quarta-feira, 15 de março de 2023

Alcarràs

 

Realidade Sombria

Vencedor do Urso de Ouro de Melhor Filme no Festival de Berlim do ano passado, Alcarràs, não passou pelas salas cinemas e foi direto para a plataforma MUBI. A direção e o roteiro são de Carla Simón, que estreou com Verão 1993 (2017). Uma história aparentemente simples com muitos personagens que formam a família Solé, de três gerações que sobrevivem do cultivo de pessegueiros no pequeno município da Espanha, província de Lérida, comunidade autônoma da Catalunha, que empresta o título ao longa-metragem. Passam colhendo os frutos de seu pomar, que pode ser a última estação deles. Pai, mãe, filhos, netos, sobrinhos, tios, primos, o avô patriarca e alguns colegas de trabalho compõem este painel amplo da vida de agricultores, até o confronto com o choque da modernidade, onde o progresso bate às portas de uma civilização com métodos antigos. Eles se incomodam diante da iminência pela chegada da indústria da energia solar com suas placas se avolumando nos arredores. O líder do microcosmo familiar é o filho mais velho do patriarca, Quimet (Jordi Pujol Dolcet) casado com Dolors (Anna Otín) e seu casal de filhos Mariona (Xenia Roset), uma garota que gosta de cantar e dançar, e Roger (Albert Bosch), um rapaz que tentará mostrar seus brios de valentia para os demais membros da comunidade que o cercam.

A trama aborda com sutilezas a ameaça de despejo, diante dos novos planos para o imóvel que incluem cortar os pessegueiros e instalar painéis solares, o que provoca uma disputa dentro da própria família e seu agronegócio. Pela primeira vez, depois de décadas, se deparam com um futuro incerto, correndo o risco de perder muito mais do que a casa, o terreno para o plantio e a colheita. As suas vidas, até aí pacatas, mudam quando recebem uma notificação do senhorio que lhes dá até ao final do verão para desocupar as terras. O proprietário dos terrenos tenciona a atmosfera quando ameaça arrancar todas as árvores frutíferas, notícia que vai abalar todos eles. Apesar de unidos, há maneiras diferentes de vislumbrar o futuro ou de encontrar novas opções de sustento, que dará origem a desavenças difíceis de apaziguar dentro do clã dos Solé. Descobrem que existe um enrosco administrativo sobre o título da propriedade e que outra família poderá ser a nova detentora de todos os direitos sobre aquelas terras que lhes deram o sustento por várias gerações. Quimet não aceita a nova situação e resiste bravamente, fica possesso ao descobrir que um dos tios, visto como traidor, irá se unir aos opositores para garantir seu emprego.

A diretora contextualiza a estabilidade do agronegócio ao lançar uma fagulha que toma contornos de confronto entre classes sociais e gerações que reagem ao problema de maneira diferente sobre as diversas questões socioeconômicas. Os aspectos intrínsecos e extrínsecos estão diluídos dentro do drama com os interesses diferentes como métodos de uma clássica disputa numa comunidade estruturada, porém que começa a ruir com o egoísmo e o interesse pessoal se sobrepondo ao da coletividade. Crianças e adultos são jogados no confronto como se fossem empurrados para o olho do furacão. O que deveria ser uma luta de classe igual, acaba perdendo força com a trajetória do enredo. Uma realização minimalista sobre as novas descobertas do futuro incerto para uns, enquanto que outros se submetem a tudo para garantir um emprego ou subemprego na nova realidade da imposição negociada com o poder progressista. A realizadora dá ênfase ao realismo pujante da comunidade e seu afeto e louvação para o cotidiano abalado, agora perdendo sua autonomia em detrimento de um progresso devastador que está se instalando, de maneira cruel e aniquilador com os povos originários de uma região na iminência da transformação.

A narrativa se estrutura pelo realismo social ao acompanhar os múltiplos personagens com uma câmera livre e sempre atenta aos movimentos de cada indivíduo, bem como em outras cenas com dez ou mais pessoas sendo enquadradas. As crianças correndo pelas planícies com brincadeiras na piscina; os adultos se hostilizando na busca de seus direitos inalienáveis. As atividades acontecem simultaneamente, sem um conflito maior que derive às vias de fato, mesmo na iminência da perda da casa patriarcal. Um cesto de pêssegos humanista contrapondo com um coelho morto, as placas solares sendo questionadas no contexto imperioso com a relevância da contemporaneidade. Não há um caos explícito ou implícito, quase tudo gira na sugestão, nos diálogos por vezes enfadonhos, embora em outras vezes a mesmice se torne recorrente e desagrade o espectador. Porém, há se ressaltar a linda fotografia de Daniela Cajías que capta com brilho as cenas com imagens de paisagem exuberante do plantio dos pessegueiros nas planícies, com sequências em grandes planos abertos de uma região produtiva, mágica e envolvente, que é relevante para o desenrolar da história e sua evolução até o desfecho pessimista, mas realista por ser sombrio. O elenco e a fotografia estão alinhados com a proposta da realização.

Alcarràs é uma obra interessante por seus questionamentos de uma aldeia que reflete uma sociedade em ruínas, embora haja civilidade, ternura e amor. Mesmo que aparente um falso universo de paz nas relações humanas num universo amargo pelas circunstâncias precárias, com condições de dignidade para uma população de uma família que está de braços abertos para os indivíduos, até mesmo para os desconectados daquela família tradicional que bebe vinho, come bem, se diverte, mas as rusgas entre os parentes irão abalar pelos infortúnios da nova era de uma situação que atinge a pureza daquelas crianças que vivem na natureza encravada naquela região como parte de um ambiente daquele cenário em extinção. Ainda que falte mais cinema por falta de um clímax dentro de um foco com contornos diversos, o epílogo é marcante pelo sentido humano fragilizado. A sobriedade usada é a dose de amargura mesclada com pouco alento, sem pieguismos. Méritos para a cineasta que conduz o espectador a acompanhar, mesmo que lamente o destino dos personagens, há o simbolismo do descaso com a ausência de um vínculo de importância aos nativos pelos fatos que se sucedem numa atmosfera criada em torno daquele bucólico lugarejo com seus costumes cultuados no dia a dia. O drama pode não ser profundo, mas tem uma razoável narrativa das idiossincrasias dos personagens envolvidos e as condições socioeconômicas do futuro, mesmo sem atritos ou violência, que levam para um realismo social presente nas comunidades afastadas com suas angústias para ser refletido.

sexta-feira, 3 de março de 2023

A Baleia

 

Grotesca Agonia

Darren Aronofsky dirigiu Pi (1998), Réquiem para um Sonho (2000) e O Lutador (2008), seu melhor filme e mais apropriado com a história, ganhador do Leão de Ouro em Veneza. Notório por carregar demais nas cenas de violência, nas automutilações, pernas com fraturas expostas, facadas no abdômen, sangue jorrando, com cenas desnecessárias como a exposição gratuita de vísceras, deixando transparecer a banalidade simplória. Carrega sistematicamente em imagens de sexos vulgares e descontextualizados. Com Cisne Negro (2010), uma gélida realização com cenas de dança meramente convencionais que revelava uma perturbação agonizante da protagonista, na qual o perfil psicológico da dançarina (Natalie Portman, de ótima atuação) que comenta sobre seu destino e a busca obstinada pelo papel principal de rainha, adaptado do clássico O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, na consagrada disputa mitológica entre o bem e o mal. O conflito entre os cisnes branco e o negro, comentada como a lenda do príncipe que se apaixona pela irmã da princesa acaba se matando, não prospera e afunda, embora prenuncie como o desfecho, sai da ficção sem muita cerimônia e torna-se realidade. Descamba para um final previsível e imaginável, diante dos indicativos anunciados no transcorrer da trama, com as autodecepações caindo no ridículo.

No seu último longa-metragem, A Baleia, com três indicações ao Oscar deste ano: Melhor Ator, Melhor Atriz Coadjuvante e Maquiagem, Aronofsky usa e abusa dos exageros e da superficialidade como utilizações de recursos que permitem deformações no físico de atores numa atmosfera revelada pela ausência sutilezas, delicadezas, ironias finas e bom senso. O roteiro escrito pelo dramaturgo Samuel D. Hunter foi adaptado da peça homônima, lançada em 2012. A trama tem como protagonista Charlie (Brendan Fraser tem uma estupenda atuação, merece o Oscar), um recluso professor de inglês assumidamente homossexual em seus últimos dias, que convive com uma obesidade severa, pesa 274 quilos, mas tenta lutar contra o transtorno de compulsão alimentar. Devora pizzas gigantes, sanduíches recheados, hambúrgueres e frangos fritos. A pressão arterial vai parar nas nuvens. Masturba-se vendo filmes pornográficos em um laptop. Uma morte lenta e angustiante daquele homem horrendo, que dá aulas on-line, mas sempre deixa a webcam desligada, por ter vergonha de aparecer em público com a aparência disforme. O ator teve o auxílio para uma caracterização na mistura de maquiagem de prostéticos com efeitos especiais para atingir uma performance incrível.

O realizador maneja para o mau gosto ao fazer do seu personagem principal, aquela figura patética pela obesidade mórbida desencadeada pela morte do namorado, com o qual ele foi viver junto depois de abandonar a família. Arrasta-se pelo apartamento, cenário único do enredo, herança das características teatrais da obra original, como se fosse um réptil fugindo do universo humano, uma realidade desvirtuada pela apelação barata. Apesar de viver sozinho, ele é cuidado pela sua amiga e enfermeira, Liz (Hong Chau, boa interpretação e indicada ao Oscar para atriz coadjuvante). Convive com a culpa recorrente por ter abandonado Ellie (Sadie Sink), a filha hoje adolescente que ele deixou junto com a mãe Mary (Samantha Morton) ao se apaixonar pelo seu aluno. Busca reconectar-se com a garota para reparar seus erros, inclusive se recusa a ser hospitalizado para não gastar, porque quer deixar suas economias para a jovem revoltada com a situação do passado. Tenta ajudá-la a reescrever uma redação para a escola, sem a interação fraternal, o que só dificulta a relação deles, pois ela que parece odiar a tudo e a todos, sem exceção, numa construção caricatural; ele demonstra uma obsessão quase que doentia pela filha. Para completar a trama, surge um jovem missionário religioso, Thomas (Ty Simpkins), de duvidosa honestidade, que acredita num motivo divino para cruzar o caminho daquela família desconstruída.

O drama familiar sobre perdas, culpa e perdão tenta achar soluções e apontar as condições pelos caminhos mais degradantes num clima construído de claustrofobia no imóvel. Não impressiona os truques psicológicos e fica longe de uma obra consistente. Opta por uma narrativa separada do mundo real dos personagens, diante das simplificações pelas aberrações do corpo, sem concessões, ao utilizar meios inadequados que liquidam com propostas inteligentes e que revelam fragmentos medianos apresentado ao espectador. Não há sugestões ou aprofundamento da violência humilhante que assola o homem enfermo, sua dor humana e sua perturbação psicológica pela perda involuntária da autoestima. Quase todas as cenas são explícitas, e o realismo atordoante impera e predomina em praticamente todo o desenrolar da história. Deriva do surreal para o artificialismo lançado na esteira do enredo extravagante, por opção do realizador através de sua marca cansativa da exorbitância sem limites, recheado de lugares-comuns inúteis.

Embora o cineasta tivesse como objetivo abordar a obesidade e os efeitos colaterais na sociedade, o resultado desanda e acaba por ingressar, ainda que involuntariamente, no terreno do preconceito que remete para o viés da execrável gordofobia e seus aspectos inerentes. Erra a mão ao retratar a situação dos fatos pela maneira crua, promíscua e agressiva, beira a escatologia e contraria o cinema de meritória qualidade. Um filme frívolo diante do arremedo sobre as discussões paliativas de contornos cruéis pela ausência de relevância sobre as regras e a ética que estruturam as relações sociais aceitas ou não pela convivência dolorosa do cotidiano. Mergulha no drama folhetinesco sem uma qualidade estética razoável, com um epílogo chato e sem imaginação, fruto da preferência do diretor por obras para fisgar o emocional. Abandona quaisquer reflexões lúcidas, na qual a trilha sonora colabora, assinada por Rob Simonsen, é invasiva e melosa com o pieguismo aflorando de forma irritante. Abandona os valores essenciais de uma visão crítica apurada para um foco rasteiro, ao jogar fora um ótimo tema recheado de boas intenções. Faltou apuro técnico, mas sobraram elementos desprezíveis de um filme visivelmente comercial e descartável por ser inconvenientemente grosseiro.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Memória

Viagem Sensorial

O cultuado tailandês Apichatpong Weerasethakul, de codinome "Joe", para facilitar a vida dos ocidentais, é o diretor de Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas, grande vencedor da Palma de Ouro de 2010. Com uma filmografia consolidada no cenário mundial, tendo ganhado também no Festival de Cannes o prêmio da mostra Un Certain Regard, em 2002, com Eternamente Sua; com Mal dos Trópicos levou o Prêmio do Júri, em 2004. Lançou Cemitério do Esplendor no referido festival, em 2015, com boa aceitação de crítica e público. Voltou a Cannes com seu mais recente longa-metragem, Memória, primeira produção fora de seu país, para abocanhar novamente o Prêmio do Júri, edição de 2021, disponível no MUBI. Realizado na Colômbia, soube explorar muito bem a geografia histórica de vulcões, guerrilha, narcotráfico, indígenas e suas tribos com fantasmas e espíritos disseminados pelas florestas, rios, córregos, encostas, montanhas, tudo em abundância para o deleite do cineasta, que tem sua marca registrada pela qualidade estética e estrutural, na abordagem de personagens perdidos na selva e fugindo dos demônios, bem retratada na polêmica obra premiada em 2010.

Apichatpong é egresso de uma cinematografia não-ocidental, que logrou uma posição de autonomia autoral, ajudando a consolidar uma cultura cinematográfica exótica, completamente fora dos padrões convencionais. Memória conta a história de Jessica (brilhante atuação da atriz escocesa Tilda Swinton), uma cultivadora de orquídeas em Medelín que vai visitar a irmã enferma em Bogotá. A protagonista é acordada por um som familiar numa bela manhã, como uma bola de pedra caindo no metal. Ela passa a ter devaneios e alucinações por este barulho perturbador e constante que interrompe seu descanso noturno, deixando-a insone, com várias noites sem dormir. Acaba por questionar sua própria identidade para uma médica local. Descobre ser portadora da “síndrome da cabeça explosiva”, relacionada à paralisia do sono, que faz a pessoa acreditar que está acordada, mas sem conseguir se mexer, explicado por várias circunstâncias tidas como sobrenaturais. O próprio cineasta admite que sofre desta moléstia, mas segundo ele, quando começou a filmar o som desapareceu e acabou dormindo profundamente.

A trama propicia no trajeto de uma estrada com blitz militar de controle de guerrilheiros e traficantes, sem tiroteios ou perseguições, somente gestos e sinais discretos. Embora haja muita tensão contrastando com os longos planos do museu e das salas de música na Biblioteca de Bogotá, a atmosfera cultural de primeiro mundo irá se consolidar como um marco histórico de um povo que cultiva e mantém com respeito aquele patrimônio de arte. O encontro casual da personagem central com Agnes (Jeanne Balibar), uma arqueóloga que faz um estudo centrado em esqueletos humanos desenterrados na construção de um túnel. Os relatos da profissional de que o crânio de uma menina com um buraco na cabeça seria uma suposta perfuração pelos xamãs para libertar os maus espíritos, atiça a curiosidade. As coincidências e o destino fazem com que Jessica seja conduzida por intuito a um local que a fará buscar a libertação do incômodo.

Os aspectos que atraem nas realizações do diretor são os sentimentos como fragmentos humanos dignos, através de delicados quadros de cenas mostradas em longos planos-sequência com uma câmera estática, para captar o silêncio, a vida do cotidiano, a poesia do lugar cercado por frondosas árvores e montanhas em imagens de uma natureza enigmática para meditação, elementos essenciais de uma narrativa singular, com raros diálogos. As configurações levam à imersão transcendental do espectador até um relaxamento no mais alto grau de satisfação, quase sobrenatural, como reage a protagonista diante das experimentações que vai absorvendo, principalmente com os personagens com quem interage. Um desaparece do nada, como o engenheiro de som, que fez uma mixagem de áudio para ajudá-la a entender os ruídos estranhos que a afligem. Há buscas no além e em outras dimensões, algo que assusta e ao mesmo tempo, fascina, como explicações para as soluções que inquietam nossa realidade. O realizador pensa no cinema como mecanismo de magia do mundo, o que é algo extraordinário. Uma experiência sensorial única numa viagem ao subconsciente, literalmente.

Uma obra com simplicidade no roteiro e nos poucos diálogos, mas exuberante nas imagens e na interpretação farta para todas as evidências lançadas como provocação. A proposta ao espectador é deixar fluir a trama sem amarras ou grandes questionamentos plausíveis. Um grande compasso de espera e reflexão que irão se destilando aos poucos em nossa alma, coração e espírito. Uma realização sugestiva com desfechos em aberto, deixando múltiplas interpretações. Nada é linear, tudo é dentro do contexto e complexo, até o estrondo do som tem desdobramentos em diversas camadas de memória. A arqueologia e suas exumações de restos de cadáveres estão elencadas como múltiplas histórias de uma cultura com origem na violência. Retrata com discernimento pela notável analogia da existência da espécie humana e suas origens relacionadas com a crença religiosa e a ciência do infinito que se fundem pela filosofia, a arqueologia e a antropologia para propor uma metáfora vigorosa do existencialismo e seus reflexos sutis com o olhar para a terra e o céu, com as florestas de pedra como paredões que se encontram.

Um filme contemplativo, onde há muitas interpretações, sem que haja uma definitiva. Jessica passa uma imagem de mediunidade espírita com poderes sensitivos, às vezes em transe, inimagináveis de canalização como prática de supostamente mediar a comunicação entre os mortos e as pessoas vivas. Chega no município de Pijao, onde conhece um homem com hábitos de um ermitão, que nunca viajou nem assistiu a filmes, TV ou noticiários, porque já tem histórias suficientes nas suas memórias. Fala de um incidente de infância envolvendo sua mãe e conta sobre o passado, o futuro e as recordações daqueles que já se foram num dia inesquecível. A revelação da protagonista ao pescador do que teria acontecido naquela casa anos atrás, quando há um suposto massacre naquele lugar, transcende a realidade e exorbita para o universo da fantasia para uma imersão sensorial catártica. As cenas de longas reflexões e observações conduzem para um banho de purificação da alma na natureza e seus segredos que despertam curiosidades na plateia, pois poderia acontecer algo inusitado. Há um brilho poético, o cineasta demonstra toda sua sensibilidade para um mergulho sobre a existência e as questões dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham os fatos adequados ao tema, sob o ponto de vista humano e com a força das comoventes quimeras. Transcendental, espiritual ou metafísica como possa parecer, fica na consciência de cada espectador este soberbo drama.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

A Human Position

Vidas Entediadas

Vem da Noruega o sensível drama A Human Position, título que pode ser traduzido literalmente como “A Posição Humana”, disponível no MUBI. Escrito e dirigido por Anders Emblem, que estreou no cinema dirigindo Hurry Slowly (2018), com pouco mais de uma hora. Abordava um casal de irmãos durante alguns meses de verão que mudaram suas vidas na costa oeste norueguesa, onde ela fazia malabarismos com os cuidados dele que trabalhava na balsa local e tinha uma predileção pela música, com interesse em fazer carreira. A característica do jovem diretor é realizar filmes de pequena duração, como neste seu último longa do ano passado, que tem 78minutos. Dedica-se a fustigar os meandros sociais e políticos de seu país escandinavo de montanhas, geleiras e fiordes litorâneos profundos. Famoso pela pesca e a indústria de bacalhau é uma das mais famosas do mundo, e que dá o mote para a trama bem alicerçada no roteiro.

A cidade portuária de Ålesund é o palco do lindo cenário captado nas imagens fascinantes pela lente do fotógrafo Michael Mark Lanham, com navios singrando lentamente pelo mar. O local é caracterizado por intermináveis noites modorrentas de verão, com águas de uma tonalidade azul turquesa deslumbrante. O ponto de partida é a reportagem da jornalista Asta (Amalie Ibsen Jensen), que investiga uma história enigmática de um intrincado caso de deportação forçada, decorrente de um refugiado que ingressou ilegalmente no solo da Noruega, e acabou por ter seu visto negado definitivamente. Outros casos poderiam também ter tido o mesmo destino, como sugere o rumo da apuração de novos fatos e dados. Ela está sempre acompanhada do fotógrafo (Lars Halvor Andreassen) que vai obtendo algumas fotos para tentar elucidar o caso. O panorama é repleto de sutilezas para mostrar um choque de realidade dentro de sonhos idealizados por seus habitantes, mas com nuances de perdas e conquistas.

O realizador é um adepto do cinema de contemplação para retratar o vazio da condição humana e seus complexos valores intrínsecos e extrínsecos dos personagens centrais. A jornalista tem um serelepe gato preto com detalhes alaranjados, que acaba roubando as cenas em que aparece. Ela vive com Live (Maria Agwumaro), a companheira, de todas as horas e momentos importantes de sua vida numa antiga casa com proximidade do mar, é uma designer de interiores apaixonada por restaurar cadeiras. Com relação aos sentimentos das personagens e da relação, pouco se sabe, diante do enredo pontuado por uma recorrente tristeza marcante de lembranças e divagações, inclusive a recordação pouco agradável para Asta de uma cicatriz que carrega no ventre e preconiza uma cesariana.

O filme traz a história sem muitos detalhamentos que irão se desenrolar como um novelo no enredo de um roteiro enxuto, mas que esclarece aos poucos os enigmas apresentados no seu contexto com marcas sintomáticas de amor, tédio e solidão para ser digerido a cada cena. Vai desde o ponto de partida até o epílogo num ritmo melancólico que tanto cala, afasta e aproxima os seres humanos sedentos de ternura, e acerta para quem já está aborrecido de tanta violência explícita. A história é contemporânea e atual mesclada com imaginações de um tempo tedioso com situações que acontecem da expulsão de refugiados sem a mínima chance de defesa, pois o processo todo corre sob sigilo absoluto. Embora a repórter tente por várias maneiras obter informações, nada vaza, exceto algumas deduções de palavras soltas desconexas, mas que terá algum valor como subsídio para a investigação jornalística.

Uma realização hábil que mostra sentimentos com elementos humanos dignos, através de delicados quadros de cenas mostradas em longos planos-sequência com uma câmera estática, sem qualquer movimento, para captar o silêncio, a vida do cotidiano, a poesia do lugar cercado por um bosque de frondosas árvores dentro de um cenário diário eivado de melancolia. Sem didatismo ou apelação para lágrimas fáceis, afastando-se completamente de pieguismos. Méritos para o cineasta que conduz com boa criatividade o espectador a acompanhar sem lamentar ou fazer objeções do destino das personagens. Acaba por fisgar na essência cinematográfica contemplativa os admiradores do ritmo lento para reflexão sobre a solidão do ser humano e o sentido de sua existência na busca de um objetivo. As colocações, sutilmente, estão no prazer para atenuar a dor que remói e desvendar elementos do passado, também do presente, que serão aos poucos descortinados por dedução, como a satisfação harmoniosa do aroma da vida.

O longa busca alternativas pragmáticas para lidar com as dificuldades advindas do dia a dia prosaico, através de opções apresentadas como fórmula do bálsamo da convivência civilizada, como a cadeira trazida de presente pela personagem central para seu grande amor. Não cai na mesmice de roteiros complexos e confusos vistos em muitas realizações estéreis, mas dá vazão para um mergulho no imaginário do espectador. Uma construção de personagens sofridos na vida e em situações em que nem tudo está perdido, nem tudo é só pessimismo e só desesperança, há poesia contrapondo com o tédio visceral no contexto amargurado. Porém, o pessimismo sombrio dá uma brecha para se continuar na busca da dignidade humana. É dado o tom certo do clímax que desencadeará no desfecho que trará luz para o futuro, nesta obra de valores interessantes numa atmosfera de amor e desalento de uma realidade tão presente de personagens de alma e coração num cotidiano que gravita no painel construído por ações do tempo através de um cenário que corta o silêncio dolorido. Só as imagens falam com um toque de classe neste admirável drama existencial através de uma narrativa linear e emblemática inserida na linguagem do cinema em toda sua extensão.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Titane

 

Surrealismo e Violência

Surgiu um movimento cinematográfico chamado O Novo Extremismo Francês que tem como base principal o foco de realizações com o objetivo da transgressão com temáticas pesadas e com uma violência explícita e sangrenta como essência para desafiar o público e fazê-lo refletir sobre diversas situações de uma sociedade aparentemente acomodada. Esta definição foi cunhada pelo crítico James Quandt para classificar o cinema transgressivo francês que teve início na década de 1990 e se estende até os dias de hoje. É um contraponto aos filmes de terror produzidos em Hollywood. Ficaram marcados pelo estilo de produções polêmicas onde o grotesco é a mola propulsora do conceito, tais como: Desejo e Obsessão (2001), de Claire Denis, Irreversível (2002) e Clímax (2018), os dois de Gaspar Noé, Alta Tensão (2003), de Alexandre Aja, A Invasora (2007), de Alexandre Bustillo e Julien Maury, Mártire (2008), de Pascal Laugier e Grave (2016), primeiro longa-metragem de Julia Ducournau ao retratar elementos violentos do canibalismo para mostrar o amadurecimento e as transformações de sua protagonista.

A roteirista e diretora Julia Ducournau está de volta em meio a muitas polêmicas com Titane, o grande vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2021, em cartaz no MUBI. Depois de sua estreia em Grave, a cineasta abraça definitivamente este novo movimento, em que não há delicadeza para expor. Sem nenhum pecado ou culpa sua obra é recheada de violência, sexualidade expostas no horror corporal visceral, no qual ousa pelo autoextermínio da degradação e privação sem cerimônia com o viés autodestrutivo. Fica evidenciada a inspiração da realizadora no mestre do gênero David Cronemberg, em obras como A Mosca (1986), Crash - Estranhos Prazeres (1996), no qual as pessoas se excitam sexualmente por acidentes de carro. Também poderia ser colocado neste novo movimento o diretor Leos Carax, com o suspense Holly Motors (2012), ganhador do prêmio da juventude no Festival de Cannes de 2012, melhor filme estrangeiro, ator e fotografia no Festival Internacional de Chicago. Abordava um rico banqueiro que sai de casa para vender ações na confortável limusine, logo passa por uma metamorfose kafkiana, virando uma mendiga esmoleira em plena Paris, entra num esgoto e aflora novamente a figura horrenda no cemitério ao abraçar uma bela modelo.

A trama de Titane traz como protagonista Alexia (Agathe Rousselle), que sofre um terrível acidente de carro na adolescência, quando o pai dirige um automóvel e ao se virar para trás com a intenção de verificar seu comportamento pouco agradável, acontece a pequena tragédia. A lesão em seu crânio é grave e requer um implante de uma placa de titânio (metal altamente resistente ao calor e à corrosão, com ligas de alta resistência à tração, muito utilizado em próteses médicas) em sua cabeça, deixando sequelas visíveis e abaláveis psicologicamente que irão marcar para sempre seu futuro pelos efeitos colaterais. Desde a saída do hospital, há uma transformação na jovem, que se mostra arredia e sua rebeldia vai ao encontro de um abraço amoroso no veículo que quase a matou. Vira uma serial killer que executa seus parceiros com um adereço pontiagudo que usa no cabelo como formato de uma arma fatal. A sexualidade entra num processo de fusão com intenções assassinas que dominam a mente, até fugir para não ser presa.

A relação do titânio em que o corpo humano vira uma máquina é uma hipótese apresentada pela diretora como solução, no qual a conversão surrealista em que a bizarrice para a degradação corporal do terror para as violações agressivas que irão refletir no desenvolvimento e as sequelas ultrajantes como fim oriundos de um meio que perturba e agride. A gravidez inesperada da personagem central irá transformar numa verdadeira saga massacrante fruto da relação kafkiana inverossímil de uma mulher com um automóvel, até conhecer Vincent (Vincet Lindon), um bombeiro que chefia uma equipe de rapazes aparentemente felizes e prontos para qualquer missão. Torturado por seu passado que tenta preservar a força injetando drogas em seu corpo envelhecido, finge que acredita ter encontrado o filho desaparecido há dez anos. Uma série de assassinatos coloca a região sob tensão e todos estão em alerta. A relação de filho e pai se estreita para lidar com seus problemas emocionais trazendo humanidade em meio ao caos em suas vidas, como na bela cena em que todos dançam sob a trilha sonora inquietante de Jim Williams, e em outros momentos estão presentes a fúria e a exaustão dos personagens sofridos pelo destino.

A estética mexe com o espectador e sua comodidade na zona de conforto para não deixar nunca estar desatento num roteiro de jogo de cena, ao estilo surrealista de David Linch, onde a fusão temporal estaria em busca de uma identidade, com a qual os personagens estão perdidos, sem rumo nas várias faces apresentadas, diante da desorientação atípica da lucidez. Uma pessoa fria quando vira uma assassina dentro de um grande hospício criado em seu imaginário, mas o amor e a ternura estão presentes naquelas criaturas indefinidas e sem tempo para as coisas triviais da vida. A dor dos solitários está presente e a vida perde os encantos com a ausência existencial. Embora seja abordado pela bizarrice, é para chocar mesmo e fazer com que aquele espectador que assistiu até o fim, reflita. Não é um filme fácil, há enigmas a serem decifrados durante as frequentes mudanças no roteiro. Aflora fantasias de um universo que vai da fábula à ficção científica, num experimento de aventuras numa metalinguagem em vidas personificadas, obra que se encaixaria muito bem no Fantaspoa.

A diretora traça um paralelo com as máquinas num contexto cada vez mais dependente da tecnologia digital, em que o erotismo é banalizado e pintado com tintas de libertação, dor e horror corporal para abordar o inconsciente humano, seus desejos e emoções dentro de uma psicologia bizarra, o que é discutível. Um filme que perturba por ser exorbitante pelo horror corporal decrépito e aos frangalhos, com o tênue objetivo ingênuo para discutir violência e sexualidade e suas sequências inverossímeis de que incorpora uma serial killer, que transita do pai natural ao adotante e sua culpa até plasmar uma sugestiva relação incestuosa no desfecho inusitado. Traz uma textura sonora e visual sombria para o uso de sensações físicas e emocionais ao mesclar em planos e contraplanos de sequências surreais, abjetas por vezes, num cenário apelativo para abalroar a plateia. Obviamente que consegue, mas dentro de uma narrativa claudicante com imagens agressivas e pouco indicadas para estômagos mais fragilizados, o que afasta uma ideia sincronizada de profunda reflexão na essência dentro da psique humana.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Os Fabelmans

 

Ode ao Cinema

Lincoln (2012), um épico de acontecimentos históricos que mexe na vida dos norte-americanos, na luta incansável do Presidente republicano reeleito para aprovar no Congresso a abolição da escravatura e The Post: A Guerra Secreta (2017), paradigmático estudo das teorias do jornalismo contemporâneo, no qual um repórter do jornal The Washington Post farejou algo de gravidade e iniciou uma investigação sobre a invasão de cinco homens na sede do Partido Democrata, que deu origem ao escândalo Watergate, foram as últimas duas realizações com méritos indiscutíveis de Steven Spielberg. Experiente em blockbusters como Tubarão (1975), Os Caçadores da Arca Perdida (1981), Indiana Jones e Templo da Perdição (1984), Indiana Jones e a Última Cruzada (1989) e Jurassic Park – Parque dos Dinossauros (1993), entre tantos. Seus últimos longas, Jogador nº. 1 (2018), Amor, Sublime Amor (2021) e The Kidnapping of Edgardo Mortara (2021), são filmes que pouco acrescentaram. Porém, cabe ressaltar suas obras marcantes, como a bela e profunda amizade de uma insuperável solidariedade entre um jovem e um cavalo puro sangue em Cavalo de Guerra (2011); do fascinante O Resgate do Soldado Ryan (1998); da dramaticidade eloquente de A Lista de Schindler (1993); do inesquecível e pujante drama racial em A Cor Púrpura (1985); do encantamento terno de E. T.- O Extra Terrestre (1982); e o suspense psicológico intenso em Encurralado (1971), foram realizações importantes na fértil criação de sua filmografia.

No primeiro grande lançamento de 2023, Os Fabelmans é o último longa de Spielberg e foi indicado com muita justiça em sete categorias ao Oscar deste ano, incluindo Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Roteiro Original, Melhor Atriz para Michelle Williams e Melhor Ator Coadjuvante para Judd Hirsch. Venceu como Melhor Filme Dramático e Direção no Globo de Ouro. Chegou a vez do lendário cineasta passar para a telona, nesta imaginativa mescla de ficção e realidade, numa autobiografia que revela sua exaltação ao cinema, com base em suas lembranças do passado num passeio intimista familiar, e a origem da paixão com a iniciação na sétima arte, nesta primorosa realização. Recentemente, outro diretor que buscou o caminho da autobiografia foi Alfonso Cuarón, com o premiado Roma (2018). A trama conta a história do jovem Sammy Fabelman (Gabriel LaBelle) que cresceu no Arizona pós-Segunda Guerra Mundial, se apaixona pela invenção cinematográfica depois que seus pais o levam para ver O Maior Espetáculo da Terra (1952), de Cecil B. DeMille. O protagonista que se recusava a assistir o filme fica fascinado pela grandiosidade da ficção e encontra na fantasia infantil o encanto pelas câmeras.

Uma paixão arrebatadora que leva aquele menino para um propósito, e mais tarde sua válvula de escape como refúgio. Inicialmente teve o incentivo do pai, Burt (Paul Dano), um engenheiro de computação que seguidamente troca de cidade por determinação da poderosa multinacional IBM, voltada para a informática; já a mãe, Mitzi (Michelle Williams- de estupenda atuação, num dos melhores papéis das sua carreira), é uma mulher frustrada por não conseguir colocar em prática seu talento de pianista. Foi apelida de Arthur Rubinstein por um tio (Seth Rogen), um artista devotado do circo. Ela incentivava o filho a realizar seu sonho, enquanto que o pai via apenas como um passatempo, queria que ele seguisse uma carreira promissora e com garantias como a dele. Então, Sammy decide explorar o poder da criação de filmes na ajuda de ver a verdade de uns sobre os outros e, por consequência, sobre nós mesmos e os mais próximos nas relações humanas. Soa como traços marcantes de uma autobiografia repleta de alegrias inesperadas e tristezas camufladas como o devastador segredo que guarda dos pais. A traição é uma marca forte no microcosmo daquela família, captada involuntariamente em uma das filmagens realizadas por Sammy em um vídeo caseiro, numa reverência ao mestre italiano Michelangelo Antonioni, no notável drama Blow Up – Depois Daquele Beijo (1966), sobre um rolo fotográfico revelado que pode ter documentado, sem querer, um assassinato.

Novamente há o reencontro de Spielberg com o antigo parceiro John Williams, de 90 anos. Autor da maioria das trilhas sonoras da vasta filmografia do cineasta, em que mais uma vez dá aula de como criar uma atmosfera fascinante sem ser invasivo no desenrolar da trama, respeitando o momento da pausa e do silêncio, para os momentos em que a música deve estar presente. O dinâmico roteiro escrito pelo diretor em parceria com Tony Kushner, que nem faz sentir os 151min de projeção, além de retratar a adolescência de Sammy, alter ego de Spielberg, mostra os colegas de classe fazendo bullying através de sintomáticos ultrajes pelo antissemitismo que vivenciou o cineasta em lugares conservadores dos EUA. Até uma namoradinha devota fervorosa do Cristianismo fez pressão para que ele aceitasse Jesus Cristo, mas lhe virou as costas com o primeiro problema conjugal apresentado pelos pais do jovem. Uma redenção diante de uma situação de amor inocente que ficou para trás neste retrato do reencontro de um homem com seu passado e suas memórias com o sentido prazeroso de viver, diante de suas divagações reflexivas.

O trem é a mola propulsora do personagem central, desde a cena do descarrilamento na obra de DeMille, numa justa homenagem aos Irmãos Lumière, quando uma locomotiva vai de encontro à câmera e causa um frisson na plateia que assistia a primeira sessão organizada pelos inventores do cinematógrafo, em 1895. Outra cena inesquecível é o encontro do protagonista com John Ford (interpretado pelo cultuado diretor David Lynch), que lhe dá uma dica importante para sua carreira, quando menciona que o enquadramento do horizonte deve estar acima ou abaixo na cena, nunca no meio, pois seria enfadonho. O epílogo retrata o encontro de Spielberg, que realmente aconteceu, com o velho artesão mitológico, seu maior ídolo, realizador de No Tempo das Diligências (1939), As Vinhas da Ira (1940), Depois do Vendaval (1952) e Rastros de Ódio (1956). Presta um tributo inestimável de puro amor ao cinema e sua essência de forma admirável.

Spielberg se reencontra com a pura arte genuína do cinema e a sensibilidade de conduzir para absorver os infortúnios e buscar a retomada dos encantos que a vida oferece. Uma narrativa com tom de reminiscências pretéritas e os motivos fundamentais que o levaram para o pódio dos grandes realizadores. Um passeio sobre o painel familiar com situações do cotidiano, no qual as idiossincrasias se apresentam com suas peculiaridades inerentes, profundamente específicas, autêntica e dolorosas, às vezes. Não há acontecimentos surreais ou estratosféricos. Comove e cativa nos aspectos psicológicos construídos com primazia sobre o ser humano depurando as angústias num desfecho de amor em êxtase intimista, apontando como referência uma trajetória digna e humana numa consequente suavidade pelo amadurecimento. Provoca estímulos pela emoção e a crença de que o cinema está em flagrante resistência para manter a chama acesa pela efervescência cultural inesgotável da arte que permanecerá como legado, nesta admirável homenagem em Os Fabelmans.

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Aftersun

 

Pai e Filha

Vem do Reino Unido em coprodução com os EUA o cultuado drama familiar Aftersun, título que pode ser traduzido literalmente como “Depois do sol”. Escrito e dirigido pela escocesa Charlotte Wells, num panorama repleto de sutilezas para mostrar um choque de realidade dentro de sonhos idealizados, mas com nuances de perdas e conquistas diárias. Com relação aos sentimentos dos personagens e da relação dos dois personagens centrais, pouco se sabe, diante do enredo pontuado por uma certa melancolia de lembranças e recordações da adolescência de uma jovem. O filme traz a história sem muitos detalhamentos que irão se desenrolar como um novelo na trama de um roteiro enxuto, mas que elucida aos poucos os enigmas apresentados no prólogo e no seu contexto com marcas sintomáticas de um amor incondicional para ser saboreado a cada cena. Vai desde o ponto de partida até o epílogo num ritmo angustiante que tanto cala, afasta e aproxima dois seres humanos sedentos de ternura, e acerta em cheio uma plateia enjoada de violência explícita. Disponível no MUBI.

A história se passa no final da década de 1990, quando Sophie (na versão infantil é vivida por Frankie Corio, uma grande revelação; Celia Rowlson-Hall está na versão adulta), de onze anos, e seu pai Calum (Paul Mescal- indicado ao Oscar para Melhor Ator) que passavam as férias em um clube na costa da Turquia. Os dois tomam banho no mar e na piscina, jogam bilhar, cantam à noite em karaokês, tomam bebidas deliciosas coloridas, contam piadas, e desfrutam da companhia amigável um do outro. Quando a menina está sozinha, ela faz amigos e tem novas experiências e aos poucos as descobertas são desfraldadas. Um resgate dolorido de um passado de 20 anos, buscado por uma filha em relação ao seu pai e o namoro com sua mãe que não foi adiante. Traz as memórias de acontecimentos pretéritos que ganham um novo significado, enquanto tenta reconciliar o genitor que conheceu com o homem que não conhecia. A saudade mesclada com imaginações e fantasias de um tempo perdido que não mais será recuperado, mas que terá valor inestimável pelo afeto entre eles. Um filme hábil que manipula sentimentos com elementos humanos e dignos, através de delicados quadros e composições que eram cultuadas na época como Macarena. Sem didatismo ou apelação para lágrimas fáceis, afastando-se completamente de pieguismos, méritos para a cineasta que conduz com criatividade o espectador a acompanhar sem lamentar o destino dos personagens, contagia na essência cinematográfica.

Aftersun ganhou prêmios no Festival de Cannes, em Palm Springs, na Mostra Internacional de São Paulo, teve indicações ao Oscar deste ano e ao BAFTA de Cinema, entre tantas outras. A trama gira em torno da filha adulta que surge nos reflexos de espelhos ou na tela de uma TV, com cenas gravadas por uma filmadora caseira, outras por frestas ou fechaduras transformando o espectador quase em uma espécie de voyeur. A realizadora habilmente coloca o sentido da existência que tanto a garota procura para atenuar sua dor que remói para desvendar o passado que será aos poucos descortinado, para que se sinta como uma expoente da vida na ânsia de almejar a felicidade que tanto idealiza. A veneração que sente pelo pai e do sentimento de doçura dele para com ela são ingredientes que ilustram as cenas da bonita história contada do passeio de entretenimento das férias no passado revelador. Eles se admiram com estonteante prazer que darão a alegria de continuar existindo, a amizade solidificada e um indício promissor daquele ambiente tão magnífico vivenciado pela dupla, ou seja, o prazer e o aroma da vida.

Neste redemoinho está encaixada a filha que nutre uma beleza interior, deixando transparecer todo apreço e sua altivez em suas atitudes. Os contornos pacificadores irão se estabelecer nas relações entre os dois, com as revelações maduras sobre as memórias com fissuras dos primórdios de um passado distante, em que ela está aprisionada. Seu fascínio pelo pai soa metaforicamente como o sentido de seu enclausuramento psicológico, diante do fato pretérito causador da curiosidade e de sua amargura que busca entender. Porém, há profundidade no contexto do momento em que o amor paternal é alicerce para sua lucidez que tomam contornos inimagináveis para uma aproximação com a vida marcada pela distância entre eles, cada um morando em países diferentes. O filme busca alternativas pragmáticas para lidar com as dificuldades advindas do cotidiano, através de opções apresentadas como fórmula do bálsamo da convivência civilizada. Um drama atual e exemplar, no qual a narrativa está inserida na linguagem do cinema em toda sua extensão que não cai na mesmice de roteiros complexos e confusos vistos em muitas realizações estéreis, ao dar vazão para um mergulho no imaginário do público.

Para isto é dado o tom certo do clímax que desencadeará no desfecho que trará luz para um futuro difícil, mas com um toque de otimismo nesta admirável obra de valores profundos e marcantes numa atmosfera de amor e melancolia de uma realidade tão presente. Eis uma interessante busca de uma criança que foi um dia, mas que agora adulta precisa reatar os laços de afinidade familiar. Os sentimentos que são necessários para reconhecer a conexão abalada, quase fraturada, que se estabelece entre os protagonistas. Uma abordagem com profundidade sobre os aspectos das intrínsecas querelas familiares. Um drama que consiste em um mergulho psicológico para criar personagens consistentes, fortes ou frágeis, vencedores ou vencidos, não importa. Mas todos com alma e coração quase sangrando. São fatos do cotidiano que gravitam no painel construído por Wells nas ações do tempo que mudam gradativamente e o espectador acompanha a transformação, através de um cenário que corta o silêncio dolorido. Há no desenrolar da história um aprofundamento intenso nos diálogos e nas imagens implacáveis, pela maneira elegante da condução, com um toque de classe seco com extremo realismo de uma infância desnudada e apresentada com sabor agridoce.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Os 10 Melhores Filmes do Ano (2022)

 

Os 10 Mais e 05 Menções Honrosas

Já é final de ano e todos os críticos estão com suas listas de melhores filmes vistos nos cinemas e nas plataformas de streaming em 2022. Também elencamos o que se viu e ficou marcado como os 10 Mais e ainda 05 Menções Honrosas. Segue em ordem de preferência:

 01. Drive My Car, de Ryüsuke Hamaguchi (foto acima);

02. A Felicidade das Pequenas Coisas, de Pawo Choyning Dorji;

03. Ennio, O Maestro, de Giuseppe Tornatore;

04. Lamb, de Valdimar Jóhannsson;

05. O Acontecimento, de Audrey Diwan;

06. Um Herói, de Asghar Farhadi;

07. O Truque da Galinha, de Omar El Zohairy;

08. A Noite do Fogo, de Tatiana Huezo;

09. A Filha Perdida, de Maggie Gyllenhaal;

10. Marte Um, de Gabriel Martins.

Dos que não conseguiram constar nos 10 Mais, listamos algumas menções honrosas, que só não entraram por absoluta falta de espaço, tais como:

- Argentina, 1985, de Santiago Mitre;

- Tre Piani, de Nani Moretti;

- O Perdão, de Maryam Moghadam;

- O Festival do Amor, de Woody Allen;

- Elvis, de Baz Luhrmann.

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Argentina, 1985

 

O Julgamento

Ganhador do prêmio da Federação Internacional dos Críticos de Cinema (Fipresci) no Festival de Veneza e indicado pela Argentina ao Oscar de Melhor Filme Internacional, Argentina, 1985, quarto longa-metragem do cineasta Santiago Mitre, busca o tricampeonato na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas em 2023, como fez a seleção de futebol na Copa do Catar neste ano. A História Oficial (1985), de Luis Puenzo, e O Segredo dos Seus Olhos (2009), de Juan José Campanella, foram os primeiros vencedores do Oscar. O cineasta é reconhecido pelas abordagens dos problemas sociais, econômicos e políticos de seu país. O diretor estreou em O Estudante (2011), ano marcado por convulsões sociais nos EUA, Chile e na Europa, tendo abocanhado mais de 20 prêmios em festivais pelo mundo. O segundo longa, Paulina (2015), foi laureado com o troféu principal da Semana da Crítica em Cannes, retratou a temática da violência contra a mulher de uma maneira pouco convencional, contextualizou a trama e jogou luz à história, tendo como subtema a justiça a serviço dos interesses pessoais de poderosos. Misto de drama político com familiar, A Cordilheira (2017), terceiro longa, é um instigante painel sobre os bastidores da política mesclado com os problemas pessoais de um chefe da nação abordados com esmero, bem construídos os personagens fictícios, mas facilmente identificáveis no cenário da época.

Mitre, de 42 anos, foi também roteirista dos filmes Leonera (2008), Abutres (2010) e Elefante Branco (2012), todos realizados por Pablo Trapero. Agora se debruça sobre os horrores da ditadura militar que deixou sequelas e marcas para sempre em seu povo. Dividiu o roteiro com Mariano Llinás, assim como já o fizera nas últimas duas realizações. Baseado em fatos reais, Argentina, 1985, disponível para assinantes do Amazon Prime Vídeo, se inspira na história de dois promotores públicos com uma equipe de jovens assistentes neófitos que terão a improvável missão de processarem os militares que comandaram e serviram ao duro regime de exceção estabelecido no país vizinho, de 1976 a 1983. O famoso Julgamento das Juntas, de meados de 1984 a setembro de 1985, foi o primeiro no mundo por um tribunal civil contra comandantes militares que tinham estado no poder. Ocorreu no governo de Raúl Alfonsin (1927-2009), eleito como primeiro presidente da fase da redemocratização. O personagem central Julio Strassera, chamado de “Louco” (1933-2015), brilhantemente encarnado pelo cultuado ator Ricardo Darín, em mais uma interpretação irretocável, tem na dócil esposa, Silvia (Alejandra Flechner) e no casal de filhos adolescentes, sua base familiar de sustentação.

Strassera tem dificuldades para montar sua força-tarefa, diante das negativas recorrentes de seus colegas experientes. Ou por medo ou por estarem alinhados ao nefasto regime sanguinário com indisfarçáveis tendências fascistas, com o velho e surrado discurso de eliminarem os comunistas. Encontra respaldo e apoio no assistente Luís Moreno Ocampo (Peter Lanzani- de boa atuação), um filho de militar que tem a mãe uma admiradora do sistema, inclusive ela frequentava as missas com integrantes da alta cúpula militar. Seu mentor, Alberto (Norman Briski), traz palavras de sabedoria, embora muito debilitado. O diretor teatral, Carlos Somigliana (Claudio Da Passano), faz uma dobradinha interessante para a defesa oral do protagonista no tribunal. A dupla de promotores manda a equipe formada de jovens advogados e estagiários a pesquisarem os processos com as respectivas provas para tentar colocar na cadeia os principais líderes da Ditadura Militar. Os promotores sofrem ameaças e pressões políticas e militares a pararem com as investigações. Mas o julgamento, finalmente, aconteceu em 22 de abril de 1985, com cerca de 530 horas de audiência, 850 testemunhas, sendo 709 casos julgados e sentenciados pelos juízes León Arslanian, Ricardo Gil Lavedra, Jorge Torlasco, Andrés D'Alessio, Guillermo Ledesma e Jorge Valerga Aráoz.

O drama político aborda com clareza e boa didática os depoimentos das vítimas do regime, com relatos escabrosos de estupros e pessoas desaparecidas. Mitre conduz com discernimento para contar esta triste história que traz marcas indeléveis de um passado tingido pelo sangue, marcado pela desumanidade e o rompimento com os direitos humanos. Entre os acusados, sentaram no banco dos réus os comandantes do Exército, tenente-general Jorge Rafael Videla; da Marinha, o almirante Emilio Eduardo Massera; da Aeronáutica, o brigadeiro-general Orlando Ramón Agosti; e o presidente da República no período de 22 de dezembro de 1981 a 18 de junho de 1982, general Leopoldo Galtieri. Embora todos condenados, o sucessor de Alfonsín, Carlos Menem (1930-2021), concedeu indulto aos militares, que foram anulados posteriormente. Videla, que nunca se arrependeu do que fez, acabou sendo novamente julgado e preso, tendo morrido aos 87 anos na prisão, em 2013. As vítimas eram mencionadas como culpadas pelo descalabro político e social que vivia o país, na visão de seus algozes travestidos de salvadores da pátria. Jogavam pesado com a bandeira da corrupção sendo desfraldada, através de artimanhas e malefícios advindos dos porões palacianos e dos quartéis, tudo a serviço da grande farsa da patriotada.

A construção narrativa é dinâmica e exemplar, dosada com momentos de emoção, seriedade e um espaço para humor com leveza. As revelações do passado vêm à tona e explodem como cataclismos de uma convulsão social pelos segredos guardados como fantasmas enjaulados e amordaçados. No meio do turbilhão dos processos que se desenvolvem nos tribunais, aparece a degradação humana que campeava nas cúpulas diretivas de alianças de direita com um governo ditatorial e genocida, onde mais de 30 mil pessoas desapareceram e milhares foram mortas. Um ambiente de tensões e desdobramentos escusos onde os mortais ficaram à mercê e sequer imaginaram os resultados e o quanto lhes custariam. Abafar os horrores ocorridos seria mais tenebroso ainda. A Argentina e o Brasil têm muitas semelhanças nos capítulos mais brutais de sua história, mas a justiça brasileira está longe de adotar o lema “NUNCA MAIS’ para aprender com seus erros.

Mitre não menciona o perdão judicial de Menem por pressão das Forças Armadas com leis sendo promulgadas para beneficiar os militares presos, o que revela uma falha ou opção grosseira no roteiro, embora não invalide a obra. O longa cumpre seu papel de apresentar as abjetas violações e torturas de um regime autoritário dos mais cruéis que se tem notícia. Disposto a eliminar a oposição por se autointitular infalível e eterno no comando, mas que a História apontará a verdadeira realidade dos ditadores e suas derrocadas, mais cedo ou mais tarde. Os julgamentos e as condenações perpétuas para alguns dos acusados são um bálsamo de energia, com a esperança no desfecho da sentença: “Nunca Mais”. Fica a visão doentia dos homens obcecados pelo poder e seus envolvimentos com situações escabrosas, dignas de repugnância pelos seus atos hostis e irascíveis numa sociedade calada pela censura e as barbáries cometidas nos porões para calar uma sociedade carente de líderes verdadeiros. Um drama contundente na sua conjuntura temática das causas e efeitos pelas imagens e diálogos com força de grande expressividade, com rostos e olhares de certa perplexidade diante de algumas surpresas escondidas pelos militares argentinos em seus crimes hediondos contra a humanidade.

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Nada de Novo no Front

 

Encurralados

Indicado ao Oscar pela Alemanha e considerado um dos favoritos para abocanhar a estatueta de Melhor Filme Internacional, Nada de Novo no Front, em cartaz na Netflix, conta uma impressionante história da saga do protagonista Paul Bäumer (Felix Kammerer, de atuação comovente), que falsifica a autorização dos pais para embarcar e lutar com seus amigos. Eles se alistam voluntariamente no Exército “pelo Kaiser, por Deus e pela pátria”, diante de uma fervorosa onda patriótica, que logo faz com que os futuros anti-heróis caiam na realidade brutal de uma guerra que nada tem de glamourosa, sequer leva para os caminhos da glória. Os preconceitos sobre os ditos inimigos e os acertos e erros do conflito se desequilibram, no entanto, em meio à contagem regressiva da desejada volta. Paul continua lutando até o fim para satisfazer os generais do alto escalão com discursos fáceis e palavras bonitas, convencem os rapazes a arriscarem suas vidas por ideais para tentar acabar com a batalha, na tão sonhada ofensiva vitoriosa alemã contra a resistência francesa. O cenário patético nada mais é do que as insalubres trincheiras lamacentas da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

A direção é do alemão Edward Berger, que também resgata o roteiro original de um best-seller da literatura, o livro homônimo escrito em 1929, das lembranças do soldado Erich Maria Remarque, imediatamente celebrado pelo seu olhar pacifista para retratar as experiências de jovens trucidados pela perspectiva do confronto sem limites, através de uma narrativa de vários personagens que estavam a serviço de uma sentença de morte injustificável. Foi adaptado no ano seguinte para o cinema e lançado no Brasil com o nome de Sem Novidade no Front. Uma mistura de épico com ação que foi considerado um marco da sétima arte, tornando Lewis Milestone um dos principais diretores de sua geração, à época, pela visão antibelicista. Venceu naquele ano os Oscars de Melhor Filme e Melhor Diretor, além de ter sido indicado para Melhor Fotografia e Roteiro Adaptado. Berger segue a surrada inclusão de lugares-comuns na construção dos velhos clichês do gênero no longa-metragem atual. Inspirado no clássico de 1930, esta é terceira versão, que tem um cuidado técnico bem apurado, tanto na bela fotografia, como na fascinante trilha sonora, embora haja muita repetição de cenas, ainda assim faz os espectadores repensarem os motivos verdadeiros e as mentiras da Primeira Guerra Mundial.

O drama de guerra faz um retrato interessante da falta de provisões e de água potável, das dificuldades de recuperação dos feridos, a estratégia errada do local para os combates, além da preferência pela retirada pseudoestratégica dos militares alemães, com algumas pitadas fortes de crítica social aos governos da época, tanto da Alemanha como da França. Questiona sobre os filhos que morrem no front por culpa de quem os empurra para lá, ainda que bem distante do arrebatador discurso feito em tom de protesto na excelente realização Frantz (2016), de François Ozon. Um país derrotado solenemente em terras estrangeiras com um saldo gigantesco de vítimas dos dois lados soa como uma proposta objetiva de um libelo contra o armamentismo e seu espírito belicoso. Estampa-se a dor das perdas e a derrota nos rostos dos sobreviventes na máxima: “A guerra é um lugar onde jovens que não se conhecem e não se odeiam se matam, por decisões de velhos que se conhecem e se odeiam, mas não se matam.”

Embora o filme dê uma sensação de déjà vu à trama, há o encadeamento dos dramas pessoais como estratégia para a construção de um discurso pacifista. O protagonista representa a essência da tragédia de uma guerra ensandecida pelos homens. Como fio condutor, revela outras realidades e expectativas frustradas semelhantes às suas fantasias ao contrariar a celebração dos heróis para continuar alimentando a máquina das armas e dos conflitos bélicos. Remete para outras obras similares como Dunkirk (2017), do britânico Christopher Nolan, inspirado na história verídica da Operação Dínamo, na qual houve o resgate histórico no início da Segunda Guerra Mundial, para salvar cerca de 400 mil homens das tropas aliadas. Acabam encurralados contra o Canal da Mancha pelas forças do Exército e Aeronáutica nazistas de Hitler na Praia de Dunquerque, no Norte do território francês. Também há analogia com o drama humano da Segunda Guerra Mundial retratado no dinamismo de Steven Spielberg em O Resgate do Soldado Ryan (1998), que segue a fonte de inspiração da abordagem pela paz. Também há uma aproximação com Glória Feita de Sangue (1957), de Stanley Kubrick, quando em 1916, durante a Primeira Guerra Mundial, um general francês ordena um ataque suicida. Porém, nem todos os seus soldados cumprem a decisão insana do militar. Então ele exige que sua artilharia ataque as próprias trincheiras. O pedido absurdo não é obedecido, por isto resolve pedir o julgamento e a execução de todo regimento por se comportar covardemente no campo de batalha e assim justificar o fracasso de sua estratégia.

Nada de Novo no Front tem alguns méritos pela eloquência e boa verossimilhança narrativa ao retratar soldados acuados e sem uma perspectiva de fugir daquele lugar inóspito, um buraco sem saída, com a morte rondando a cada minuto. Reitera a ideia do absurdo de mandar inocentes morrerem como animais de pouca importância, decorrente de caprichos dos militares com suas estratégias. A origem é a ambição geopolítica das nações com suas fragilidades e os atropelos exercidos pelas arbitrariedades dos comandantes com vidas alheias vistas como joguetes descartáveis. Enquanto os jovens extasiados pelos sonhos vendidos a eles passam fome e se alimentam com restos de comida, frio dilacerante e bebem água fétida para saciar a sede, os altas patentes, distante do front, participam de banquetes regados com os melhores vinhos e sobremesas suculentas, e ainda reclamam da qualidade que não está no ápice para seus paladares apurados. Uma ignomia recorrente, com uma triste mistura de lodo, sangue, bombas, punhais, tiros, mortes, discursos militaristas e arranjos nos gabinetes. Demora um pouco, mas logo os personagens se cruzam em suas peripécias de luta num roteiro flexível e complexo pelo clímax neurotizante sem tempo para delongas, deixando o fervor do cenário se diversificar. A reflexão fica estampada na carnificina doentia pela estupidez humana com resultado aterrador imposto ao olhos das testemunha dos fatos. Uma obra admirável que funciona quando retrata as individualidades e nas causas políticas e econômicas que pairam da loucura dos conflitos coletivos da chacina pela irracionalidade.