Outro Olhar
O drama mesclado com fábula adulta Eo, do veterano diretor polonês Jerzy Skolimowski, de 85 anos, assim como Andrzej Wajda, Krzysztof Kieslowski e Roman Polanski, do qual colaborou na realização de A Faca na Água (1962), foi um dos alunos da icônica Escola de Cinema Lodz, berço da formação artística destes renomados cineastas. Fez carreira no exterior devido às dificuldades de uma crítica mais corrosiva em seu país ao buscar mais espaços para criar. Autor de O Ato Final (1970), Classe Operária (1982), Quatro Noites com Ana (2008), Matança Necessária (2010) e 11 Minutos (215), entre tantas realizações oriundas de suas inquietações sociais. Agora, após um longo período de ostracismo, retorna com este sucesso estrondoso de público e crítica, com grande repercussão mundial. Representou a Polônia e obteve o Prêmio do Júri no Festival de Cannes no ano passado e ficou entre os cinco selecionados para a disputa do Oscar de Melhor Filme Internacional, no qual perdeu para o longa alemão Nada de Novo no Front (2022), de Edward Berger. Não só se inspirou, como também presta um elogiável tributo ao clássico filme francês A Grande Testemunha (1966), do cultuado Robert Bresson, que também contava a saga do jumento Balthazar como personagem central na busca pela liberdade e o enfrentamento das atrocidades e as misérias espalhadas pelo mundo, através das aventuras do animal levado de um lado para outro como um fantoche.
A obra de Skolimowski é uma viagem sensorial que aponta com exatidão a crueldade dos homens ditos civilizados, indo direto ao ponto o eclético roteiro do realizador em parceria com Ewa Piaskowska. Soube explorar muito bem a geografia do cenário, com locações na Itália do meio para o desfecho, retrata os fantasmas e espíritos disseminados pelas florestas com seus morcegos no túnel, e os animais se entendendo no cativeiro. Além dos rios, córregos, encostas, montanhas, tudo em abundância para o deleite do cineasta, que tem sua marca na qualidade estética e estrutural, na abordagem do personagem perdido na selva ao fugir dos horrores da humanidade, como na cena do animal selvagem agonizando após um tiro de um caçador. A truculência da agressividade humana advinda de uma partida de futebol que irá mostrar toda a brutalidade do homem fanatizado em contraste com a harmonia da natureza. A trama acompanha o mundo moderno visto pelos olhos do melancólico burrinho cinza Eo, que empresta seu nome ao título da obra, com sua simpatia inata, que mora em um circo, mas aproveita uma blitz policial de resgate dos animais por força de lei, para se mandar para sempre de forma voluntária. Suspira os novos ventos do país vizinho, ainda que nutra um grande amor lúdico pela domadora circense adolescente e sua inocência serena que mostrará força e perseverança ao enfrentar com resistência o agressor dona da carroça.
O realizador aponta e mergulha no realismo sem concessões, às vezes nauseantes, e em outros com uma certa licença poética para acarinhar o jegue ao longo da imensa jornada. O mundo lhe reserva conhecer pessoas dignas de bondade e humanismo contrapondo com outras de índole nefasta, vazias, sórdidas, egoístas num cenário transformado em algozes e vítimas num mundo em franco desequilíbrio. Os momentos de paz e alegria são poucos do protagonista, pois se sobressai o terror do medo em conluio com a dor da dilaceração pela falta de sorte em alguns momentos. Nunca desiste, mesmo que tudo se transforme em desastres frequentes que não irão abalar sua busca incessante da felicidade pela inegociável liberdade. Com seu estridente grunhido em tom choroso, e o anti-expressivo olhar distante, e em outros com a aproximação da câmera soa como um fio condutor do enredo para mostrar as imperfeições de um universo com suas deformações crônicas manchadas por uma violência voraz como se fosse um cataclismo verossímil eloquente da ambição e da arrogância, como na cena da mãe (Isabelle Huppert) e do filho, personagens infelizes e perdidos num vazio existencial chocante com uma sugestão de incesto na mansão com ares de um templo religioso de uma elite decadente. O espectador com o viés da empatia sofre junto com os maus tratos diante das circunstâncias de passividade do anti-herói, mas passa para o ativismo e torce com ardor quando há uma virada de roteiro mais favorável quando a resposta vem de uma patada certeira do personagem humilhado. Embora a intensa fábula traga para a reflexão as intempéries exercidas com um prazer cruel da virulência que beira ao sadismo do ser combalido, por vezes quase que agonizante, em detrimento da harmonia impactada pela contundente perda da lucidez dolorida.
O filme apresenta um cenário falsamente seguro ao burrinho, diante das frustrações na tendência do universo e sua incomunicabilidade com as consequências da violência incrustada no mundo civilizatório e as frustrações recorrentes pelas experiências humanas bizarras que vão ao encontro da jornada solitária do protagonista pela natureza ao desembocar na proposta ecológica sem rodeios através de imagens poderosas e reveladoras em puro estado de sinergia, se permitindo observar um radiante pôr do sol enquanto cavalga sôfrego em seu inabalável caminho de buscas pelas forças misteriosas da beleza de uma natureza perigosa com seus poderes transcendentais. Uma realização com tintas de uma mise em scène maximalista pelo olhar em detrimento dos diálogos, moldado pelo silêncio, nesta trajetória hipersensível até chegar no catártico último ato no corte abrupto com final em aberto. Skolimowski perturba mais com seu jegue incomodativo diante das tiranias universais; já Bresson é um pessimista à nossa espécie e sua preocupação era apenas o homem.
Eo mostra as diversidades dos sentidos entre homens truculentos e animais vitimizados pela rebeldia nos amplos quadros imaginários e suas significações nas imagens das telas do universo violento exercido pelos humanos. São aspectos que atraem os sentimentos como fragmentos humanos indignos, através de cenas mostradas em planos e contraplanos para captar o silêncio, a vida do cotidiano, a poesia e a dor do animal num lugar cercado por frondosas árvores em imagens de uma natureza enigmática e seus segredos que despertam curiosidades para meditação, com configurações que levam à imersão transcendental do espectador, quase sobrenatural com elementos essenciais de uma narrativa singular. Skolimowski pensa no cinema como mecanismo de magia do mundo, o que é admirável nesta experiência sensorial numa viagem ao subconsciente. Há um brilho poético acompanhado pela excelente trilha sonora, especialmente o fascinante quarto concerto para piano de Beethoven que emociona. O cineasta demonstra sensibilidade para um mergulho sobre as questões dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham a violência e os maus tratos aos animais com a força das comoventes fantasias neste fabuloso drama mesclado com esta bela fábula moderna, que certamente estará entre os 10 melhores filmes do ano.
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