A Reverência
O cultuado cineasta francês Christophe Honoré tem em sua filmografia obras de pouca relevância, tais como: Bem Amadas (2011), Metamorfoses (2014), Os Desastres de Sofia (2016), Conquistar, Amar e Viver Intensamente (2017) e Guermantes (2021). Porém, tem sua fase mais exitosa como Em Paris (2006), sobre o relacionamento de dois irmãos que moravam com o pai, que acabara de se separar da mãe, convivendo com a tragédia da irmã e da depressão profunda com tendências suicidas do irmão mais velho que rompera com a noiva. No excelente A Bela Junie (2008), uma garota de 16 anos apresenta problemas de relacionamento na escola, logo após a morte da mãe e o suicídio aflora outra vez como temática contundente. Talvez o melhor de todos seja Não, Minha Filha, Você Não Irá Dançar (2009) ao retratar uma mãe de dois filhos, recém-separada, larga o emprego num hospital e vai morar com os pais e os irmãos na Bretanha, interior da França, onde passou sua infância. Os prazeres da vida e os seus incômodos restritos nas suas peripécias e andanças multifacetadas, tendo a figura materna da falsa moralista, embora com um passado nada recomendável para tanta tirania e proselitismo. Recentemente emplacou com Inverno em Paris (2022), um drama familiar surpreendente em uma viagem carregada de luto que acaba se tornando uma oportunidade de autodescoberta. Acertou em cheio com um elenco coeso, intenso e em sintonia harmoniosa numa trama sensível sobre um longo inverno frio, sombrio e doloroso.
Marcello Mio é o seu mais novo filme com méritos bem peculiares nesta comédia com viés existencial, ambientada em Paris e Roma, que participou da seleção oficial do Festival de Cannes de 2024. Debruça-se com sensibilidade nas lacunas e os conflitos da temática que faz parte essencial de seu estilo humanista com os elementos decorrentes do núcleo familiar. O enredo é conduzido por Chiara (Chiara Mastroianni), filha dos artistas icônicos Marcello Mastroianni (1924-1996) e Catherine Deneuve interpretando ela mesma. A protagonista é uma promissora atriz que vive um verão de intensa crise existencial e sua carreira. Mesmo que insatisfeita com os rumos da própria existência, começa a se questionar sobre sua identidade, resolve viver a vida de seu lendário genitor no cinema- completaria 100 anos em 2024-, ao invés de enfrentar a dura realidade. Imita o pai em tudo, como vestir-se, procura falar e respira como ele, de maneira decisiva. O longa-metragem enfatiza a obsessão quase que doentia, que acaba convencendo todas as pessoas em seu redor a entrar nessa estranha metamorfose ao reencarnar a identidade paterna. A comédia vira um perigoso jogo de espelhos entre passado, presente e futuro na busca pela descoberta de quem ela é na verdade. Consequência do fruto de um legado deixado, e da fama na vida pessoal, quando tenta fazer o papel da filha que vive à sombra do ator morto. Cercada por todos os lados pela presença constante daquela figura mitológica, faz de tudo para trazê-lo de volta à vida e à convivência com seus melhores amigos.
O realizador, além da reverência proposta, mergulha na psicanálise, na nostalgia, no amor familiar e dos amigos, às vezes de forma conturbada, como da diretora em questão Nicole Garcia que procura uma atriz, mas Chiara se rebela e refuta seus desejos. O parceiro no filme fictício seria Fabrice Lucchini, que acaba se convencendo e se rende à nova identidade proposta, em homenagem ao amigo que sempre desejou ter: Mastroianni. Uma jornada de desafios para se adaptar a uma nova realidade. Decide encarar as dúvidas que lhe tem atormentado, como a semelhança física. Busca recuperar seu sentido existencial de vida para encontrar um novo caminho. Ainda preocupada com a mãe, que custa a entender toda aquela parafernália de metamorfose, talvez não tenha absorvido ou entendido o significado da perda do pai para a filha. Um processo longo para curar as mazelas do tempo e da imensa saudade para um relacionamento familiar fragilizado pela carência de amor, diante da solidão recorrente, pela ausência paterna e da distância física e emocional da mãe. Tenta encontrar um subterfúgio para as mudanças sobre o rumo de sua vida diante de situações novas da representação masculina como elementos que darão passagem à vida como a liberdade.
O microcosmo familiar é debatido e questionado, mesmo que não haja profundidade. A falta de personalidade própria é reveladora ao demonstrar os seus propósitos de relações profissionais como uma maturidade atingida pela mescla do equilíbrio narrativo na abordagem direta, sem grandes metáforas. O sofrimento e a angústia da perda de si mesma associados como fator de desagregação na espera para resgatar seus suplícios e aflições de semelhanças estão ancorados numa realidade hipotética. Ao encarar a construção de elos perdidos que tomam proporções absolutas para inibir o que seria um relato como válvula de escape através de uma sublime aparência física, que são entendidas como indicativas luzes de reconstrução sugeridas no epílogo. Por toda a sua complexidade e seu dinamismo de abordagem, Honoré mostra estar maduro e com boa criatividade nesta comédia, embora seu potencial maior seja o drama, com temas atuais, acarretando em análises psicológicas dignas para um mundo perverso em suas cobranças. Assistir seus filmes dá prazer e a mesmice passa longe, desabrocha a finesse e suavidade, mesmo que ocorra pela forma de mexer com o espectador mais desatento ou aquele que busca somente o entretenimento.
Eis um ideia da ressurreição de um mito, que tenta mostrar com boa dose de criação, na qual Chiara convence ser uma cópia feminina fiel do velho pai, embora não tenha sobrado praticamente nada da mãe. Deneuve se esforça para tentar convencer a filha de que ela tem seu talento inato e que há um lugar no cinema para ela brilhar, como já o fizera em Não, Minha Filha, Você Não Irá Dançar. Há boas passagens nas cenas da trama, como o surgimento de Melvil Poupaud, que teme pela sanidade mental da personagem central, bem como do programa televisivo em que Stefania Sandrelli a escolhe como uma sósia perfeita do ator reverenciado. Marcello Mio é uma admirável realização com leveza para começar o ano de 2025, nesta homenagem recheada de nostalgia de um tempo em que o cinema europeu foi marcante. Há uma atmosfera saudosista, como nas imagens da famosa fonte Fontana di Trevi, monumento que foi o cenário da antológica cena do filme A Doce Vida (1960), de Federico Fellini, protagonizada por Anita Ekberg ao entrar na água e convidar Mastroianni a fazer o mesmo. Longe de filigranas e de emoções superficiais, deixa o espectador livre para refletir neste longa de contrariedades, indefinições e busca da identidade como resgate da vida nesta construção de personagens conflitados com suas características inerentes.
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