logo irá perceber as reais intenções da missão a ser cumprida, ou seja, expulsar a qualquer preço a população nativa daquelas terras desejadas. O historiador espanhol José Luis Alonso Marchante, no livro "Menéndez, Rey de la Patagonia", conta que a extinção do povo Selk'nam, conhecido como Onas, na Patagônia, foi um extermínio planejado por José Menéndez, a quem é atribuído o desenvolvimento econômico no extremo sul do Chile. Há muitas semelhanças tanto temática como geográfica com Zama (2017), da badalada cineasta argentina Lucrecia Martel, que abordou a história de um homem amordaçado por ele mesmo num contexto ambientado em uma região pantanosa, onde hoje está fincado o Paraguai, no final do século XVIII, na América do Sul. Ali, os colonizadores escravizavam negros e índios, nas guerras pelas independências contra a Espanha. Baseado no romance homônimo de Antonio di Benedetto, publicado em 1956, sobre um funcionário da Coroa Espanhola com a função de assessor jurídico, que aguardava ansiosamente por uma carta do rei para sua transferência daquele lugar onde está (Assunção) para um outro melhor. Mostrava as mentiras da colonização e revelava as trambicagens para se obter resultados satisfatórios.

Para alguns setores da crítica, Os Colonos se aproxima de Assassinos da Lua das Flores (2023), o western épico do veterano cineasta Martin Scorsese, adaptado do best-seller homônimo do escritor David Grann, também baseado em uma história real. Apontava para a verdadeira faceta ambiciosa e preconceituosa sentida e nutrida pelos nativos, além da busca incessante do protagonista por dinheiro e o envolvimento direto com uma engrenagem obscura. Mostrava os planos diabólicos para se apropriar da riqueza das terras indígenas como uma grande riqueza na região norte-americana de Oklahoma, em 1920. Manipulava o sobrinho para se casar com a herdeira de terras ricas em petróleo que despertam interesse e cobiça dos aventureiros. Já o realizador da obra chilena, enfatiza as imagens que são mais reveladoras e eloquentes de que os próprios diálogos, deixando o lado perceptivo falar mais alto como forma de expressão. Não é daqueles filmes que primam pela descrição bem comum em ficções históricas com o viés da epopeia de heroísmos marcantes que entram para o rol dos afortunados. O rigor da abordagem pode variar quando se trata de colonização com vítimas e algozes para uma estreita relação das forças da natureza interagir com as dos seres humanos nativos contrapondo com aqueles pseudosdesbravadores sem pudores.

O longa cumpre com interessante importância seu papel sobre o processo da ocupação em novos territórios pela América do Sul com o objetivo da exploração de terras e seus recursos naturais. A colonização em foco retrata as abjetas sujeiras empurradas para o limbo, que pouco foram aprofundadas com rigor histórico imparcial. Esta realização mostra a abertura dos caminhos até o oceano Atlântico, atravessando uma terra já ocupada há milhares de anos antes da chegada dos europeus pela tribo indígena conhecida como Os Onas, nômades que faziam sua caça em terra, em vez de serem marinheiros. Em produções menores faltaram questionamentos de cobranças éticas de situações escabrosas de nossos antepassados. Méritos para o neófito diretor que tira o véu da impunidade para um bom debate a ser discutido, porque aponta o desastre do avanço de homens brancos de maneira fria e calculista sobre os povos originários, com o uso da brutalidade ao dizimar uma comunidade, e ainda praticar covardes estupros, onde a luta de egos dos personagens afloram nos confrontos entre o trio para apontar o poder e a autoridade na missão e no território. Nesse ínterim, surge o Coronel Martin (Sam Spruell), um superior britânico irá revelar a verdadeira identidade de McLennan, que sentirá na pele o mesmo que fez com suas vítimas.

O desfecho inusitado mostra uma reviravolta do roteiro, quando o funcionário do governo,Vicuña (Marcelo Alonso), vai conversar timidamente com o dono das terras sobre suas possíveis atrocidades com prática de genocídio e a repercussão negativa na capital chilena. Tudo não passa de uma falsa encenação que resultará num grande arquivo de frágeis memórias históricas para pesquisa dos colonizados e suas origens pelos fantasmas do passado que povoam aqueles lugares. Contextualiza e coloca para reflexão as relações de poder em conluio com os interesses particulares com pouca ética e ausência de humanismo. Retrata com contundência os abusos oriundos da violência em relação aos aborígenes diante da tirania opressora denunciada em relação à cultura dos povos subjugados e humilhados dentro de seu território. Atinge um resultado magnífico ao mostrar a importância do cinema para desnudar, perturbar e retratar os crimes da humanidade e o extermínio de um povo indefeso. Eis um novo olhar para aqueles faroestes estereotipados, preconceituosos e reducionistas, por serem avessos aos índios colonizados e dizimados pelos governos. A desconstrução se faz necessária para o promissor cineasta Gálvez Haberle, que pontua uma crítica ao materialismo do homem branco ganancioso, nefando, e sem limites pelo descontrole abissal de seus interesses, que desvendam segredos e mostram as verdades mantidas ocultas.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Descanse em Paz

 

Sem Saída

O cinema argentino tem uma característica muito peculiar nas suas abordagens sutis e sensíveis nos temas discutidos, embora muitas vezes o cenário fique em segundo plano, dando-se mais importância para o roteiro e a sua eficácia numa temática aparentemente simples, mas sempre de uma boa reflexão como meta a ser atingida. Diretores como Carlos Sorín em Histórias Mínimas (2002), O Cachorro (2004) e A Janela (2008); Pablo Trapero com Família Rodante (2004), Nascido e Criado (2006) e Abutres (2008); Lucrécia Martel com a obra-prima O Pântano (2001); Marcelo Piñeyro com o belíssimo Kamchatka (2002); Mariano Cohn e Gastón Duprat em O Homem ao Lado (2009), e outros tantos que se podem dizer como realizadores comprometidos com o cotidiano e com as coisas simples e belas da vida. Muitas vezes invadidas ou perturbadas por problemas familiares e sociais. Recentemente a dupla María Alché e Benjamín Naishtat nos brindou com a magnífica comédia dramática Puan (2023), em uma temática de boa reflexão da privacidade e das relações filosóficas com a sociedade, que fez uma obra interessante, deixando o enredo correr para um desfecho inusitado que chegará à proposta dos seus autores, tendo em vista a complexidade dos seres humanos pelo paradoxo da harmonia com o conflito e os valores que são dados às vidas, aos interesses particulares e algumas amizades.

O cineasta Sebastián Borensztein tem em sua filmografia duas realizações sem bons retrospectos: La Suerte Está Echada (2005) e Sin Memoria (2010). Atingiu grande repercussão e amadurecimento, com uma direção de elegância e sutilezas, a partir da bela comédia de costumes Um Conto Chinês (2011), que teve projeção internacional e o tornou conhecido, levando mais de um milhão de espectadores somente em seu país. Depois vieram Kóblic (2016), sobre um integrante da força aérea que havia participado dos chamados voos da morte, quando opositores da ditadura eram drogados e jogados ao mar, e A Odisseia dos Tontos (2019), postulante da Argentina indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 2020, todos os três protagonizados pelo astro Ricardo Darín. Agora vem do país vizinho o drama Descanse em Paz, em cartaz com exclusividade na plataforma da Netflix, último filme do diretor que também assina o roteiro em parceria com Marcos Osório Vidal, numa adaptação de um romance com o mesmo título escrito por Martín Baintrub, entrelaçando elementos de eventos históricos e incidentes da história argentina.

A trama retrata Sergio (Joaquín Furriel), um homem voltado para a família, mas com dívidas imensas, além de alguns problemas de saúde, que se aproveita de uma circunstância improvável para desaparecer sob uma identidade falsa e fugir para o Paraguai, com a intenção de salvar seus parentes próximos dessa ruína. O diretor reconstitui habilmente o atentado antissemita à Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA), em 18 de julho de 1994, que ceifou 85 vítimas fatais, e deixou centenas de feridos, inclusive pessoas que estavam na rua aleatoriamente. Só foi superado pelo de 7 de outubro passado em Israel, numa ação semelhante pela brutalidade. Após muitos anos longe de seu país, uma descoberta casual na rede social vem à tona, fazendo com que a tentação e a curiosidade de saber como estão sua esposa, Estela (Griselda Siciliani) e seus dois filhos, agora já adultos, que ele deixou para trás. Foram reivindicados os benefícios de seguro de vida para quitar a inadimplência financeira pessoal do protagonista, que devia uma fortuna para um agiota poderoso, Hugo (Gabriel Goity) e alguns amigos. Este é o ponto de partida decorrente da crise enfrentada pela economia nas últimas décadas. O presente que o pai quer dar à filha aniversariante em meio à pobreza exposta nas ruas são reveladores de um momento patético e sem saída, como uma metáfora da nação mergulhada numa infração de mais de três dígitos, além do déficit impagável ao FMI.

O acontecimento é um elemento exterior que irá dar luzes ao personagem central como uma oportunidade de criar uma nova personalidade com uma identidade falsa para tentar salvar o microcosmo familiar em perigo pelas consequências de seu passivo devedor insolúvel que enfrenta. No exterior, tem apenas uma cadela como amizade fiel, o desenho na parede do filho, e uma nova companheira de ocasião, Ilu (Lali González), como estímulos de vida para buscar a redenção. A realização traz uma boa reflexão sobre o papel do dinheiro em nossa sociedade, como as mudanças que irão advir no epílogo com tintas trágicas, como se evidencia na cena final, além do amor incondicional e aqueles que tentam ajudar na cura da solidão diante da racionalidade fragilizada e exposta à humilhação. O paradoxo desarmônico da comunicação interrompida está em conflito nas imagens captadas na internet, em que os valores dados às vidas e às amizades são exaltados como artificialidades, deixando em situação frágil a ética e a solidariedade, sem desprezar a mordaz ironia da crítica social como reflexo deste hospício chamado mundo.

Borensztein aponta a magia das relações humanas estilhaçadas que prevalece e dita o filme pela sutileza e os rumos que são destinados aos personagens. Descarta as muitas obviedades e tempera o gelo do relacionamento do improvável casal aparentemente feliz, que o surpreende, tornando ácida as críticas fundamentadas, numa prazerosa meditação sobre os desiguais financeiramente e os esquivos seres que chegam aos seus destinos e encontram seus novos vínculos fraternos. O protagonista representa não apenas sua transformação de empresário a empregado. A questão pretérita não foi bem resolvida pelo suposto gesto de dignidade entrelaçada com uma coragem, talvez discutível, embora fosse a maneira única, quem sabe, de um anti-herói para salvar uma tragédia ainda maior. Não é uma solução fácil a ser resolvida diante do beco sem saída. A cena da cerimônia da festa invadida por um fantasma do passado é comovedora e ressalta o impasse da situação buscada como resgate, embora o ritual festivo não fosse suficiente para colocar um fim na crise. Os novos horizontes com os rumos de uma paz atingida por tiros como nos antigos duelos soçobrarão como sequelas. Ficam as reflexões para os espectadores tirarem suas deduções que confrontam as complexidades morais e as repercussões das situações criadas pelo protagonista em suas emoções para resolver o cotidiano em circunstâncias desesperadoras. Há elementos caracterizadores e envolventes que refletem com méritos este instigante filme sobre a injustiça pela justiça da redenção através da fantasiosa missão pela recuperação da dignidade.

quinta-feira, 7 de março de 2024

Eu, Capitão

 

A Odisseia

O respeitado cineasta italiano Matteo Garrone tem em sua cinebiografia dois filmes extraordinários. Consagrou-se internacionalmente com o inesquecível Gomorra (2008), vencedor do Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes. Baseado em reportagens que resultaram na publicação de um livro de Roberto Saviano, o diretor construiu um poderoso e contundente longa-metragem sobre os meandros que levaram à violência e à corrupção promovidas pela temida máfia de Nápoles, através de um relato brutal e perturbador, de uma das mais lucrativas fontes de renda da Itália. Mostrou como o crime organizado consegue se infiltrar em todos os aspectos na vida de uma cidade e espalhar o pânico pelo temor. Pungente, destruidor e acachapante foram os adjetivos elogiosos mais brandos para aclamar o destemido realizador, pela sua audácia e uma garra ímpar ao expor com realismo cru as mazelas de uma sociedade deformada e acostumada com os banhos de sangue num cotidiano de drogas e seu comércio ilegal, porém sempre presente. Já Dogman (2018) obteve o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes para Marcello Fonte, ao ser o protagonista em uma atuação antológica. Ele é o filme. Uma realização magistral de um enredo aparentemente simples, mas que no desenrolar se mostra profunda, poética, dolorosa, sentimental e aponta para os relacionamentos éticos e a repulsa aos antiéticos, ainda que dentro da criminalidade. Vai da racionalidade à irracionalidade de um homem simplório, de sorriso fácil, ombros caídos pela introspecção, sendo cercado de cães em seu pet shop num lugarejo abandonado, sujo e corroído de uma periferia.

Depois de assinar uma obra menor como Pinóquio (2022), retorna em grande estilo com Eu, Capitão, sua última realização que mostra estar ainda mais maduro e imparcial na concepção de uma trama em ritmo de epopeia, foi o responsável pelo roteiro em parceria com Massimo Gaudioso. Indicado para representar a Itália no Oscar de Melhor Filme Internacional deste ano, já ganhou o Leão de Prata no Festival de Veneza de melhor direção e o Prêmio Marcello Mastroianni para melhor ator jovem a Seydou Sarr, decorrente de sua exuberante interpretação na pele do protagonista. O diretor recupera sua credibilidade ao abordar uma temática bem atual como a crise de refugiados da África para o exterior pelo olhar invertido, no qual há uma brutalidade bem objetiva com ingredientes de um realismo fantástico. A narrativa dramática retrata a jornada dos dois adolescentes primos Seydou (Sarr) e Moussa (Moustapha Fall), ambos com 16 anos, que anseiam por um futuro melhor. Os dois decidem deixar Dakar, no Senegal, e partir rumo à Europa mítica em uma aventura com tintas épicas. Enfrentarão uma série de desafios para testar a própria dignidade humana numa arriscada travessia do Mar Mediterrâneo a bordo de um barco precário superlotado, depois de ter enfrentado a hostilidade do deserto e a crueldade dos centros de detenção e sequestros de grupos terroristas na Líbia.

No drama Dogman, a prisão e a condenação levam para a cadeia o protagonista e mostram ingredientes que fazem dele um homem transformado num verdadeiro animal irracional, que perde a lucidez dos misericordiosos por contingência do tempo em que ficou enclausurado para se vingar. Já em Eu, Capitão, o personagem central ao sair daquela masmorra repleta de torturas e ameaças à vida, ainda tem forças para se submeter a um processo de trabalho escravo para se libertar e encontrar o parceiro que havia sumido. Quer dar continuidade para sua saga de percalços num caminho tortuoso e cruel até conseguir encontrar a realidade de seus sonhos e fantasias para um futuro edificante. São as fragilidades das amarguras e peripécias da odisseia confrontadas com a esperança de uma solução pragmática em uma sociedade doente em ruínas. Neste diapasão, Garrone aproxima a câmera aos rostos para dar mais nitidez e o espectador perceber com naturalidade as angústias dilacerantes que brotam e se espalham pelos olhares desnorteados dos presos sendo torturados no cárcere clandestino, bem como dos personagens dentro do atulhado barco quase à deriva em busca da liberdade e de um horizonte tênue, mas auspicioso, no porto da Sicília.

Eu, Capitão tem um contexto narrativo exemplar e fundamental para criar um clímax de medo da miséria recorrente e do terror psicológico pela barbárie, que torna a dramaticidade amplamente complexa na essência do cinema propriamente dito, em que os dois jovens e o espectador se chocam com as circunstâncias, embora surpreendidos no epílogo com elementos de fábula moderna adulta para resgatar a dignidade ultrajada pela humilhação dos imigrantes. Os efeitos de libertação irão ao encontro da contemplação reveladora com a chegada no destino almejado diante da destreza do herói negro com seu troféu emblemático, ao melhor estilo das grandes epopeias pela busca de uma civilização para trazer empregos e vida digna, pela ótica dos próprios africanos. Uma realização com amplitude maior na abordagem com eficácia nas relações constrangedoras dos fragmentos da dura ruptura social que desencadeiam em episódios violentos e perversos sobre a perda do controle como elementos opressores retratados de uma realidade selvagem pelas dificuldades, a corrupção, a violência e a solidão. Uma viagem marcada pela frase de Seydou para o primo: “Começamos a jornada juntos. Vamos terminá-la juntos”.

Cabe ressaltar as imagens fascinantes da paisagem desértica que os personagens enfrentam durante a maior parte da trama, pelas lentes do competente fotógrafo Paolo Carnera, em consonância com a bela trilha sonora. O filme é muito bem construído pelo realizador que escapa dos maniqueísmos que poderiam aflorar no desenlace estampado, embora pontue o heroísmo irônico no desfecho pela transformação que traz reflexos pelas mudanças comportamentais de seres humanos sensíveis e sonhadores, ainda que vilipendiados. O carismático protagonista não demonstra fragilidades, mesmo sendo alegoricamente um representante dos oprimidos que irá reconstruir-se numa metamorfose para tornar-se uma fortaleza de uma sociedade degradada pelos desdobramentos que transbordam da civilidade. Não é um simples relato sobre a jornada de dois garotos senegaleses que decidem imigrar em busca de uma vida melhor. É uma história com elementos humanos fortes na sua essência, que revela diversos aspectos sobre todos os seres humanos que decidem sair escondidos da pobreza do ambiente familiar pela coragem e resiliência diante do caos para seguir em frente. Eis uma magnífica reflexão sobre a estupidez humana da miséria até as irracionalidades bestiais de seus detratores ocultos neste épico espetacular para quem aprecia singularidades com ênfase neste painel arrebatador pela sobrevivência, que se insere na listagem dos melhores de 2024.

sexta-feira, 1 de março de 2024

Dias Perfeitos

 

Cotidiano Enfadonho

Desde a morte do genial Rainer Werner Fassbinder (1945 – 1982), um dos maiores nomes da cinematografia da Alemanha, existem alternativas para tentar não deixar cair em decadência o cinema alemão. A esperança se renovou em muito a partir dos anos 2000 com o diretor e roteirista Christian Petzold, considerado um dos principais expoentes do movimento cinematográfico contemporâneo de seu país, o mais bem-sucedido da chamada Escola de Berlim, autor da trilogia Amor em Tempos de Sistemas Opressivos, que iniciou com Barbara (2012), passou por Phoenix (2014) e finalizou com Em Trânsito (2018); bem como surgiu a promissora Ângela Schnalec, realizadora de Marselha (2013) e Eu Estava em Casa, Mas (2021). Já o cineasta Wim Wenders tem dois momentos distintos em sua carreira. A primeira é voltada para dramas fortes e profundos no qual brilhou com a obra-prima Paris, Texas (1984), o inesquecível Asas do Desejo (1987) e o magnífico longa de ficção O Céu de Lisboa (1994). Fez documentários como o contagiante Buena Vista Social Club (1999) e a mini obra-prima Pina-3D (2011), voltado para o sensorial ao mostrar a leveza da alma e do espírito na arte clássica da dança.

Depois veio o segundo momento de Wenders, que apresenta um considerável declínio pela falta de inspiração e a contundência nas suas obras, com realizações menores a começar por Até o Fim do Mundo (1990), os constrangedores Medo e Obsessão (2004) e Estrela Solitária (2005), além dos descartáveis O Sal da Terra (2014), Tudo Vai Ficar Bem (2015) e Submersão (2017). O retorno parecia indicar que tivesse se recuperado com mais energia da fonte que o alimentava, para uma suposta redenção triunfal com Dias Perfeitos que, inexplicavelmente, representa o Japão no Oscar deste ano na categoria de Melhor Filme Internacional, tendo o excelente Koji Yakusho vencedor do prêmio de Melhor Ator no Festival de Cannes em 2023. Ledo engano. Embora tenha sido um realizador mais voltado para as feridas sociais e as angústias derrotistas de seus personagens, em dramas memoráveis, parece que perdeu definitivamente a inquietação e o foco. O tema da solidão sempre merece muito estímulo, o que faltou flagrantemente em Wenders e seu parceiroTakayuki Takuma, ao escreverem um roteiro burocrático e repetitivo com cenas recorrentes, tendo uma montagem desleixada.

A trama acompanha a história de Hirayama (Yakusho- tenta carregar o filme pelo seu talento desperdiçado), um homem de meia-idade muito reflexivo que vive sua vida de forma modesta como limpador de banheiros públicos em Tóquio. Sua rotina começa pela manhã ao abrir a janela e olhar o sol, fazer a barba, aparar o bigode, tomar café, apanhar as ferramentas e colocar no carro ou na bicicleta e se dirigir para o local de trabalho e realizar suas tarefas profissionais do dia a dia. Mora num modesto sobradinho em um arrabalde pobre, sem luxo, com uma cozinha-banheiro onde escova os dentes de manhã, tem uma escada estreita e uma luz neon rosa que ilumina o quarto no andar superior. Adora ler na salinha pequena onde guarda seus livros, que pode ser claustrofóbica ou aconchegante, depende do ponto de vista e da observação do espectador sobre a simplicidade no local exíguo. Seguidamente passa numa livraria e compra um novo exemplar. Tem um amor platônico pela dona de um bar nas redondezas, e por aí vai.

Uma rotina com algum encanto ao transitar pelos parques e praças para tirar fotografias, e frequentador contumaz de lanchonetes e lojas de discos. Estas cenas se repetem à exaustão, numa compulsão do diretor pela reiteração até cansar o espectador. A monotonia é a mola propulsora do drama, às vezes se salva, graças ao diretor de fotografia Franz Lustig, que busca por ângulos de câmera em novos horizontes para um olhar mais expressivo do dia a dia, através de imagens que retratam momentos silenciosos, mesmo com distância da emoção na abordagem da tristeza e da alegria do protagonista metódico. A aparição de uma sobrinha parece trazer um alento, mas logo tudo se dilui e se esfarela pelo surgimento da irmã do personagem central recheada de preconceitos, ainda que artificialmente, foi uma das raras cenas que trouxe equilíbrio e alguma lucidez do diretor. O passado sombrio ficou ali e não evoluiu, exceto os encontros inesperados com alguma sensibilidade.

Velvet Underground, Otis Redding e Lou Reed com o título da música Perfect Days, disco produzido por David Bowie e lançado em 1972, compõem a boa trilha sonora, com canções aprazíveis e sugestivas da internacionalização de Tóquio. Quase que uma ode sacral do cotidiano pelo repetitivo esforço de Hirayama em se manter vivo e aprender com situações novas diariamente, como do seu empregado apaixonado por quem lhe despreza; da mãe que perde a criança na praça; do surgimento do ex-marido da dona do bar, que pouco acrescenta e logo descamba para o melodrama apelativo junto às águas do rio. O longa transita por temas como a solidão, a rotina, e a fuga para o sentido na vida moderna. Mas quase nada funciona ou é abordado sem profundidade. Na oscilação entre ajustes e desajustes, constâncias e quebras, a narrativa se debruça na observação rasa da repetição, em que conflitos vêm e vão pela vida. Eis um paradoxo da previsibilidade da indignidade da rotina de revezes do protagonista em seu silêncio constante, mas que aprecia a paisagem e sua tranquilidade ao fazer seus passeios contemplativos para encontrar conexão com a vida e, quem sabe, acreditar em alguma coisa mais significativa, mesmo que resignado com a rotina. Caso o diretor não se entregasse à preguiça criativa e sonolenta, e o filme fosse melhor estruturado, poderia sair algo melhor nesta redundância da repetição.