sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Retratos Fantasmas

 

Viagem ao Passado

O cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho estreou com o cultuado O Som ao Redor (2013), que rendeu o prêmio da Crítica no Festival de Roterdã, na Holanda; o Kikito em Gramado de melhor direção; e o título de Melhor Filme no Festival do Rio. Refletia a preocupação do cinema autoral com a estratificação social, através da captação da câmera que percorre uma rua famosa da zona Sul de Recife, mostrando belas moradias bem protegidas. Depois viria causar polêmica com Aquarius (2016), diante do protesto da equipe na França, ao participar da seleção oficial do Festival de Cannes. Virou bandeira política contra o governo interino, à época, cinco dias após o processo de impeachment ser instaurado. O terceiro longa, Bacurau (2019), dividiu a direção com Juliano Dornelles, e ganhou o prêmio do Júri no Festival de Cannes daquele ano. Mostrou arrojo ao criar um inusitado faroeste contemporâneo que transita para o suspense, passa pela ficção científica, flerta com o horror e chega até o drama das famílias acuadas pela invasão de alienígenas numa aldeia aparentemente pacata.

Mendonça está de volta com este extraordinário documentário Retratos Fantasmas, que dialoga com a ficção quando divide em capítulos, faz incursões num roteiro ficcional, e flerta com uma obra de características de puro ensaio. Reflete a preocupação do cinema autoral com a temática do cotidiano das salas de cinema de calçada sendo invadidas pelas farmácias, igrejas e a especulação imobiliária no desenvolvimento urbano acelerado. Ambientado no centro de Recife como uma espécie de personagem principal através do imaginário e das muitas memórias, durante o século XX. Ao longo de uma hora e meia, faz colagens de 60% de imagens de arquivos públicos, fotografias, vídeos e registros impressionantes em movimento, sendo a grande maioria de seu próprio acervo. Explora a história humana e o histórico centro da cidade ao pontuar seu enredo a partir das salas que eram pontos de referência e atraíam a população ditando comportamentos de uma época. Levou sete anos para o trabalho de pesquisa até concluir a obra e fazer sua estreia internacional no Festival de Cannes deste ano, com o lançamento nacional se efetivando ao abrir, fora da competição, o 51º. Festival de Gramado. Foi selecionado para participar dos festivais de Toronto e Nova Iorque, sendo também forte candidato para representar o Brasil na disputa do Oscar Internacional de 2024.

O filme tem como ponto de partida a vista da janela da casa do cineasta que retrata com delicadeza o lado familiar e carinhoso, onde morou por mais de quarenta anos, desde a infância com seus pais até se casar, e lá permaneceu por mais um bom tempo. No prólogo, o diretor convida o espectador para entrar dentro do imóvel em que viveu, filmou, e produziu várias de suas realizações. Enfatiza as farmácias, igrejas e as novas construções desenfreadas que só visam lucros, pouco se importando com a cultura, tomando o lugar das salas de cinema de rua. A narrativa traz no bojo um novo realismo da cidade onde nasceu, do cinema regional e do nacional. Uma temática universal dos grandes centros urbanos do mundo, porque ali estão estampados os novos tempos de qualquer capital do país- Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e as demais- que se renovam para uma adequação de novas demandas. Deixa para trás um cotidiano retrô que virou fantasmas de lugares e pessoas que por lá passaram e ficaram suas lembranças que se eternizaram nesta comovente viagem que traz um pouco de amargura nostálgica até para as gerações mais novas que não vivenciaram estes tempos vistos como um momento especial dos cinemas de calçada.

As realizações anteriores de Mendonça já abordavam com sensibilidade e sutileza a importância dos lugares nas histórias, tanto em Som ao Redor no dia a dia de uma dona de casa cansada com seus dois filhos, típica da classe social menos favorecida, sendo obrigada a ouvir o latido estridente do cachorro da vizinha. Já Aquarius retratava a especulação imobiliária pela ganância especulativa sem limites. Trazia a exacerbação pela intransigência de métodos absurdos pela coação de uma empreiteira para que uma moradora lhe vendesse seu apartamento para construir um novo prédio. Chegou ao cúmulo de plantar ninhos infestados de cupins para demonstrar a força do poder como ameaça explícita à integridade física da proprietária. A realocação e a modernização ditadas como regras de soluções pragmáticas chocam-se com o bem-estar e o sagrado direito da livre definição, ainda que seja tachada de retrógrada para simbolizar sua liberdade de decisão, contrapondo-se ao que é salutar para o destino da protagonista traumatizada pelas cicatrizes decorrentes de um câncer. Retratos Fantasmas é uma maneira continuada dos enredos destes dois magníficos filmes anteriores de Mendonça, como o fechamento de uma trilogia notável sobre uma cidade que perde sua identidade. Aponta para a imposição do progresso desvairado dominando o contexto ao demonstrar que os áureos tempos ficaram para trás num retrato dos contrastes de uma realidade de anomalias e distanciamentos ao nosso redor num filme que simboliza o resgate da história.

Os sonhos convulsivos de outrora das salas de cinema de calçada que perderam seus espaços estão nesta estrutura narrativa em off do diretor de inspirada criatividade, que sai ileso ao não cair na obviedade do lugar comum e nas armadilhas melodramáticas. Ainda que haja um viés saudosista pelos elementos caracterizadores envolventes de memórias individuais e coletivas das imagens dos letreiros premonitórios da política brasileira, bilheterias acanhadas e os velhos projetores com rolos de fitas, fica uma contundente marca plástica de rara qualidade neste paradigmático documentário sobre o contraste dos novos tempos com o passado dos espaços das salas de cinema de rua que deixaram uma lacuna emocional ao serem transferidos para dentro de shoppings. Há sugestões, em algumas cenas, que lembram o clássico Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore, como na cena admirável com os lamentos do projecionista. O epílogo nos remete para dois filmes do cineasta iraniano Jafar Panahi: Taxi Teerã (2015) e Sem Ursos (2022), bem como o motorista angustiado em Taxi Driver (1975), dirigido por Martin Scorsese, onde Mendonça aparece dentro de um carro, em frente às câmeras, faz um personagem ao lado de um ator interpretando um motorista de aplicativo e suas travessuras invisíveis, numa incrível sequência ficcional com insinuações de realidade na essência. Registra com delicadeza e uma dose bem-humorada para suavizar o peso melancólico cortante e doloroso até o desfecho destes densos fantasmas pretéritos. Uma abordagem explorada profundamente como uma obra maior no cenário nacional, que deverá estar nas listas dos críticos nos 10 melhores filmes do ano.

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Casa Vazia

 

Solidão no Pampa

O primeiro longa-metragem do diretor gaúcho Giovani Borba, Casa Vazia, que também assina o roteiro, é uma agradável surpresa no cenário nacional, nesta coprodução com o Uruguai. Foi vencedor no Festival de Gramado do ano passado nas categorias de melhor ator, roteiro, trilha sonora, desenho de som e a fascinante fotografia com cores desidratadas, assinada por Ivo Lopes Araújo, que também ganhou no Festival do Rio de 2021. Uma exemplar construção de uma encenação que reflete as perdas do cotidiano na medida em que os sentimentos dão a transição do dia para o anoitecer e as expectativas que reservam. O realizador segue os passos da conterrânea Cristiane Oliveira, no drama familiar Mulher do Pai (2015), bem como há também uma boa similitude com Rifle (2016), de Davi Pretto. Em ambas as obras existe um universo taciturno do Pampa gaúcho, onde a solidão salta aos olhos dentro de um contexto desolador do trabalho rural em franca decadência ao migrar para o plantio de soja nos grandes latifúndios, na qual a pecuária perde espaço e ruma para uma provável extinção, causando um sério constrangimento social pelo desemprego.

São escassos os filmes que retratam as paisagens dos pampas no Rio Grande do Sul, um dos maiores biomas do Brasil, com suas vicissitudes e idiossincrasias características. Além dos já mencionados, há épicos sobre a vida dos heróis da Revolução Farroupilha, como o de Beto Souza e Tabajara Ruas em Netto Perde Sua Alma (2001), Netto e o Domador de Cavalos (2008), de Tabajara Ruas, e Anahy de las Misiones (1997), de Sérgio Silva, interpretada pela estupenda atriz Araci Esteves, que agora encarna a mãe do protagonista em Casa Vazia. O cenário de aventuras agora dá lugar para os campos extensos, antes usados somente como pastagens e criação de gado, porém cedeu seu território para a monocultura do grão. É nesse lugar que vive Raúl (Hugo Nogueira - ator estreante de convincente atuação), um peão desempregado de meia-idade, pai de família, que vive em uma isolada casa humilde, ou seja, uma legítima tapera com paredes sem tinta, raros móveis, sem água potável e internet, com energia elétrica gerada pelos cataventos, na imensidão solitária dos campos. O cineasta aponta para a mão de obra tradicional da lida com bois, vacas e ovelhas que já não serve mais aos novos padrões dos donos das terras. Assolado pela pobreza e a falta de trabalho, o personagem central se junta a outros indivíduos para a prática do abigeato -roubar gado- durante a escuridão das noites nas estâncias. Ao retornar de mais uma madrugada de ilicitudes, encontra sua casa vazia, tendo sua mulher e seus filhos desaparecidos.

A realização mostra o microcosmo familiar sendo abalado pela desgraça, por isto Raul procura uma benzedeira, onde é evocada a lenda do negrinho do pastoreio, segundo reza a lenda, ele ajuda a recuperar algo perdido. Além do desemprego recorrente nacional, agora tem outro problema a enfrentar: tentar reencontrar seus familiares naquela paisagem de tristeza e desolação, na qual é retratada uma vida sem dignidade com conflitos pessoais pela depressão e o alcoolismo latente. Da ação vem a reação dos fazendeiros da região que se unem à polícia local para cercar os transgressores da lei - embora vítimas de um contexto social pela degradação gritante- e realizam vigílias armadas na caça aos larápios. Enquanto isso, a trajetória do protagonista fica cada vez mais repleta de incertezas, está pressionado pelo líder do bando (Roberto Oliveira), que teme perdê-lo e faz intimidações. Do outro lado, está seu cunhado (Nelson Diniz), chefe da equipe de segurança dos estancieiros que faz uma oferta para trabalhar na repressão aos abigeatários. Concorda com os dois lados, sem convicção, e se vê num beco sem saída para a busca da altivez. As imagens dizem tudo, nem é preciso diálogos, de acordo com o lado em que esteja, é matar ou morrer.

O diretor mostra a emblemática dúvida de um peão solitário perdido no universo da ética e da dignidade em confronto com uma situação caótica, onde terá de lidar com a realidade das perdas familiares pelo abandono, as diversas transformações que cercam o rumo de um homem, até então, sempre digno e trabalhador. As peculiaridades típicas do interior, mais precisamente nas pastagens da campanha, onde o cavalo é trocado pela bicicleta, num disruptivo gaúcho com suas tradições elementares, no qual ainda preserva o velho e bom chimarrão nas manhãs e nos finais de tarde. Observa o longínquo horizonte do prado sendo engolfados por outra cultura de trabalho. Embora haja um vazio circunstancial elementar pela dramaticidade dos personagens nas inerentes artimanhas, o roteiro deixa transparecer uma tristeza existencial profunda. Borba realça o olhar perdido daquele cenário de imensa solidão com a câmera apontada para aquele rosto sulcado. Há uma aparente indiferença quando o peão examina detidamente seu passado e a nova paisagem rural contrastando com uma inversão dos atuais valores que levaram aos píncaros da glória e do orgulho, mas que ficaram perdidos pelos caminhos tortuosos do passado, através do recurso apropriado de longos planos-sequência.

Um drama magnífico que dialoga com o suspense em que o silêncio é marcante, com imagens reveladoras e poucos diálogos, por serem necessários. Com sutileza e habilidade rara, o promissor cineasta acerta em cheio em sua estreia nesta sensível opção de abordar a temática do Pampa. Estamos diante de uma produção minimalista notável pelo esmero e zelo da construção do enredo e os personagens que desfilam com sobriedade. Há méritos na condução do espectador para acompanhar um vínculo de importância dos personagens, especialmente do protagonista, envolvidos pelos fatos que se sucedem numa atmosfera criada em torno daquela paisagem sóbria que lá atrás foi mais fértil e alvissareira, com seus usos e costumes cultuados no dia a dia. Casa Vazia é um filme peculiar e instigante que provoca conflitos que giram em torno do orgulho e da dignidade; sobrevivência, ética e honra; trabalho e desemprego. Cria contrastes de uma realidade caótica que compreende as necessidades de um Pampa fragilizado, outrora mitológico. Embora confabule com o naturalismo, passa por um realismo singular e cruel, transmite a melancolia com suavidade nesse cenário amplo, às vezes claustrofóbico, da fronteira com o Uruguai. Há méritos por não apelar para o melodrama rasteiro folhetinesco, deixando o sentido do existencialismo aflorar para a reflexão do espectador, num desfecho contemplativo pelo fogo em consonância com a liberdade metafórica na sua essência.

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

A Noite do Dia 12

 

Feminicídio

Vem da França o perturbador suspense psicológico mesclado com thriller policial A Noite do Dia 12, com direção do alemão de nascimento e de nacionalidade francesa Dominik Moll. Tem em sua filmografia Harry Chegou Para Ajudar (2000), O Monge (2011), Más Notícias Para o Sr. Mars (2016), Only The Animals (2019), entre suas realizações anteriores. Reaparece com seu novo longa-metragem vencedor de melhor filme no César do ano passado, o Oscar francês, direção, ator revelação (Bastien Bouillon), ator coadjuvante (Bouli Lanners), roteiro adaptado e som. Enriquece o cinema pela intensa dramaticidade nesta exemplar narrativa de um crime hediondo praticado contra uma bela jovem ao retratar os desdobramentos dos elementos ocultos da natureza humana e o feminicídio recorrente contra a mulher. Retrata os desmandos de parte de uma polícia com viés machista demonstrada ao longo da situação apresentada sem a solução corriqueira. Segue os caminhos abertos da possibilidade de se transformar num relato sobre a agressividade humana, sempre gerada pelos enigmas apresentados e desconhecidos, algo sugerido pelo cenário da sequência do enredo.

Baseado em fato verídico ocorrido em 12 de outubro de 2016, o filme foi inspirado no livro de Pauline Guéna, que passou um ano acompanhando policiais parisienses para escrever sua obra, adaptado por ela mesma em parceria com o diretor e o roteirista Gilles Marchand. A trama, em seu prólogo, mostra a celebração de duas festas, a despedida de um chefe da repartição policial que se aposenta, o veterano e desiludido Marceau (Bouli Lanners), com seus problemas existenciais diante do rompimento do casamento após a revelação da gravidez da esposa. Assume seu posto o protagonista Yohan Vivès (Bastien Bouillon), um investigador da polícia perseguido por um caso que lhe causa um incômodo obsessivo marcante em sua carreira, neste início de uma nova etapa na vida como o novo capitão. A contagiante alegria de confraternização com sua equipe será substituída pelo crime antecedido pelas imagens da noite num cenário de solidão, apenas com um gato preto e toda a superstição advinda do passado medieval, na referência da queima das bruxas. Concomitante, uma nova alegria surge de uma casa em um vilarejo no sudeste da França, decorrente de uma festinha familiar finalizada com a presença de algumas amigas, surge a jovem Clara (Lula Cotton-Frapier), de 21 anos, usando descontraidamente um celular, grava um recado para sua melhor amiga, Nanie (Pauline Serieys), e acaba por ser assassinada de maneira cruel ao ser queimada viva com gasolina por um desconhecido, vira uma tocha humana.

O roteiro enxuto, mas com grandes reviravoltas, dá uma dinâmica de um clímax dolorido e preocupante, sendo que o filme é dominado por uma forte dramaticidade pela habilidade meritória do cineasta de forma sensível. Nanie, em flagrante fragilidade, dá um testemunho relutante para a investigação, profere uma frase marcante ao afirmar que Clara “morreu por ser mulher”. Outra voz contrária aos comentários sexistas é da policial Nadia (Mouna Soualem), ressalta que “os homens matam e os policiais que investigam são os homens”. Perigosamente, os encontros e desencontros da vítima com vários ex-namorados são vistos como uma espécie de culpabilização por parte dos investigadores para que haja motivos para seu assassinato. A partir deste ponto enviesado, segue um rumo inesperado, pois há um afastamento visível do empenho em busca do criminoso, no qual se revela o ciclo perverso da violência que se torna rotina ao retratar o crime porque “qualquer um poderia tê-lo cometido”. Porém, há uma resistência comovente do novo capitão Yohan, que tem como hobby, todas as noites, depois do expediente, andar em sua bicicleta de corrida numa pista oval, embalado pela canção de Olivier Marguerit. Pedala em círculos intermináveis, com a expressão compenetrada, como uma válvula de escape das imagens da moça que não lhe sai da cabeça, visando atenuar o estresse do cotidiano. Faz dessas corridas noturnas, que não levam a nenhum lugar, uma metáfora frustrante do crime que está tentando colocar um desfecho, quase desesperador do mistério indecifrável. Cada vez mais obcecado em solucionar o caso, embarca em uma espiral interminável de segredos obscuros em busca de pistas e sinais que possam levá-lo até o culpado do crime brutal.

Com sutileza e imparcialidade, o diretor foca a trama nas oitivas dos policiais com os suspeitos que surgem conforme destrincham a vida social e amorosa de Clara. As reações violentas diante de figuras e fatos são associadas a forças ameaçadoras contemporâneas, bem acentuadas no desenrolar da história. A violência contra a mulher está bem demonstrada na agressividade diante da resistência no comportamento e na chegada de valores pouco dignos de uma sociedade machista neste instigante relato sobre os preconceitos e a violência cultuada. Um retrato singular sobre o feminicídio através da misoginia encravada com cenas impactantes, capazes de despertar a repulsa desta realidade desprezível do ódio às mulheres, que reforça os efeitos do machismo incrustado. Os interrogatórios envolvem deboches e julgamentos pré-concebidos de uma cultura avessa ao gênero oposto, exceto as demonstrações de empatia advinda dos pais, da amiga, além do investigador que abraçou a causa com ardor. Há zombaria do rapper criador de letras, do primitivo homem orgulhoso que cultua sua força física como um agressor impiedoso, entre tantos outros investigados.

O longa, entre tantos méritos apontados, além de oferecer uma plêiade de personagens construídos de carne e osso com seus aspectos psicológicos marcantes, afasta os recursos apelativos, tanto da violência explícita, quanto dos recursos lacrimejantes superados, ainda escapa com habilidade do maniqueísmo ao retratar o processo com suas derrocadas. A violência dá o tom das interações entre os gêneros, mas ao ser naturalizada, torna impossível de identificar, isolar e punir pelo pragmatismo simbólico. Há uma imensa desilusão desta teia de mistérios de uma realidade melancólica que se esconde na sociedade dominada pela irracionalidade. Mostra as mulheres sendo desumanizadas e culpabilizadas pelos crimes dos quais elas são vítimas, na qual não é a mesma situação aos homens, bem exemplificado no brutamonte com histórico de violência doméstica que continua vivendo normalmente. Eis um ensaio das inerentes dificuldades nos relacionamentos humanos diferentes de gêneros, onde a essência da hipocrisia machista do macho alfa é apontada para contrastar com a dignidade do outro possível novo homem solidário e cortês com suas dores e obsessões de um futuro, quem sabe promissor, sinalizado pelo protagonista. Há elementos indispensáveis que contribuem para as angústias de um imenso sofrimento que restam como sombras permanentes. Fica uma dolorosa sensação de insegurança pela falta de equidade que traz as diversas desconfianças transmitidas. Uma cumplicidade com o silêncio, ou a sátira, de personagens que deveriam se preocupar mais com o possível culpado ao invés da vida pregressa da vítima, com desculpas facilitadas para esconder a triste realidade mantida por uma sociedade ainda dominada e amordaçada pelo pensamento patriarcal. Um mergulho sobre as questões dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham a violência contra as mulheres neste extraordinário suspense, que deverá estar nas listas dos críticos dos 10 melhores filmes no final do ano.

sexta-feira, 28 de julho de 2023

O Crime é Meu

 

Verdades e Mentiras

François Ozon é um dos mais célebres e prolíficos cineastas franceses de sua geração, por ser nome constante em festivais como Cannes, Berlim e Veneza. Assim como Woody Allen, alcança a marca de quase uma produção por ano. Sua filmografia, entre curtas e longas, é formada por 46 títulos e está recheada de realizações com temáticas diversas, tais como: O Refúgio (2009); Potiche-Esposa Troféu (2010); Dentro de Casa (2012); Jovem e Bela (2013); o premiado Frantz (2016), drama histórico que recebeu onze indicações ao Prêmio César, abocanhando a láurea de melhor fotografia, além da premiação de melhor jovem atriz no Festival de Veneza de 2016 para a linda Paula Beer; o ótimo O Amante Duplo (2017); o polêmico Graças a Deus (2019), baseado em fatos reais ocorridos em Lyon, na França, no qual retratou de forma imparcial, nua e crua, a pedofilia velada na Igreja Católica, com denúncia de requintes psicológicos nefastos na sua mais pura essência; no controvertido Está Tudo Bem (2021), constrói um painel doloroso para contar uma amarga história de um industrial idoso acometido de um AVC irreversível que o deixa semiparalisado, numa temática polêmica por retratar o suicídio assistido; fez releituras para o cinema de referência com Peter von Kant (2022), assim como já o fizera com Frantz.

A última obra do realizador producente é O Crime é Meu, uma comédia escrachada, fora do convencional, que origina situações inesperadas, onde o farsesco é um elemento indispensável como linguagem para a criação desta apreciável radiografia amarga sobre as hipocrisias de uma sociedade pequeno-burguesa. O próprio diretor escreveu o roteiro livremente baseado na peça teatral estreada em 1934 Mon Crime, de Georges Berr e Louis Verneuil, terceira adaptação para o cinema. Os figurinos e a cenografia estão bem adequados e exemplarmente construídos com o rigorismo formal para uma charmosa Paris dos anos de 1930. Tudo lembra um grande teatro burlesco, com críticas incisivas ao sistema judiciário, transformado num julgamento encenado com os devidos artificialismos da época. Os desmandos de uma polícia atrapalhada e com o viés de se livrar logo da situação apresentada de um crime para uma solução imediata. Porém, tudo começa a desandar quando a autêntica história vem à tona, no surgimento em cena da suposta legítima assassina, não para preservar a integridade ética dos fatos verdadeiros, mas por nutrir uma inveja intensificada da atenção recebida pela jovem acusada que assumiu a autoria criminal, sendo absolvida por legítima defesa, acaba celebrada como heroína na mídia e obtém uma consagração artística de um sucesso estrondoso.

A trama gira sobre Madeleine (Nadia Tereszkiewicz), uma atriz jovem, pobre e sem talento, acusada de assassinar um famoso produtor de teatro. Conta com a ajuda da melhor amiga, Pauline (Rebecca Marder), uma advogada desempregada, que a defende com alguns métodos pouco éticos. Elas moram juntas e estão endividadas, inclusive pressionadas pela cobrança do locador que não suporta mais as desculpas para justificar cinco meses de aluguel atrasado. As relações humanas então se revelam tanto para o bem quanto para o mal. Quando a verdade é deslindada, o filme ganha uma nova dinâmica no eclético roteiro, com a aparição vivaz de uma diva esquecida do cinema mudo (Isabelle Huppert) que reivindica para si a autoria do delito. Uma cena marcante é quando ela procura o delegado (Fabrice Luchini), dando uma dimensão maior com a troca abrupta dos rumos da investigação. Embora o tempo seja os anos de 1930, o enredo aborda uma época absolutamente moderna e atual em que as mulheres se unem contra o poder corporativo dos homens num verdadeiro choque de gêneros dentro de uma complexa trama criminal bem humorada. Instiga a plateia a entender as diferenças e os conflitados avanços para a mulher empoderada que surge como um vulcão. Buscam seus direitos inalienáveis de ambição justa para ter o domínio da sua própria vida, pelos ventos que sopram para um norte sem retrocesso.

A narrativa traz um curioso desenrolar da história contada com elegância e sem artifícios de compaixões rasteiras. Uma comédia lunática com repletos diálogos beirando o inverossímil, mas apesar dos absurdos lançados, o foco nunca sai da tela e as nuances de construção são dignas de uma realização meritória que acentua o ridículo das situações onde as pessoas que formam a sociedade burlesca estão rigorosamente dentro de um contexto de conveniências e interesses escusos. Às vezes, com característica da Era de Ouro da Indústria de Hollywood; em outras, se nota a inspiração no mestre francês Alain Resnais, como por exemplo, em Ervas Daninhas (2009). Ozon não deixa de trazer os elementos que são caros e reveladores por perturbar através do cinema a investigação da vida íntima, ocasionalmente até acrescenta um tom de fábula adulta para apresentar as dores e as intrínsecas necessidades de personagens inseridos num mundo em transformação, mesmo que o sucesso venha a qualquer preço, como “os fins justificam os meios”, defendido por Maquiavel, no best seller O Príncipe, no qual conquistar e manter o poder justificariam manipular as leis ou usar a força.

O Crime é Meu transforma o julgamento numa espécie de teatro através de uma crítica ácida aos preconceitos, fobias e idiossincrasias inerentes mostrados, como o narcisismo do promotor, o delegado atrapalhado, a pavonice do juiz, o noivo avesso ao trabalho, e a defensora com suas carências e anseios, numa época voltada para o exercício da repressão, onde a mulher era submissa. A exposição visceral retrata a dureza moralista de uma sociedade machista contrária aos interesses do sexo oposto de maneira nefasta. São os elementos propulsores do enredo, num clímax bem engendrado sobre a sufocante batalha das duas personagens centrais reclusas da opinião pública. A farsa transforma uma picante história de um crime como resistência e redenção do feminismo revolucionário, muito bem articulada pela marca de um diretor atento aos problemas sociais, que cria uma digna realização humanista, com tintas satíricas para retratar uma realidade obsoleta. Sem a preocupação em definir verdades e mentiras, mas extrair um painel jocoso e risível de uma coletividade que fabrica figuras traiçoeiras. Ozon segue fiel à ironia fina nesse grandiloquente blefe alimentado por extravagâncias através de uma grande brincadeira. Uma narrativa pela ótica da mulher, para mesclar situações presentes com um futuro que almeja ao tentar driblar as adversidades. Uma reflexão admirável sobre a condição humana feminina e suas perspectivas com uma pujança feroz estimulante de ser livre e se impor diante das hipocrisias de uma sociedade burguesa retrógrada.

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Cinema Victoria Reabre Atividades

 

Cinema Victoria Reabre Atividades

Uma ótima notícia para os cinéfilos: reabriu hoje o charmoso Cinema Victoria de Porto Alegre. Está ali, bem localizado no Centro Histórico, com entrada pela Av. Borges de Medeiros e pela Travessa Engº. Acilino de Carvalho (Rua 24 horas). Reaparece no cenário cinematográfico uma lenda do patrimônio da arte, um dos últimos cinemas de rua que foi empurrado nos últimos tempos para dentro de uma galeria. A trajetória começou com o cinema originalmente se chamando Vera Cruz, tendo sua primeira sessão em 04 de setembro de 1940, com a exibição do longa-metragem A Mulher Faz o Homem (1939), de Frank Capra. No início da década de 1950, fechou pela primeira vez, mas voltou a reabrir em 12 de setembro de 1953, com o nome de Victoria, exibindo A Dupla do Barulho (1953), de Carlos Manga, com Grande Otelo e Oscarito. Fechou novamente em 1998, reabriu em maio de 1999, vindo a fechar outra vez em 2018.

Foi ali que assisti meu primeiro filme na Capital gaúcha, o longa Um Certo Capitão Rodrigo (1971), de Anselmo Duarte, com Francisco Di Franco, Elza Prado e Pepita Rodrigues. Meu tio me levou pela primeira vez naquele suntuoso cinema, com uma entrada principal ao estilo de um teatro, todo atapetado em vermelho para um pisar macio, dois andares de cadeiras de madeiras chiques para se apreciar as películas da época, com uma sala de espera repleta de sofás e poltronas de couro, portarias com funcionários engravatados e nas laterais bilheterias com moças bonitas, elegantes e educadas, de cabelos presos e um sorriso afetuoso nos lábios pintados de um batom luzidio.

Havia uma bomboniere com as insuperáveis balas azedinhas e as imperdíveis gomas açucaradas e barras de chocolate ao melhor estilo da Neugebauer. Pipoca não era recomendável, não ficava de bom tom, lembrava pessoas ruminando. À vezes, os filmes paravam de repente para serem trocados os rolos, era um apetitoso momento para uma troca de beijos discretos e um tocar de mãos no escurinho da sala. Um bom local de referência para esperar a namorada e assistir em Cinemascope naquela imensa telona Tubarão (1975), de Steven Spielberg, O Vento Levou (1939), de Victor Fleming, Os Dez Mandamentos (1956), de Cecil B. DeMille e o badalado O Exorcista (1973), de William Friedkin.

No Cinema Victoria levava meus filhos para assistir comédias, suspense, dramas, aventuras, e quase sempre os infantis da Walt Disney, entre os quais Branca de Neve e os Sete Anões (1937), Cinderela (1950), A Bela Adormecida (1959), além de filmes de piratas, ilhas de tesouros, entre tantas opções. Reminiscências das lembranças à parte, fica o regozijo da reabertura de um ciclo que recomeça para o velho e icônico cinema de calçada, ou quase, pois foi redirecionado para dentro de uma galeria, mas bem dividido em duas salas modernas, poltronas confortáveis, sob nova direção. A dor sombria ao fechar pela última vez em 2018, agora dá lugar para a esperança do de um futuro promissor do velho novo Cine Victoria que reabriu hoje com o badalado filme Barbie, de Greta Gerwig, com Margot Robbie, Ryan Gosling e America Ferrera. Que nunca mais feche!

sexta-feira, 14 de julho de 2023

A Primeira Morte de Joana

 

Caminhos da Juventude

Cristiane Oliveira – não confundir com a atriz que celebrizou a personagem Juma na novela Pantanal – ficou conhecida com o drama familiar Mulher do Pai (2015), que venceu os prêmios de Melhor Diretor, Melhor Atriz Coadjuvante (Verónica Perrotta) e de Melhor Fotografia no Festival do Rio 2016. Abordava uma adolescente que precisava cuidar do pai cego, após a morte da avó que os criou como irmãos. Quando o genitor percebe o amadurecimento da filha, surge uma grande intimidade na relação afetiva, mas com a chegada de sua namorada, o ciúme tomará uma proporção enorme na vida deles. O segundo longa-metragem da cineasta gaúcha, A Primeira Morte de Joana, estreou no 51º. International Film Festival of India, em janeiro de 2021 e foi vencedor de 11 prêmios, nos mais de 35 festivais pelos quais passou, inclusive no Festival de Gramado com o Prêmio da Crítica. Foi ambientado no final do verão de 2007 na cidade de Osório, muito conhecida por seu parque eólico com 75 torres geradoras de energia, o imponente Morro da Borússia e dezenas de lagoas, onde foi criada a fictícia cidade de Lagoa dos Ventos, bem como teve locações nas belas paisagens do município de Santo Antônio da Patrulha, ambos no Rio Grande do Sul.

A trama, aparentemente é simples, embora haja uma razoável complexidade e comece a se delinear no seu desenrolar ao retratar as dúvidas e os caminhos que os adolescentes procuram em suas vidas futuras. O roteiro foi assinado pela diretora em parceria com Sílvia Lourenço, no qual focaliza a pré-adolescente de 13 anos, a criativa Joana (Letícia Kacperski), ao trilhar o típico período da transição entre a infância e a adolescência, faz com que ela viva os questionamentos e reflexões mais variados possíveis. A garota tenta entender uma dúvida que passa por sua cabeça do por que sua tia-avó (Rosa Campos Velho), uma mulher que nunca namorou e morreu virgem aos 70 anos de idade? Encara os valores da comunidade em que vive no Sul do Brasil, logo percebe que todas as mulheres do seu microcosmo familiar guardam segredos, o que traz à tona algo escondido para ela mesma, como da mãe separada (Joana Vieira) e sua avó (Lisa Becker).

Enquanto a trajetória da protagonista fica cada vez mais repleta de incertezas, uma grande usina eólica começa a ser construída na pequena cidade em que vive. A realizadora mostra a curiosidade desta situação, onde a personagem central lida com a realidade da perda e as diversas transformações que cercam a adolescência. Investiga a sexualidade, suas descobertas reveladoras, dividindo as dúvidas angustiantes ao lado de sua melhor amiga, Carolina (Isabela Bressane), que também passa por uma situação de separação dos pais. Oliveira segue o norte de outras realizações brasileiras sobre a temática do afável olhar da juventude e suas complexidades diante das primeiras manifestações da vida com suas variantes múltiplas que formam uma trajetória delicada, como abordado em Antes que o Mundo Acabe (2009), drama familiar com produção e direção da conterrânea porto-alegrense Ana Luiza Azevedo em seu filme de estreia. Há similitude em conteúdo de questionamento da infância em suas vidas futuras com outras belas obras, tais como: Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), de Esmir Filho e o magnífico As Melhores Coisas do Mundo (2010), de Laís Bodanzky.

A Primeira Morte de Joana tem as peculiaridades típicas do interior, onde adolescentes andam de bicicletas, namoram, sonham, e os objetivos de vida estão limitados aos costumes de uma pacata cidadezinha de poucos recursos. Conhecer outros lugares e buscar voos maiores são sonhos que aos poucos são improváveis, mas a liberdade de vivenciar suas relações emocionais afetivas e sexuais que se sente atraída como opção é plausível e pode ser uma realidade palpável e bem próxima como o desfecho irá demonstrar. A insatisfação dolorida é latente nos rostos dos personagens, tanto nos adultos como nos jovens, como do pai ausente, da mãe e da avó em suas incursões amorosas. O longa reflete através da beleza das imagens num clímax de melancolia os prazeres e desprazeres da juventude no mundo rodeado pelos maiores de idade e suas andanças libidinosas. A relação de cordialidade e seu vínculo fortalecido nas amigas em contraste com os colegas de aula mergulham na abordagem do universo juvenil e sua difícil passagem para o mundo adulto repleto de preconceitos e complicações inerentes da transição, embora haja um vazio na dramaticidade dos personagens condensado no roteiro e suas falhas, deixando transparecer uma artificialidade latente, como na previsibilidade do epílogo após as descobertas investigativas da sobrinha-neta.

A promissora diretora acerta na sensível opção para abordar a temática dos jovens, mas se equivoca com as respostas de situações que beiram ao estereótipo de soluções de ordem prática previsíveis. Ainda que careça de amadurecimento, apresenta para reflexão uma ternura dolorida em ritmo lento, busca a atenção nos detalhes do tema sobre o entendimento do luto familiar num alicerce conservador, a sexualidade e suas descobertas, e o futuro logo ali como adultos. Há alguns méritos na condução do espectador para acompanhar um vínculo de importância aos personagens nativos envolvidos pelos fatos que se sucedem numa atmosfera criada em torno daquele bucólico lugarejo com seus costumes cultuados no dia a dia. Embora haja filigranas desnecessárias e uma emoção superficial cansativa nada inovadora, o espectador fica à vontade para tirar suas próprias conclusões neste longa com características minimalista de aparente simplicidade. A Primeira Morte de Joana tem uma construção de personagens com suas características infantis de um emocional forte na amizade, mas que paradoxalmente avança para uma solução pragmática e pouco criativa nesta realização de escasso esmero.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Eo

Outro Olhar

O drama mesclado com fábula adulta Eo, do veterano diretor polonês Jerzy Skolimowski, de 85 anos, assim como Andrzej Wajda, Krzysztof Kieslowski e Roman Polanski, do qual colaborou na realização de A Faca na Água (1962), foi um dos alunos da icônica Escola de Cinema Lodz, berço da formação artística destes renomados cineastas. Fez carreira no exterior devido às dificuldades de uma crítica mais corrosiva em seu país ao buscar mais espaços para criar. Autor de O Ato Final (1970), Classe Operária (1982), Quatro Noites com Ana (2008), Matança Necessária (2010) e 11 Minutos (215), entre tantas realizações oriundas de suas inquietações sociais. Agora, após um longo período de ostracismo, retorna com este sucesso estrondoso de público e crítica, com grande repercussão mundial. Representou a Polônia e obteve o Prêmio do Júri no Festival de Cannes no ano passado e ficou entre os cinco selecionados para a disputa do Oscar de Melhor Filme Internacional, no qual perdeu para o longa alemão Nada de Novo no Front (2022), de Edward Berger. Não só se inspirou, como também presta um elogiável tributo ao clássico filme francês A Grande Testemunha (1966), do cultuado Robert Bresson, que também contava a saga do jumento Balthazar como personagem central na busca pela liberdade e o enfrentamento das atrocidades e as misérias espalhadas pelo mundo, através das aventuras do animal levado de um lado para outro como um fantoche.

A obra de Skolimowski é uma viagem sensorial que aponta com exatidão a crueldade dos homens ditos civilizados, indo direto ao ponto o eclético roteiro do realizador em parceria com Ewa Piaskowska. Soube explorar muito bem a geografia do cenário, com locações na Itália do meio para o desfecho, retrata os fantasmas e espíritos disseminados pelas florestas com seus morcegos no túnel, e os animais se entendendo no cativeiro. Além dos rios, córregos, encostas, montanhas, tudo em abundância para o deleite do cineasta, que tem sua marca na qualidade estética e estrutural, na abordagem do personagem perdido na selva ao fugir dos horrores da humanidade, como na cena do animal selvagem agonizando após um tiro de um caçador. A truculência da agressividade humana advinda de uma partida de futebol que irá mostrar toda a brutalidade do homem fanatizado em contraste com a harmonia da natureza. A trama acompanha o mundo moderno visto pelos olhos do melancólico burrinho cinza Eo, que empresta seu nome ao título da obra, com sua simpatia inata, que mora em um circo, mas aproveita uma blitz policial de resgate dos animais por força de lei, para se mandar para sempre de forma voluntária. Suspira os novos ventos do país vizinho, ainda que nutra um grande amor lúdico pela domadora circense adolescente e sua inocência serena que mostrará força e perseverança ao enfrentar com resistência o agressor dona da carroça.

O realizador aponta e mergulha no realismo sem concessões, às vezes nauseantes, e em outros com uma certa licença poética para acarinhar o jegue ao longo da imensa jornada. O mundo lhe reserva conhecer pessoas dignas de bondade e humanismo contrapondo com outras de índole nefasta, vazias, sórdidas, egoístas num cenário transformado em algozes e vítimas num mundo em franco desequilíbrio. Os momentos de paz e alegria são poucos do protagonista, pois se sobressai o terror do medo em conluio com a dor da dilaceração pela falta de sorte em alguns momentos. Nunca desiste, mesmo que tudo se transforme em desastres frequentes que não irão abalar sua busca incessante da felicidade pela inegociável liberdade. Com seu estridente grunhido em tom choroso, e o anti-expressivo olhar distante, e em outros com a aproximação da câmera soa como um fio condutor do enredo para mostrar as imperfeições de um universo com suas deformações crônicas manchadas por uma violência voraz como se fosse um cataclismo verossímil eloquente da ambição e da arrogância, como na cena da mãe (Isabelle Huppert) e do filho, personagens infelizes e perdidos num vazio existencial chocante com uma sugestão de incesto na mansão com ares de um templo religioso de uma elite decadente. O espectador com o viés da empatia sofre junto com os maus tratos diante das circunstâncias de passividade do anti-herói, mas passa para o ativismo e torce com ardor quando há uma virada de roteiro mais favorável quando a resposta vem de uma patada certeira do personagem humilhado. Embora a intensa fábula traga para a reflexão as intempéries exercidas com um prazer cruel da virulência que beira ao sadismo do ser combalido, por vezes quase que agonizante, em detrimento da harmonia impactada pela contundente perda da lucidez dolorida.

O filme apresenta um cenário falsamente seguro ao burrinho, diante das frustrações na tendência do universo e sua incomunicabilidade com as consequências da violência incrustada no mundo civilizatório e as frustrações recorrentes pelas experiências humanas bizarras que vão ao encontro da jornada solitária do protagonista pela natureza ao desembocar na proposta ecológica sem rodeios através de imagens poderosas e reveladoras em puro estado de sinergia, se permitindo observar um radiante pôr do sol enquanto cavalga sôfrego em seu inabalável caminho de buscas pelas forças misteriosas da beleza de uma natureza perigosa com seus poderes transcendentais. Uma realização com tintas de uma mise em scène maximalista pelo olhar em detrimento dos diálogos, moldado pelo silêncio, nesta trajetória hipersensível até chegar no catártico último ato no corte abrupto com final em aberto. Skolimowski perturba mais com seu jegue incomodativo diante das tiranias universais; já Bresson é um pessimista à nossa espécie e sua preocupação era apenas o homem.

Eo mostra as diversidades dos sentidos entre homens truculentos e animais vitimizados pela rebeldia nos amplos quadros imaginários e suas significações nas imagens das telas do universo violento exercido pelos humanos. São aspectos que atraem os sentimentos como fragmentos humanos indignos, através de cenas mostradas em planos e contraplanos para captar o silêncio, a vida do cotidiano, a poesia e a dor do animal num lugar cercado por frondosas árvores em imagens de uma natureza enigmática e seus segredos que despertam curiosidades para meditação, com configurações que levam à imersão transcendental do espectador, quase sobrenatural com elementos essenciais de uma narrativa singular. Skolimowski pensa no cinema como mecanismo de magia do mundo, o que é admirável nesta experiência sensorial numa viagem ao subconsciente. Há um brilho poético acompanhado pela excelente trilha sonora, especialmente o fascinante quarto concerto para piano de Beethoven que emociona. O cineasta demonstra sensibilidade para um mergulho sobre as questões dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham a violência e os maus tratos aos animais com a força das comoventes fantasias neste fabuloso drama mesclado com esta bela fábula moderna, que certamente estará entre os 10 melhores filmes do ano.

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Sem Ursos

 

Liberdade Cerceada

O cinema iraniano está de volta com todo seu vigor, simplicidade, discussões sobre a censura e suas restrições em mais uma notável reflexão da política neste perturbador docudrama Sem Ursos. Interpretado e dirigido magnificamente por Jafar Panahi, que através de um notebook com uma precária internet, consegue driblar a ordem superior impeditiva de circular no território, afrontando líderes políticos e religiosos. Ganhou o Prêmio Especial do Júri no Festival de Veneza de 2022, onde não pôde comparecer para a premiação. Ex-assistente e discípulo do mestre conterrâneo Abbas Kiarostami, dos magistrais Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), a obra-prima Gosto de Cereja (1997), e O Vento nos Levará (1999), o diretor só deixou o país em abril deste ano, indo residir na França com a filha que lá já morava, depois de pagar uma fiança para adquirir sua liberdade, após cumprir uma pena autoritária de 14 anos de prisão domiciliar e a proibição de realizar filmes dentro do seu país.

O cineasta tem na sua filmografia os ótimos O Balão Branco (1995), O Espelho (1997), O Círculo (2000), ganhador do Leão de Ouro e o Prêmio Fipresci no Festival de Veneza daquele ano, no qual já demonstrava segurança de elenco, enredo forte e uma grande dose de dramaticidade, sem se deixar amedrontar pela tirania. Depois vieram outras admiráveis obras como Táxi Teerã (2015), vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2015, em que pouco demonstra ser o realizador um prisioneiro, mas ele filma clandestinamente, limitado no espaço de um carro-cárcere com janelas e espelhos retrovisores para acompanhar os personagens nas suas intimidades devassadas. Como se fosse um jogo de espelhos das personagens comuns com as atrizes convidadas, segue esta linha de forma marcante, também apontado por alguns críticos como inspiração em Kiarostami no filme Dez (2002). Três Faces (2018), seu penúltimo filme, aborda uma atriz famosa que recebe um vídeo intrigante de uma garota implorando por ajuda para escapar de sua família conservadora. Ela então pede a seu amigo, Jafar Panahi, para descobrir se é real ou uma manipulação. Seguem o caminho para a aldeia da menina nas remotas montanhas do norte, onde as tradições ancestrais continuam a ditar a vida local.

Na trama de Sem Ursos, o espectador é contemplado com duas histórias de amor distintas contadas paralelamente, com as frustrações dos parceiros causadas por obstáculos ocultos e, por vezes, até mesmo inevitáveis. A narrativa alude a força das crenças supersticiosas e os mecanismos de poder em um relacionamento conturbado pela agonia da fuga do martírio de um sistema conservador. Panahi dirige um casal que quer imigrar ilegalmente para a Europa, num criativo exercício de matalinguagem, que irá retratar ele mesmo e sua saga perseverante e audaciosa luta devidamente documentada. O realizador entra em rota de colisão circunstancialmente com os moradores ao fotografar um casal apaixonado, na qual a jovem está prometida para um casamento num vilarejo de uma comunidade paupérrima, que irá trazer transtornos e várias situações de ameaças e censuras oriundas de um governo teocrático num regime ditatorial. Toma contornos inverossímeis como uma torrente de situações absurdas do cotidiano kafkiano que recai sobre o protagonista com repletas adversidades pela intolerância que impregnam suas relações e sua continuidade no lugarejo.

Habilmente o cineasta mostra essencialmente as coisas de um cotidiano simples e a relação de seu xerife no regime instalado pelo governo e suas ligações com o tráfico na fronteira com a Turquia, que exerce uma pressão sem limites para que a foto seja devolvida, com passagens coercitivas do protagonista pelo templo religioso, sendo submetido a juramentos onde não pode mentir e ainda tem que provar sua inocência. Uma mescla de corrupção subreptícia de vários setores do sistema vigente predominado pelo fanatismo fundamentalista. Filma com alguma naturalidade esta mistura de documentário simulado com drama em que não falta uma relativa dose de humor através de uma boa montagem. Instala suas câmeras fixas e começa a dirigir suas duas realizações fundidas em uma só com o objetivo de mostrar os costumes locais presentes nos personagens que vão surgindo de um universo rico de situações caóticas e improváveis. Impressiona a falta de liberdade de expressão, na qual não pode haver críticas ao regime que cerceia temas relacionados à atualidade, bem inserido no prólogo com a palavra clássica de “corta!’. O personagem central do segundo filme está perfeito no papel, uma espécie de alter ego de Panahi para buscar sua fuga a qualquer preço, até mesmo com um passaporte falso.

Depois de realizar dois filmes em forma de manifesto como libelo pela liberdade, soando como um brado dolorido pela prisão domiciliar decorrente da expressa ordem de não poder filmar: Isto Não é Um Filme (2011) e Cortinas Fechadas (2013), o diretor que obteve o benefício da fiança para abandonar o Irã ao ser condenado por apoiar a oposição na eleição presidencial de 2009, mostra ousadia e coragem para retratar a própria situação caótica que se encontrava. No prólogo há o indício de um documentário, com a câmera dentro do modesto quarto, enquanto isto alguns personagens do povo circulam em volta até chegar ao casamento prometido, falam de suas aflições, desejos, insatisfações, recheadas de medo pelas complexidades inerentes, com um ritmo calmo, diante de um roteiro enxuto criado para se adaptar às restrições impostas presentes que tentam impedir esta sensível trajetória humana de movimento pela busca da liberdade.

Eis um grito contra a opressão pela beleza do cinema que está inserida nestes detalhes da simplicidade realizada com inteligência, o que torna um drama com o estilo documental, passa pela ação, transita pelo suspense, na qual o epílogo registra com um poder de cena magistral sobre o direito inexistente do cidadão em se expressar numa nação de uma cultura religiosa xiita extremada, de um sistema ultrapassado e sem um mínimo de liberdade, mas que mesmo assim não consegue inibir a criatividade que não tem limites para o cinema inovador e empolgante de um marginalizado cineasta de oposição. Um filme que aflora a dignidade pelo seu poder metafórico de abordar nas entrelinhas as questões proibidas no país, usando sutilezas para mostrar as raízes da arrogância estatal autoritária contrapondo com a força singular do personagem-ator- diretor em seu conteúdo de oprimido contestador para um relato eloquente pelo direito de se manifestar. Panahi faz mais uma desassombrada declaração de insubordinação contra o despotismo, em uma de suas melhores obras, se não for seu melhor filme.

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Close

 

Amizade em Xeque

Indicado pela Bélgica para o Oscar deste ano na categoria de melhor filme internacional, Close é um sensível e delicado drama sobre amizade e amor, em cartaz nas salas de cinema e disponível no MUBI. Dirigido por Lukas Dhont, em seu segundo longa-metragem, dividiu o roteiro com Angelo Tijssens, para criarem uma trama enxuta e bem alicerçada. A abordagem do preconceito numa idade em que há tantas mudanças da pré-adolescência para a adolescência está colocada de maneira direta, embora haja sutilezas na narrativa. São as construções impostas pela sociedade que nos rege e com elementos fortes de bullying, principalmente entre os grupos de colegas do colégio onde estudam os dois personagens em foco, com a prática sistemática de atos de violência psicológica, intimidação e humilhação, até chegar no desenlace de uma tragédia, embora aparentemente improvável, diante das consequências e do rumo pela reviravolta da história, acaba por se tornar uma amarga e dura realidade.

Para dar consistência na narrativa, o cenário é ambientado numa zona rural, com tomadas de cenas da colheita de flores e toda sua beleza na fazenda do pai de um dos personagens. O dia a dia tem uma delicadeza naturalista marcante registrada com notável sensibilidade poética. O enredo retrata dois meninos de 13 anos, Leo (Eden Dambrine - impecável atuação) e Remi (Gustav De Waele) sendo dois amigos inseparáveis, que passam 24h juntos. Eles brincam, andam de bicicletas, dividem tudo que gostam, dormem um na casa do outro. Mas logo as insinuações e provocações dos colegas colocam em xeque o vínculo da amizade com fortes elementos para o estremecimento e o afastamento dos dois. Evitam o contato físico na escola e também quando estão sozinhos, até chegar numa luta no quarto que vai longe demais. A linha tênue que divide aquela relação pueril com uma possível descoberta do amor irá influenciar uma ruptura violenta. O medo das chacotas pelas frases bobas trará a preocupação com o pensamento dos outros sobre a dupla, com tomadas de decisões contraditórias diante da imaturidade dos jovens amigos. O que parecia normal na infância, passa a ser visto com o olhar da malícia que acaba interferindo na vida deles.

Dhont segue um caminho semelhante de Céline Sciamma na narrativa nas pulsões incompreendidas da pré-adolescência e suas tipicidades oriundas da idade, que se consagrou com o icônico drama Tomboy (2011), o marcante filme que orientou os destinos de uma nova geração de diretores, sobre questões do preconceito social e a inexperiência da juventude para tratar com profundidade a precoce descoberta da homossexualidade. Os cineastas belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, mais conhecidos como os irmãos Dardenne, dos longas Rosetta (1999), O Filho (2002), A Criança (2005) e O Silêncio de Lorna (2008) foram os precursores de filmes com mais delicadeza e menos rudeza da juventude. Sem nunca perderem o foco e o cerne da questão, utilizam o recurso da câmera na mão para registrar a rotina com seus atritos peculiares através de planos longos, por vezes optam para os close-ups para capturar a intimidade e os desatinos do mundo ao redor.

O realizador enfatiza o sentimento de culpa e rejeição até chegar ao doloroso sofrimento como uma força motriz para as transformações pessoais e interromper o vínculo amigável, no qual Leo se aproxima de um outro garoto para jogar hóquei no gelo. A reação pelos próximos anos é a busca de uma aproximação com a mãe de Remi, Sophie (Émilie Dequenne), pelo amigo que soará como um indício culposo como sentimento na tentativa desesperada do perdão tão almejado e reconfortante. Eis uma delicada obra que retrata a homossexualidade na criança sem levantar bandeiras ou até mesmo envolver a questão sexual, algo raríssimo entre cineastas. De forma sutil, pode ser apontado como os indícios iniciais de um conflito interno entre quem é e acha que deveria ser. Ganha proporções cada vez maiores na trajetória do drama com a triste notícia, mas há um reordenamento de questões deixadas para trás para absorver a realidade inocente do mundo com a extinção prematura da doce inocência infantil. Deve ser ressaltada posição sem mágoas ou ressentimentos da mãe angustiada, pelo discernimento, altivez, até a descoberta das razões e origens que fazem a verdade vir à tona sobre seu filho e a relação conturbada entre aqueles dois seres que estavam numa busca incessante da felicidade.

Close é um drama da adolescência sobre a culpa até chegar na compreensão e no aguardado perdão pós-penitência do amor secreto e suas idiossincrasias do sentimento marcado pela rejeição e a compaixão. São inevitáveis os rumos diferentes tomados pelos personagens envolvidos, mas na verdade nunca se afastam totalmente, pois o vínculo da união da amizade resiste pela importante intervenção da figura maternal em cena. Há uma realidade a ser encarada para a construção dos elos perdidos de pequenas desavenças que tomam proporções absolutas para inibir o que seria um doloroso relato sobre o perecimento precoce, com sua sombria aparência, suas reminiscências que não são entendidas como as indicativas luzes de reconstrução sugeridas no epílogo. A opção por planos-sequência reafirma uma realidade perturbadora com planos fechados e com alto grau de maturidade para uma narrativa equilibrada, num tom amargo e seco. Longe de filigranas e emoção superficial, deixa o espectador à vontade para refletir, tirando conclusões esperançosas neste longa minimalista admirável de aparente simplicidade e leveza. Mas, nada fácil se for observado o tema e a dor do relacionamento entre dois meninos ingênuos entrincheirados pelo bullying. Uma elegante construção de personagens com suas características infantis de um emocional rompido pela desintegração da amizade, mas que paradoxalmente deixa uma esperança plantada e cultivada.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Holy Spider

 

Fanatismo Religioso

O diretor iraniano-dinamarquês Ali Abbasi tem uma carreira sinalizada por histórias incríveis sobre o absurdo e o grotesco das experiências humanas que embasam sua filmografia. O horror corporal fica evidenciado nas suas obras de personagens escolhidos criteriosamente como pano de fundo sobre separação de classes e gêneros pontuados em seus dois primeiros longas Shelley (2016) e Border (2018). O realizador segue a cartilha dos seus conterrâneos ao construir sob forte influência do neorrealismo italiano, movimento cultural surgido na Itália ao final da Segunda Guerra Mundial, cujas maiores expressões ocorreram no cinema. Seus maiores expoentes foram Roberto Rosselini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti, que iria influenciar a cinematografia produzida no Irã, como Abbas Kiarostami em Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), a obra-prima Gosto de Cereja (1997), e O Vento nos Levará (1999); Mohsen Makhmalbaf com o admirável A Caminho de Kandahar (2001), em que os detalhes são fundamentais de um realismo puro que reflete uma sociedade arcaica de pensamentos e comportamentos retrógrados; bem como Asghar Farhadi com À Procura de Elly (2009), A Separação (2011), O Apartamento (2016) e O Passado (2013).

Indicado para representar a Dinamarca no Oscar deste ano, Holy Spider, título que pode ser traduzido literalmente como “Aranha Sagrada”, é o terceiro longa-metragem de Abbasi, disponível para assinantes do MUBI, o quarto ainda não chegou ao Brasil. Um misto de drama com thriller policial que irá abordar a aterrorizante história baseada em fatos reais ocorridos entre os anos de 2000 e 2001, protagonizado por um dos serial killers mais temidos naquele país. Retrata com extrema sensibilidade uma sombria e incômoda tragédia humana, em uma típica apresentação de horrores, que só agora adquire notoriedade pelas lentes da câmera deste cineasta ao encarar de frente uma realidade devastadora e macabra numa cultura machista que eliminou 16 mulheres para o “bem” da sociedade conservadora. É a defesa da moral e dos bons costumes da cidade sagrada de Mashhad, como meio característico de extravasar os próprios preconceitos. Não é uma decisão isolada, porém há incentivo e proteção de uma sub-reptícia rede sinistra colossal.

Saeed Hanaei (Mehdi Bajestani) é conhecido como "spider killer", um veterano de guerra que se torna um fanático religioso andando de motocicleta durante as madrugadas, rapta prostitutas encontradas na rua para estrangular até a morte, usando seus próprios véus. Durante o dia, ele é um homem que leva uma vida comum e trabalha como operário. Casado com a dócil Fatima (Forouzan Jamshidnejad), tem um casal de filhos, sendo que o garoto o vê como um herói em tudo, sendo que o epílogo irá revelar seu futuro. Um clássico patriarca de uma família exemplar, considerado bom pai e um marido dedicado, embora sempre tivesse uma desculpa para não visitar os pais da esposa à noite, quando revelava a explosão da saga monstruosa de um matador frio. Acreditava que havia um chamado divino de Allah para cumprir a missão de limpar a sociedade das mulheres aranhas, por serem indignas da convivência com as famílias honradas. Aclamado por parte da sociedade, por isto entendia ser um mártir. Um convicto de sua jornada "espiritual" para realizar uma obstinada limpeza de purificação da cidade, o que o tornava mais perigoso e cruel, por ter certeza de que estava fazendo o certo.

No meio desta parafernália de distorções, surge a jornalista Rahimi (Zar Amir Ebrahimi, de ótima atuação, que lhe rendeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes de 2022) que pretende escrever um artigo sobre os crimes locais. Ela vem da capital, Teerã, e se envolve de corpo e alma nas investigações, encontra diversos empecilhos. Ampara-se num colega daquela cidade, o descrente repórter policial Harifi (Arash Ashtia), que tenta ajudá-la de maneira tímida. Após a matança das mulheres pela dita "missão divina", os jornalistas irão encontrar cada vez mais dificuldades nas buscas diante da desídia dos policiais para encontrar o assassino, embora haja claramente um modus operandi na abordagem das vítimas e sua relação doentia com o sexo oposto, onde os crimes são motivados pela crença religiosa através de um vingança que vai sendo detalhada. Tudo é mais complexo do que a jornalista imaginava, porque necessita vencer obstáculos inimagináveis. Rahimi tem enormes atritos no relacionamento com as autoridades ditas defensoras da lei. Trava uma luta implacável contra o sistema machista que comove e, ao mesmo tempo, é revoltante pela parcialidade aos fatos de um sistema repleto de erros voluntários e parcimoniosos para não deslindar as atrocidades abjetas, nauseantes com ruídos de desesperança por falta de prioridades.

Uma sociedade que desvaloriza filosoficamente as mulheres, mas acolhe um psicopata em delírios permanentes com vocação paranoica instigada pelas imaginárias alucinações advindas do além. Uma narrativa com sequências bem construídas para mexer com o espectador que se sente enojado ao ser atingido em cheio pelas elucubrações da violência direta e seca dos fatos, sem concessões ou sugestões. Nada poderia parar a sanha assassina que não se importa de sacrificar prostitutas por uma entrega de vida tresloucada no cumprimento de seu objetivos pseudo-religiosos. Entende que há mandamentos do além para dizimar a corrupção da imoralidade, advindas daquelas mulheres que sujam as ruas. Uma autêntica violência misógina no abuso do corpo feminino. A realização apresenta a identidade do assassino desde o prólogo da trama. Há muita tensão e um clímax perturbador no instigante roteiro do diretor em parceria com Afshin Kamran Bahrami ao apontar a distorção dos preceitos religiosos, o sexismo explícito, a desigualdade social escancarada com o beneplácito das autoridades policiais e da negligência ou conluio do governo teocrático.

A tortura psicológica por ter que conviver com a segregação de gênero devido à condição de não ter nascido homem é um dos temas permanentes e atuais, especialmente no Irã. Há similaridade nesta temática com O Perdão, drama iraniano, de Maryam Moghadam; Não Há Mal Algum (2021), vencedor do Urso de Ouro e do Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Berlim, de Mohammad Rasoulof; Um Herói (2021), de Asghar Farhadi, laureado em Cannes com o Prêmio do Júri; também o drama social egípcio O Truque da Galinha (2021), de Omar El Zohairy. Holy Spider é um filme fabuloso que coloca a dignidade humana em confronto com o fanatismo sobre questões éticas para apontar a prepotência estatal com seus valores obsoletos neste contexto silencioso dos dissabores e suas complexidades. Há elementos indispensáveis que contribuem para as angústias de um imenso sofrimento que restam como sombras permanentes. O judiciário é uma farsa só, com apadrinhamentos e amizades inescrupulosas no enredo. Fica uma terrível sensação de insegurança pela falta de equidade que traz as diversas desconfianças transmitidas. As particularidades da engrenagem judicial do país chamam atenção pela burocracia e parciais métodos duvidosos. Uma cumplicidade com o silêncio de outros personagens, onde as desculpas são facilitadas para esconder a barbárie da triste realidade mantida por uma sociedade dominada pelo fanatismo do pensamento religioso e amordaçada pela burocracia oficial.