sexta-feira, 28 de julho de 2023

O Crime é Meu

 

Verdades e Mentiras

François Ozon é um dos mais célebres e prolíficos cineastas franceses de sua geração, por ser nome constante em festivais como Cannes, Berlim e Veneza. Assim como Woody Allen, alcança a marca de quase uma produção por ano. Sua filmografia, entre curtas e longas, é formada por 46 títulos e está recheada de realizações com temáticas diversas, tais como: O Refúgio (2009); Potiche-Esposa Troféu (2010); Dentro de Casa (2012); Jovem e Bela (2013); o premiado Frantz (2016), drama histórico que recebeu onze indicações ao Prêmio César, abocanhando a láurea de melhor fotografia, além da premiação de melhor jovem atriz no Festival de Veneza de 2016 para a linda Paula Beer; o ótimo O Amante Duplo (2017); o polêmico Graças a Deus (2019), baseado em fatos reais ocorridos em Lyon, na França, no qual retratou de forma imparcial, nua e crua, a pedofilia velada na Igreja Católica, com denúncia de requintes psicológicos nefastos na sua mais pura essência; no controvertido Está Tudo Bem (2021), constrói um painel doloroso para contar uma amarga história de um industrial idoso acometido de um AVC irreversível que o deixa semiparalisado, numa temática polêmica por retratar o suicídio assistido; fez releituras para o cinema de referência com Peter von Kant (2022), assim como já o fizera com Frantz.

A última obra do realizador producente é O Crime é Meu, uma comédia escrachada, fora do convencional, que origina situações inesperadas, onde o farsesco é um elemento indispensável como linguagem para a criação desta apreciável radiografia amarga sobre as hipocrisias de uma sociedade pequeno-burguesa. O próprio diretor escreveu o roteiro livremente baseado na peça teatral estreada em 1934 Mon Crime, de Georges Berr e Louis Verneuil, terceira adaptação para o cinema. Os figurinos e a cenografia estão bem adequados e exemplarmente construídos com o rigorismo formal para uma charmosa Paris dos anos de 1930. Tudo lembra um grande teatro burlesco, com críticas incisivas ao sistema judiciário, transformado num julgamento encenado com os devidos artificialismos da época. Os desmandos de uma polícia atrapalhada e com o viés de se livrar logo da situação apresentada de um crime para uma solução imediata. Porém, tudo começa a desandar quando a autêntica história vem à tona, no surgimento em cena da suposta legítima assassina, não para preservar a integridade ética dos fatos verdadeiros, mas por nutrir uma inveja intensificada da atenção recebida pela jovem acusada que assumiu a autoria criminal, sendo absolvida por legítima defesa, acaba celebrada como heroína na mídia e obtém uma consagração artística de um sucesso estrondoso.

A trama gira sobre Madeleine (Nadia Tereszkiewicz), uma atriz jovem, pobre e sem talento, acusada de assassinar um famoso produtor de teatro. Conta com a ajuda da melhor amiga, Pauline (Rebecca Marder), uma advogada desempregada, que a defende com alguns métodos pouco éticos. Elas moram juntas e estão endividadas, inclusive pressionadas pela cobrança do locador que não suporta mais as desculpas para justificar cinco meses de aluguel atrasado. As relações humanas então se revelam tanto para o bem quanto para o mal. Quando a verdade é deslindada, o filme ganha uma nova dinâmica no eclético roteiro, com a aparição vivaz de uma diva esquecida do cinema mudo (Isabelle Huppert) que reivindica para si a autoria do delito. Uma cena marcante é quando ela procura o delegado (Fabrice Luchini), dando uma dimensão maior com a troca abrupta dos rumos da investigação. Embora o tempo seja os anos de 1930, o enredo aborda uma época absolutamente moderna e atual em que as mulheres se unem contra o poder corporativo dos homens num verdadeiro choque de gêneros dentro de uma complexa trama criminal bem humorada. Instiga a plateia a entender as diferenças e os conflitados avanços para a mulher empoderada que surge como um vulcão. Buscam seus direitos inalienáveis de ambição justa para ter o domínio da sua própria vida, pelos ventos que sopram para um norte sem retrocesso.

A narrativa traz um curioso desenrolar da história contada com elegância e sem artifícios de compaixões rasteiras. Uma comédia lunática com repletos diálogos beirando o inverossímil, mas apesar dos absurdos lançados, o foco nunca sai da tela e as nuances de construção são dignas de uma realização meritória que acentua o ridículo das situações onde as pessoas que formam a sociedade burlesca estão rigorosamente dentro de um contexto de conveniências e interesses escusos. Às vezes, com característica da Era de Ouro da Indústria de Hollywood; em outras, se nota a inspiração no mestre francês Alain Resnais, como por exemplo, em Ervas Daninhas (2009). Ozon não deixa de trazer os elementos que são caros e reveladores por perturbar através do cinema a investigação da vida íntima, ocasionalmente até acrescenta um tom de fábula adulta para apresentar as dores e as intrínsecas necessidades de personagens inseridos num mundo em transformação, mesmo que o sucesso venha a qualquer preço, como “os fins justificam os meios”, defendido por Maquiavel, no best seller O Príncipe, no qual conquistar e manter o poder justificariam manipular as leis ou usar a força.

O Crime é Meu transforma o julgamento numa espécie de teatro através de uma crítica ácida aos preconceitos, fobias e idiossincrasias inerentes mostrados, como o narcisismo do promotor, o delegado atrapalhado, a pavonice do juiz, o noivo avesso ao trabalho, e a defensora com suas carências e anseios, numa época voltada para o exercício da repressão, onde a mulher era submissa. A exposição visceral retrata a dureza moralista de uma sociedade machista contrária aos interesses do sexo oposto de maneira nefasta. São os elementos propulsores do enredo, num clímax bem engendrado sobre a sufocante batalha das duas personagens centrais reclusas da opinião pública. A farsa transforma uma picante história de um crime como resistência e redenção do feminismo revolucionário, muito bem articulada pela marca de um diretor atento aos problemas sociais, que cria uma digna realização humanista, com tintas satíricas para retratar uma realidade obsoleta. Sem a preocupação em definir verdades e mentiras, mas extrair um painel jocoso e risível de uma coletividade que fabrica figuras traiçoeiras. Ozon segue fiel à ironia fina nesse grandiloquente blefe alimentado por extravagâncias através de uma grande brincadeira. Uma narrativa pela ótica da mulher, para mesclar situações presentes com um futuro que almeja ao tentar driblar as adversidades. Uma reflexão admirável sobre a condição humana feminina e suas perspectivas com uma pujança feroz estimulante de ser livre e se impor diante das hipocrisias de uma sociedade burguesa retrógrada.

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Cinema Victoria Reabre Atividades

 

Cinema Victoria Reabre Atividades

Uma ótima notícia para os cinéfilos: reabriu hoje o charmoso Cinema Victoria de Porto Alegre. Está ali, bem localizado no Centro Histórico, com entrada pela Av. Borges de Medeiros e pela Travessa Engº. Acilino de Carvalho (Rua 24 horas). Reaparece no cenário cinematográfico uma lenda do patrimônio da arte, um dos últimos cinemas de rua que foi empurrado nos últimos tempos para dentro de uma galeria. A trajetória começou com o cinema originalmente se chamando Vera Cruz, tendo sua primeira sessão em 04 de setembro de 1940, com a exibição do longa-metragem A Mulher Faz o Homem (1939), de Frank Capra. No início da década de 1950, fechou pela primeira vez, mas voltou a reabrir em 12 de setembro de 1953, com o nome de Victoria, exibindo A Dupla do Barulho (1953), de Carlos Manga, com Grande Otelo e Oscarito. Fechou novamente em 1998, reabriu em maio de 1999, vindo a fechar outra vez em 2018.

Foi ali que assisti meu primeiro filme na Capital gaúcha, o longa Um Certo Capitão Rodrigo (1971), de Anselmo Duarte, com Francisco Di Franco, Elza Prado e Pepita Rodrigues. Meu tio me levou pela primeira vez naquele suntuoso cinema, com uma entrada principal ao estilo de um teatro, todo atapetado em vermelho para um pisar macio, dois andares de cadeiras de madeiras chiques para se apreciar as películas da época, com uma sala de espera repleta de sofás e poltronas de couro, portarias com funcionários engravatados e nas laterais bilheterias com moças bonitas, elegantes e educadas, de cabelos presos e um sorriso afetuoso nos lábios pintados de um batom luzidio.

Havia uma bomboniere com as insuperáveis balas azedinhas e as imperdíveis gomas açucaradas e barras de chocolate ao melhor estilo da Neugebauer. Pipoca não era recomendável, não ficava de bom tom, lembrava pessoas ruminando. À vezes, os filmes paravam de repente para serem trocados os rolos, era um apetitoso momento para uma troca de beijos discretos e um tocar de mãos no escurinho da sala. Um bom local de referência para esperar a namorada e assistir em Cinemascope naquela imensa telona Tubarão (1975), de Steven Spielberg, O Vento Levou (1939), de Victor Fleming, Os Dez Mandamentos (1956), de Cecil B. DeMille e o badalado O Exorcista (1973), de William Friedkin.

No Cinema Victoria levava meus filhos para assistir comédias, suspense, dramas, aventuras, e quase sempre os infantis da Walt Disney, entre os quais Branca de Neve e os Sete Anões (1937), Cinderela (1950), A Bela Adormecida (1959), além de filmes de piratas, ilhas de tesouros, entre tantas opções. Reminiscências das lembranças à parte, fica o regozijo da reabertura de um ciclo que recomeça para o velho e icônico cinema de calçada, ou quase, pois foi redirecionado para dentro de uma galeria, mas bem dividido em duas salas modernas, poltronas confortáveis, sob nova direção. A dor sombria ao fechar pela última vez em 2018, agora dá lugar para a esperança do de um futuro promissor do velho novo Cine Victoria que reabriu hoje com o badalado filme Barbie, de Greta Gerwig, com Margot Robbie, Ryan Gosling e America Ferrera. Que nunca mais feche!

sexta-feira, 14 de julho de 2023

A Primeira Morte de Joana

 

Caminhos da Juventude

Cristiane Oliveira – não confundir com a atriz que celebrizou a personagem Juma na novela Pantanal – ficou conhecida com o drama familiar Mulher do Pai (2015), que venceu os prêmios de Melhor Diretor, Melhor Atriz Coadjuvante (Verónica Perrotta) e de Melhor Fotografia no Festival do Rio 2016. Abordava uma adolescente que precisava cuidar do pai cego, após a morte da avó que os criou como irmãos. Quando o genitor percebe o amadurecimento da filha, surge uma grande intimidade na relação afetiva, mas com a chegada de sua namorada, o ciúme tomará uma proporção enorme na vida deles. O segundo longa-metragem da cineasta gaúcha, A Primeira Morte de Joana, estreou no 51º. International Film Festival of India, em janeiro de 2021 e foi vencedor de 11 prêmios, nos mais de 35 festivais pelos quais passou, inclusive no Festival de Gramado com o Prêmio da Crítica. Foi ambientado no final do verão de 2007 na cidade de Osório, muito conhecida por seu parque eólico com 75 torres geradoras de energia, o imponente Morro da Borússia e dezenas de lagoas, onde foi criada a fictícia cidade de Lagoa dos Ventos, bem como teve locações nas belas paisagens do município de Santo Antônio da Patrulha, ambos no Rio Grande do Sul.

A trama, aparentemente é simples, embora haja uma razoável complexidade e comece a se delinear no seu desenrolar ao retratar as dúvidas e os caminhos que os adolescentes procuram em suas vidas futuras. O roteiro foi assinado pela diretora em parceria com Sílvia Lourenço, no qual focaliza a pré-adolescente de 13 anos, a criativa Joana (Letícia Kacperski), ao trilhar o típico período da transição entre a infância e a adolescência, faz com que ela viva os questionamentos e reflexões mais variados possíveis. A garota tenta entender uma dúvida que passa por sua cabeça do por que sua tia-avó (Rosa Campos Velho), uma mulher que nunca namorou e morreu virgem aos 70 anos de idade? Encara os valores da comunidade em que vive no Sul do Brasil, logo percebe que todas as mulheres do seu microcosmo familiar guardam segredos, o que traz à tona algo escondido para ela mesma, como da mãe separada (Joana Vieira) e sua avó (Lisa Becker).

Enquanto a trajetória da protagonista fica cada vez mais repleta de incertezas, uma grande usina eólica começa a ser construída na pequena cidade em que vive. A realizadora mostra a curiosidade desta situação, onde a personagem central lida com a realidade da perda e as diversas transformações que cercam a adolescência. Investiga a sexualidade, suas descobertas reveladoras, dividindo as dúvidas angustiantes ao lado de sua melhor amiga, Carolina (Isabela Bressane), que também passa por uma situação de separação dos pais. Oliveira segue o norte de outras realizações brasileiras sobre a temática do afável olhar da juventude e suas complexidades diante das primeiras manifestações da vida com suas variantes múltiplas que formam uma trajetória delicada, como abordado em Antes que o Mundo Acabe (2009), drama familiar com produção e direção da conterrânea porto-alegrense Ana Luiza Azevedo em seu filme de estreia. Há similitude em conteúdo de questionamento da infância em suas vidas futuras com outras belas obras, tais como: Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), de Esmir Filho e o magnífico As Melhores Coisas do Mundo (2010), de Laís Bodanzky.

A Primeira Morte de Joana tem as peculiaridades típicas do interior, onde adolescentes andam de bicicletas, namoram, sonham, e os objetivos de vida estão limitados aos costumes de uma pacata cidadezinha de poucos recursos. Conhecer outros lugares e buscar voos maiores são sonhos que aos poucos são improváveis, mas a liberdade de vivenciar suas relações emocionais afetivas e sexuais que se sente atraída como opção é plausível e pode ser uma realidade palpável e bem próxima como o desfecho irá demonstrar. A insatisfação dolorida é latente nos rostos dos personagens, tanto nos adultos como nos jovens, como do pai ausente, da mãe e da avó em suas incursões amorosas. O longa reflete através da beleza das imagens num clímax de melancolia os prazeres e desprazeres da juventude no mundo rodeado pelos maiores de idade e suas andanças libidinosas. A relação de cordialidade e seu vínculo fortalecido nas amigas em contraste com os colegas de aula mergulham na abordagem do universo juvenil e sua difícil passagem para o mundo adulto repleto de preconceitos e complicações inerentes da transição, embora haja um vazio na dramaticidade dos personagens condensado no roteiro e suas falhas, deixando transparecer uma artificialidade latente, como na previsibilidade do epílogo após as descobertas investigativas da sobrinha-neta.

A promissora diretora acerta na sensível opção para abordar a temática dos jovens, mas se equivoca com as respostas de situações que beiram ao estereótipo de soluções de ordem prática previsíveis. Ainda que careça de amadurecimento, apresenta para reflexão uma ternura dolorida em ritmo lento, busca a atenção nos detalhes do tema sobre o entendimento do luto familiar num alicerce conservador, a sexualidade e suas descobertas, e o futuro logo ali como adultos. Há alguns méritos na condução do espectador para acompanhar um vínculo de importância aos personagens nativos envolvidos pelos fatos que se sucedem numa atmosfera criada em torno daquele bucólico lugarejo com seus costumes cultuados no dia a dia. Embora haja filigranas desnecessárias e uma emoção superficial cansativa nada inovadora, o espectador fica à vontade para tirar suas próprias conclusões neste longa com características minimalista de aparente simplicidade. A Primeira Morte de Joana tem uma construção de personagens com suas características infantis de um emocional forte na amizade, mas que paradoxalmente avança para uma solução pragmática e pouco criativa nesta realização de escasso esmero.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Eo

Outro Olhar

O drama mesclado com fábula adulta Eo, do veterano diretor polonês Jerzy Skolimowski, de 85 anos, assim como Andrzej Wajda, Krzysztof Kieslowski e Roman Polanski, do qual colaborou na realização de A Faca na Água (1962), foi um dos alunos da icônica Escola de Cinema Lodz, berço da formação artística destes renomados cineastas. Fez carreira no exterior devido às dificuldades de uma crítica mais corrosiva em seu país ao buscar mais espaços para criar. Autor de O Ato Final (1970), Classe Operária (1982), Quatro Noites com Ana (2008), Matança Necessária (2010) e 11 Minutos (215), entre tantas realizações oriundas de suas inquietações sociais. Agora, após um longo período de ostracismo, retorna com este sucesso estrondoso de público e crítica, com grande repercussão mundial. Representou a Polônia e obteve o Prêmio do Júri no Festival de Cannes no ano passado e ficou entre os cinco selecionados para a disputa do Oscar de Melhor Filme Internacional, no qual perdeu para o longa alemão Nada de Novo no Front (2022), de Edward Berger. Não só se inspirou, como também presta um elogiável tributo ao clássico filme francês A Grande Testemunha (1966), do cultuado Robert Bresson, que também contava a saga do jumento Balthazar como personagem central na busca pela liberdade e o enfrentamento das atrocidades e as misérias espalhadas pelo mundo, através das aventuras do animal levado de um lado para outro como um fantoche.

A obra de Skolimowski é uma viagem sensorial que aponta com exatidão a crueldade dos homens ditos civilizados, indo direto ao ponto o eclético roteiro do realizador em parceria com Ewa Piaskowska. Soube explorar muito bem a geografia do cenário, com locações na Itália do meio para o desfecho, retrata os fantasmas e espíritos disseminados pelas florestas com seus morcegos no túnel, e os animais se entendendo no cativeiro. Além dos rios, córregos, encostas, montanhas, tudo em abundância para o deleite do cineasta, que tem sua marca na qualidade estética e estrutural, na abordagem do personagem perdido na selva ao fugir dos horrores da humanidade, como na cena do animal selvagem agonizando após um tiro de um caçador. A truculência da agressividade humana advinda de uma partida de futebol que irá mostrar toda a brutalidade do homem fanatizado em contraste com a harmonia da natureza. A trama acompanha o mundo moderno visto pelos olhos do melancólico burrinho cinza Eo, que empresta seu nome ao título da obra, com sua simpatia inata, que mora em um circo, mas aproveita uma blitz policial de resgate dos animais por força de lei, para se mandar para sempre de forma voluntária. Suspira os novos ventos do país vizinho, ainda que nutra um grande amor lúdico pela domadora circense adolescente e sua inocência serena que mostrará força e perseverança ao enfrentar com resistência o agressor dona da carroça.

O realizador aponta e mergulha no realismo sem concessões, às vezes nauseantes, e em outros com uma certa licença poética para acarinhar o jegue ao longo da imensa jornada. O mundo lhe reserva conhecer pessoas dignas de bondade e humanismo contrapondo com outras de índole nefasta, vazias, sórdidas, egoístas num cenário transformado em algozes e vítimas num mundo em franco desequilíbrio. Os momentos de paz e alegria são poucos do protagonista, pois se sobressai o terror do medo em conluio com a dor da dilaceração pela falta de sorte em alguns momentos. Nunca desiste, mesmo que tudo se transforme em desastres frequentes que não irão abalar sua busca incessante da felicidade pela inegociável liberdade. Com seu estridente grunhido em tom choroso, e o anti-expressivo olhar distante, e em outros com a aproximação da câmera soa como um fio condutor do enredo para mostrar as imperfeições de um universo com suas deformações crônicas manchadas por uma violência voraz como se fosse um cataclismo verossímil eloquente da ambição e da arrogância, como na cena da mãe (Isabelle Huppert) e do filho, personagens infelizes e perdidos num vazio existencial chocante com uma sugestão de incesto na mansão com ares de um templo religioso de uma elite decadente. O espectador com o viés da empatia sofre junto com os maus tratos diante das circunstâncias de passividade do anti-herói, mas passa para o ativismo e torce com ardor quando há uma virada de roteiro mais favorável quando a resposta vem de uma patada certeira do personagem humilhado. Embora a intensa fábula traga para a reflexão as intempéries exercidas com um prazer cruel da virulência que beira ao sadismo do ser combalido, por vezes quase que agonizante, em detrimento da harmonia impactada pela contundente perda da lucidez dolorida.

O filme apresenta um cenário falsamente seguro ao burrinho, diante das frustrações na tendência do universo e sua incomunicabilidade com as consequências da violência incrustada no mundo civilizatório e as frustrações recorrentes pelas experiências humanas bizarras que vão ao encontro da jornada solitária do protagonista pela natureza ao desembocar na proposta ecológica sem rodeios através de imagens poderosas e reveladoras em puro estado de sinergia, se permitindo observar um radiante pôr do sol enquanto cavalga sôfrego em seu inabalável caminho de buscas pelas forças misteriosas da beleza de uma natureza perigosa com seus poderes transcendentais. Uma realização com tintas de uma mise em scène maximalista pelo olhar em detrimento dos diálogos, moldado pelo silêncio, nesta trajetória hipersensível até chegar no catártico último ato no corte abrupto com final em aberto. Skolimowski perturba mais com seu jegue incomodativo diante das tiranias universais; já Bresson é um pessimista à nossa espécie e sua preocupação era apenas o homem.

Eo mostra as diversidades dos sentidos entre homens truculentos e animais vitimizados pela rebeldia nos amplos quadros imaginários e suas significações nas imagens das telas do universo violento exercido pelos humanos. São aspectos que atraem os sentimentos como fragmentos humanos indignos, através de cenas mostradas em planos e contraplanos para captar o silêncio, a vida do cotidiano, a poesia e a dor do animal num lugar cercado por frondosas árvores em imagens de uma natureza enigmática e seus segredos que despertam curiosidades para meditação, com configurações que levam à imersão transcendental do espectador, quase sobrenatural com elementos essenciais de uma narrativa singular. Skolimowski pensa no cinema como mecanismo de magia do mundo, o que é admirável nesta experiência sensorial numa viagem ao subconsciente. Há um brilho poético acompanhado pela excelente trilha sonora, especialmente o fascinante quarto concerto para piano de Beethoven que emociona. O cineasta demonstra sensibilidade para um mergulho sobre as questões dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham a violência e os maus tratos aos animais com a força das comoventes fantasias neste fabuloso drama mesclado com esta bela fábula moderna, que certamente estará entre os 10 melhores filmes do ano.