sexta-feira, 29 de novembro de 2024

A Substância

  

Indústria da Beleza

O Novo Extremismo Francês é um movimento cinematográfico que tem como base principal o foco de realizações com o objetivo da transgressão em temáticas pesadas e com uma violência explícita. Um dos pilares é a abundância de muito sangue para desafiar o público e fazê-lo pensar sobre diversas situações de uma sociedade aparentemente acomodada. Esta definição foi cunhada pelo crítico James Quandt para classificar o cinema transgressivo francês do body horror, um subgênero do cinema de terror que se caracteriza por explorar a violação do corpo humanoque teve início na década de 1990 e se estende até os dias de hoje como um contraponto aos filmes de terror produzidos em Hollywood. Marcados pelo estilo de produções polêmicas onde o grotesco e a bizarrice são a mola propulsora do conceito, tais como: Desejo e Obsessão (2001), de Claire Denis; Irreversível (2002) e Clímax (2018), ambos de Gaspar Noé; Alta Tensão (2003), de Alexandre Aja; A Invasora (2007), de Alexandre Bustillo e Julien Maury; Mártires (2008), de Pascal Laugier; Grave (2016), primeiro longa-metragem de Julia Ducournau ao retratar elementos violentos do canibalismo para mostrar o amadurecimento e as transformações de sua protagonista. Depois realizou o polêmico Titane (2021), vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, para abraçar definitivamente este novo seguimento cinematográfico, em que não há delicadezas para expor. Pobres Criaturas (2023), do grego Yorgos Lanthimos, com 11 indicações ao Oscar, foi vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, tendo também aderido a este movimento com fundamentos nos estereótipos.

Com direção e roteiro de Coralie Fargeat, o filme A Substância, em cartaz na plataforma MUBI, se credencia para ingressar no movimento Novo Extremismo Francês. Causou frisson no Festival de Cannes deste ano, e foi laureado com o prêmio de Melhor Roteiro. A cineasta francesa de 46 anos mostrou méritos em sua estreia no cinema com Vingança (2017), um filme brutal de estupro e vingança para colocar seu nome entre as mais promissoras. A trama de seu último longa retrata Elisabeth Sparkle (Demi Moore- atuação impecável e com muita sobriedade), uma celebridade em declínio que enfrenta uma reviravolta inesperada ao ser demitida de seu programa que retrata a condição da boa forma física e saudável num canal líder de audiência na televisão pelo egocêntrico e asqueroso diretor (Dennis Quaid). Desesperada por um novo começo, ela decide experimentar uma droga do mercado clandestino que promete replicar suas células, criando temporariamente uma criação mais jovem e aprimorada de si mesma (Margaret Qualley- de uma beleza colossal com boa dose de talento). Um sonho vendido como um aspecto melhor de si mesmo, com a excentricidade de que é preciso experimentar este novo produto. Agora, a protagonista está dividida entre suas duas exposições que devem coexistir enquanto navegam pelos desafios da fama e da identidade controversa, ou seja, mais jovem, mais bonita, e mais perfeita. Há apenas uma regra: as duas versões terão que dividir o tempo. Uma semana para cada uma, rigorosamente, para manter o equilíbrio da perfeição. Porém, o sonho vira um terror corporal extremo que subverte e questiona a indústria da beleza diante do horror abordado com um viés feminista contestador.

A jovem diretora demonstra boa inspiração em Frankenstein ou o Prometeu Moderno, de Mary Shelley, publicado em 1816, famosa obra do gênero que se tornou um clássico na Era Vitoriana entre 1837 e 1901. Integra outros dois clássicos do gênero: Drácula, de Bram Stoker (1992), e O Médico e o Monstro (1886), de Robert Louis Stevenson. Após a clássica adptação de 1931, estrelada por Boris Karloff, dirigida por James Whale, o personagem ficou famoso. A Substância foi ambientado em Los Angeles, começa com uma vista aérea da Calçada da Fama de Hollywood, onde uma nova estrela está sendo colocada. A trama acompanha uma visão surreal, sendo difícil não associar com a lesão no crânio da protagonista em Titane, que por ser grave necessita de um implante de uma placa de titânio em sua cabeça, deixando sequelas visíveis e abaláveis psicologicamente que irão marcar para sempre seu futuro pelos efeitos colaterais. Fargeat mostra sem nenhum pecado ou culpa sua obra recheada de violência. Uma transformação explícita corporal intensa, no qual ousa pela degradação e privação sem cerimônia com o intuito autodestrutivo do experimento diabólico da droga na crise de identidade, na qual a indústria de entretenimento reforça padrões diários da formosura através do olhar fetichista dos homens sobre o corpo feminino.

Há representantes de várias nuances nos personagens masculinos com a autoridade ditatorial, machista e patriarcal reinando como uma necessidade abjeta e mesquinha de manter o controle sobre as mulheres como descartáveis num mundo distópico diante das desigualdades absurdas que soam como as lançadas na narrativa. Embora bizarra, mas com uma lógica de uma visão que tem méritos ao apontar o bullying empregado de forma vil que atinge o emocional e o psicológico da vítima feminina, predominando as situações kafkianas inverossímeis. Mesmo que haja exaltação ao grotesco, há boas contribuições sublimes da realizadora, que lança um olhar feminino preocupado ao abordar as transposições com as armações sinuosas da personagem central, até partir em busca de seu objetivo maior e irrenunciável que é a volta da beleza libertadora de uma estrela que envelheceu. Ela quer a redenção acentuada pelas imagens daquela nova mulher jovial e sedutora, e às vezes, recheada de ironias à sociedade de consumo do belo. O óbvio sendo caracterizado causa impacto pela repulsa do monstro que emerge de dentro dela, mas retrata com eloquência os privilégios perdidos pela velhice rejeitada, especialmente quando lhe é negada a própria consciência do passar dos anos.

A Substância pode ser visto e entendido como uma saga satírica excêntrica que traz no bojo um terror mórbido dolorido para criticar a sociedade e seus aspectos repulsivos ao expressar a violência das questões femininas representada na grande festa programada na televisão de final de ano. Um desfecho com muito sangue jorrando na tela ao apresentar uma figura monstruosa construída, além da catarse de horrores. A estética mexe com o espectador na zona de conforto para não ficar desatento, diante da desorientação de lucidez num cenário chocante de autodestruição que abalroa a plateia com imagens violentas e pouco indicadas para estômagos mais fragilizados ao melhor estilo de David Cronenberg, em A Mosca (1986). Sem a força necessária para atingir sutilezas e ironias finas ao lidar com os problemas emocionais e psicológicos no caos instalado diante do saber envelhecer com amadurecimento, acaba prejudicando uma ideia mais sincronizada e reflexiva dentro da psique humana. Aflora fantasias de um universo que vai da fábula adulta à ficção científica com tintas de desbloqueio para retratar o inconsciente humano da personalidade e o ego. Por uma dimensão inconsciente, seus desejos e emoções dentro de uma psicologia sobre a bizarrice das duas versões, o que é polêmico, delirante e discutível, além da cobrança diária de um sistema da perfeição obsessiva do fascínio da aparência.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Festival Varilux Cinema Francês (O Roteiro da Minha Vida- François Truffaut)

 

Um Grande Legado

Uma das aguardadas atrações do Festival Varilux de Cinema Francês deste ano era o documentário O Roteiro da Minha Vida- François Truffaut, dirigido por David Teboul, que também assina o roteiro com Serge Toubiana e Antoine de Baecque. Baseado na biografia dos roteiristas sobre François Truffaut (1932-1984), publicada em 1996, editora Record, além de escritos inéditos do realizador. Teboul explora a ligação entre os filmes para uma construção com um ângulo intimista. O espectador terá algumas inusitadas revelações, detalhes e situações densas até então desconhecidas sobre a vida do cineasta. Alguns mistérios são decifrados com luzes sendo lançadas na controvertida e tumultuada carreira de uma trajetória pequena, tendo em vista que faleceu precocemente com 52 anos, de câncer no cérebro, sendo um ícone da história do cinema do século XX. Uma das marcas do meritório diretor foi ser um dos nomes expoentes que fundou o célebre movimento cinematográfico Nouvelle Vague nos anos de 1950 e 1960, insatisfeito com os rumos da indústria do cinema, juntamente com outros cineastas, tais como: Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Éric Rohmer, Claude Chabrol e Jacques Rivette.

O documentário segue um estilo convencional narrado em off, às vezes exagera e se torna didático, repetitivo e cansativo. A edição e a montagem apresentam falhas, com ausência de informações precisas, muitas vozes com depoimentos pouco importantes, embora os recortes do imenso arquivo de imagens da filmografia sejam adequados. O protagonista era um aficionado por filmes, escolhia lugares nas primeiras cadeiras para ficar mais perto da tela e mergulhar nas histórias de Alfred Hitchcock e Howard Hawks. Escreveu para Cahiers do Cinema, do editor André Bazin, quase que um pai do Truffaut na importante revista, que também morreu cedo, com 40 anos, em 1958. Os textos demonstravam ser um ferrenho crítico do cinema francês praticado na época pelos métodos utilizados que resultavam em realizações artificiais e ruins, porque os diretores preferiam trabalhar somente em estúdios que permitiam um controle de som, luz e movimentos de câmera insossos e simples. Posteriormente, largaram as máquinas de escrever para carregar câmeras filmadoras, surgindo uma série de filmes e realizadores revolucionários conhecidos pelo movimento que fundaram.

A biografia adaptada para o filme aponta entre curtas e longas-metragens 25 realizações, iniciando com o curta Uma Visita (1955) e finalizando com o longa De Repente, Num Domingo! (1983). Menciona os mais admirados como Jules e Jim- Uma Mulher Para Dois (1961), A Sereia do Mississipi (1969), As Duas Inglesas e o Amor (1971), O Último Metrô (1980), O Homem Que Amava as Mulheres (1970), A Mulher do Lado (1981), e o clássico Os Incompreendidos (1959), com boa dose autobiográfica, na qual mostra uma infância desestruturada, beirando a marginalidade, com falta de comida diante da ocupação nazista na França. São marcantes a falta de afeto da mãe ausente e de um padrasto, Roland Truffaut, que nunca assumiu a referência masculina paterna. Ambos o viam como um estorvo, não tinham nenhum pudor em livrar-se do filho quando surgiam viagens nos fins de semana, férias, e até na celebração de Natal. A morte e a perda deixaram sequelas profundas para sempre por não conhecer seu pai biológico. A resposta do Truffaut adulto aos infortúnios da puberdade, a detenção por furto, os escapes sedutores para ir ao cinema, que se tornou um ritual obsessivo, veio transformada em inspiração para filmes autobiográficos com uma mescla de dados da realidade, evocações variadas sem necessariamente implicarem das memórias pessoais.

Truffaut e Godard eram muito amigos, mas acabaram brigando e rompendo os laços profissionais, abordado superficialmente. Godard se tornou mais político e criou o grupo Dziga Vertov, praticamente abandonando o cinema dito convencional. Truffaut se rendeu ao cinema americano, inclusive atuou no papel de cientista-chefe na obra vencedora do Oscar de melhor de filme estrangeiro em Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), de Steven Spielberg. Venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro com A Noite Americana (1973) ao falar de sua paixão pela sétima arte. O grande amor de sua vida foi Madeleine Morgenstern, ficaram casados de 1957 a 1965, com quem teve duas filhas (Laura e Éva). Apaixonou-se por muitas atrizes de seus filmes, celebrando o amor pela figura da mulher, entre elas estão: Julie Christie, Catherine Deneuve, Claude Jade, Françoise Dórleac, Jacqueline Bisset, Jeanne Moreau, Marie-France Pisier e Fanny Ardant, com quem teve uma filha (Joséphine).

O documentário deixou de mostrar o ator Jean-Pierre Léaud que encarnava o personagem Antoine Doinel sendo premiado com a Palma de Ouro honorária do 69º. Festival de Cannes, em 2016. Léaud estreou no evento apresentando Os Incompreendidos, seu primeiro trabalho como protagonista, aos 14 anos, com o personagem era Doinel, alterego de Truffaut que voltaria a encarnar em Antoine e Colette (1962), Beijos Proibidos (1968), Domicílio Conjugal (1970) e Amor em Fuga (1979). A postura política do cineasta foi marcante ao lado de Godard nos protestos que levaram ao cancelamento do Festival de Cannes em 1968, uma espécie de continuidade da rebelião do famoso maio daquele ano, em Paris, ainda que na juventude tivesse alguma simpatia pelas posições de direita. Era um leitor compulsivo, por isto entrevistou Hitchcock por 8 dias consecutivos em Los Angeles, que deu origem ao livro Hitchcock/Truffaut: Entrevistas, produzindo uma publicação de referência nas livrarias para os abnegados cinéfilos e estudiosos. Louvável o esforço para reconstruir a sua memória com um legado magnífico para quem viveu pouco. A sucessão de perdas o envolveu, mas a tragédia nunca barrou sua arte, exceto quando esteve internado numa clínica com depressão. Há passagens em que se discutem as representações do amor e da sexualidade no cinema, sempre enfatizando a Nouvelle Vague na busca obstinada de formas mais autênticas e coerentes para representar o ser humano nesta interessante reflexão, mesmo com seus equívocos, sobre a vida e a celebração existencial.

sábado, 16 de novembro de 2024

Festival Varilux Cinema Francês (Bolero, A Melodia Eterna)

 

Um Gênio Revisitado

O mais aguardado lançamento neste Festival Varilux de Cinema Francês era Bolero, A Melodia Eterna, com direção da producente francesa Anne Fontaine. A cineasta, que depois de atuar em algumas comédias, realizou seu primeiro filme, Les Histoires d'amour finissent mal…en general (1993), ganhador do Prêmio Jean Vigo, sendo dela também o elogiado Lavagem a Seco (1997), premiado no Festival de Veneza; o drama psicológico Nathalie X (2003); A Garota de Mônaco (2008); o festejado Coco Antes de Chanel (2009), Meu Pior Pesadelo (2011); Amor Sem Pecado (2013), Gemma Bovery (2014), Agnus Dei (2015), e Marvin (2017), entre tantos outros. Volta com esta extraordinária cinebiografia do pianista, compositor e regente francês Maurice Ravel (1875-1937), que demonstrava interesse pela música desde os 7 anos. Reconhecido pela sutileza das suas melodias instrumentais e orquestrais, entre elas está a obra-prima Bolero, que ele considerava trivial e descreveu como “uma peça para orquestra sem música”. A interpretação de Raphaël Personnaz não poderia ser melhor, de forma magistral, com muito vigor e uma técnica apurada, é conhecido especialmente por atuar em O Palácio Francês (2012), de Bertrand Tavernier, Uma Nova Amiga (2014), de François Ozon, e na série L'Opéra: Nos Bastidores do Balé (2021-2022).

O longa-metragem foi ambientado em 1928, nos “anos loucos” de Paris, onde brilhava a atriz e dançarina russa bissexual Ida Rubinstein (1885-1960), interpretada por Jeanne Balibar. Celebrizada por sua beleza, senso de expressividade e audácia no palco, rica, financiou inúmeros artistas e fundou a sua própria companhia. Encomendou ao compositor uma música especial para seu próximo provocante balé sensual com toques de erotismo, em uma dança revolucionária para os tempos da época, com data agendada de três meses para estrear no teatro. Ravel enfrenta uma crise existencial com pouca inspiração, assediado pelas mulheres, evitava relacionamentos íntimos, tinha como comportamento amores platônicos, sem sexo. Deixa transparecer uma relação edipiana com a mãe, a qual venerava. Pagava prostitutas para conversar e dançar, se afastava constantemente de sua musa inspiradora casada, Misia Sert (Doria Tillier), em um amor impossível, com argumentos evasivos. Os capítulos de sua vida eram desafios constantes, alistou-se como voluntário para servir seu país com marcas indeléveis da Grande Guerra. Em constante contradição pessoal, decide dedicar-se de corpo e alma à criação de uma obra universal, o clássico Bolero, no qual sonhava fosse apresentado numa fábrica, uma utopia pessoal, e não num teatro, motivo pelo qual entrou em atrito com Rubinstein.

Um filme com algumas semelhanças com outras cinebiografias, embora mais ousado, com algumas diferenças do documentário Ennio, O Maestro (2022), de Giuseppe Tornatore, que contava a vida e a carreira artística do lendário maestro italiano Ennio Morricone; de Bohemian Rhapsody (2018), dirigido por Bryan Singer, sobre Freddie Mercury e seus companheiros; bem como do outro grande compositor no documentário Aznavour por Charles (2019), de Marc di Domenico, sobre o icônico cantor e compositor mundial Charles Aznavour; pouco ou nada a ver com Elvis (2022), de Baz Luhrmann, que documenta a vida e a carreira artística do músico que se tornou o Rei do Rock’n’Roll; próximo de Maria Callas- Em Suas Próprias Palavras (2017), do competente Tom Volf, entre tantas outras realizações sobre grandes estrelas. Bolero, A Melodia Eterna foi adaptado livremente do livro de Marcel Marnat (editora Fayard, de 1986). Fontaine cria com rara sensibilidade e uma delicadeza sofisticada como uma obra singular ao retratar a complexa personalidade do artista que tinha sua maior paixão a arte pela música, com suas neuroses, angústias, num clima dolorido e de muita melancolia para explorar a origem dessa música de repetidas batidas sonoras. Sofria com as críticas especializadas e por várias vezes foi reprovado em concursos públicos, teve passagens pelos EUA e Espanha, na busca da inspiração agonizante que teimava em resistir.

Uma construção com uma criteriosa sutiliza e uma trama fascinante sobre a complexa personalidade de um gênio, que não admitia sequer que sua obra máxima estivesse acima dele, pois entendia ser um artista de outras composições meritórias, ainda superiores. Um constante e destrutivo conflito de superego e alter ego, que o fazia padecer e aniquilava o protagonista. Obstinado pela perfeição que abalava o artista no paralelo entre a concepção até o surgimento desta composição maior, mesmo sendo renegada pela sua relevância. Havia dúvidas e preocupações no confronto dos sons como contraditório na elaboração de uma cavalaria ligeira com o enigma figurado que consistia em exprimir palavras ou frases cujos nomes produzissem quase os mesmos resultados. A cena de uma sessão educativa com a mãe na ânsia de um resultado supremo trará respostas para sua criação com os acordes na cabeça esperando emergir para a explosão criativa, como um vulcão adormecido à espera do grande momento. Mostra um retrato intimista com sobriedade de um artista apático, fruto da própria natureza de insatisfação e cobrança ao extremo pela sua dimensão misteriosa.

O epílogo revelador da grave doença atormentando seus neurônios ardendo na imersão sensitiva de uma catarse no final, quando a diretora habilmente filma em preto e branco, faz desfilar em sua memória já combalida os grandes amores de sua vida ao som e no ritmo de um Bolero, lascivo e sexual. Como se houvesse uma rajada de vento gelado no hospital para atravessar uma temerosa cirurgia. A frustração afetiva e a relutância profissional permeiam o biografado amargurado em viver, amar e criar. Um painel profundo sobre um homem deprimido, que tenta afastar seus problemas de terceiros pela sua brandura com um viés ácido sobre o sentido de existir. A solidão e as buscas furtivas para dançar e conversar sob pagamentos são arrasadoras constatações de um mundo vazio para quem quer realmente criar, principalmente na perda materna, como se órfão ficasse no universo, deixa de escrever por dois anos. Um retrato pungente documentado da vida de um astro e sua fervorosa vocação como compositor e maestro, com todo seu magnetismo e brilho quase inigualável no universo cultuado da música, em especial sua criação redentora através de sentimentos emocionais na construção psicológica do sofrimento humano. Uma ode aos apreciadores da pura arte na companhia musical sedutora nesta cinebiografia arrebatadora, que está entre as três maiores realizações de Anne Fontaine.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Festival Varilux Cinema Francês (1874, O Nascimento do Impressionismo)

 

Movimento Revolucionário

O movimento impressionista francês na pintura sempre rendeu boas realizações no cinema, atraindo a atenção dos aficionados das artes plásticas. Uma delas foi o comovente drama Renoir (2012), que teve na direção o experiente Gilles Bourdos, conhecido por Disparus (1998), Inquiétudes (2003), e o badalado Depois de Partir (2008). Abordou o final da vida do célebre pintor Pierre-Auguste Renoir (Michel Bouquet), tendo como cenário a Côte d’Azur, em 1915. O mestre das tintas que veio a falecer em 1919, passou por um período de graves problemas pessoais, atormentado pela morte de sua mulher, lancinantes dores por uma artrite reumática degenerativa e, como desgraça pouca é bobagem, foi informado da triste notícia que seu filho Jean- ele mesmo, o cineasta Jean Renoir- fora ferido em combate na guerra e estava retornando manco de uma perna. A trama foi conduzida com elegância e charme, para mostrar na vida do velho pintor a linda jovem Andrée, tornando-se sua última modelo e fonte de inspiração e rejuvenescimento, decorrente daquela beleza radiante que lhe soa como um bálsamo para continuar vivendo. Mas nem tudo é felicidade, logo voltou o filho ao convívio familiar, para recuperar-se dos ferimentos, que fica fascinado com a moça e sofre uma forte oposição do pai para o romance. Não era somente um filme sobre o final da vida do notável pintor e seus quadros, mas sua relação amistosa e tímida com os quatro filhos, entre os quais a única mulher, que busca longe do lar sua trajetória pessoal.

Novamente, a arte cinematográfica retrata o movimento revolucionário impressionista, sendo uma das boas surpresas do Festival Varilux de Cinema Francês deste ano. Um misto de documentário com drama, 1874, O Nascimento do Impressionismo, dirigido pela dupla Julien Johan e Hugues Nancy. A mescla tem uma sintonia mais convencional com o ficcional, na qual o tom documental fica em segundo plano, dando mais protagonismo aos personagens dentro de uma história aparentemente verdadeira, mas que acaba sendo utilizados elementos de uma admirável representação visual pela maneira de pintar dos artistas com seus problemas pessoais e suas idiossincrasias. Todavia, traz uma boa dose daqueles filmes feitos especialmente para canais especializados em arte, principalmente quando uma voz feminina em off, de forma didática para iniciantes monopoliza a narrativa. Não apresenta variação do estilo descritivo rápido sem alterar o tom, sempre na mesma toada nos 95 minutos de duração, o que é totalmente desnecessário e redundante, por causar cansaço no espectador.

A trama tem nomes de peso do mundo da arte, como Claude Monet, Edgar Degas, Pierre-Auguste Renoir, Paul Cezanne, Camille Pissarro, e a inclusão de Berthe Morisot, única presença feminina dentro do movimento, apesar de ser pouco conhecida, e outros demais colegas que organizaram sua primeira exposição coletiva de forma independente. Contrariaram as normas vigentes, exceto Édouard Manet que não aderiu e preferiu continuar se submetendo aos ditames oficiais. A realização, embora seus equívocos técnicos, revive a história desses jovens pintores que se rebelaram contra o academismo de sua época, traçando o surgimento de uma revolução que impactou e se consagrou definitivamente com o passar dos anos. O longa ressuscita uma gama de célebres pintores que se uniram para iniciar uma nova onda inovadora, com um elenco de atores cuidadosamente selecionados, onde os diálogos são meticulosamente elaborados com base em documentos de arquivos, testemunhos da época e, principalmente, as correspondências guardadas como documentos históricos. Tinha como principais características: O Subjetivismo: pintores acreditavam que a realidade era subjetiva e que cada pessoa percebia o mundo de forma diferente. Paisagens: As obras retratam horizontes comuns e cenas do cotidiano. Cores: utilizavam as vivas e as claras, em tons neutros, para expressar os efeitos de luz. Pinceladas: eram rápidas e sutis, e os traços imprecisos. Espaço aberto: preferiam pintar ao ar livre, como parques e jardins.

A dupla de diretores mostra em algumas cenas os pintores esboçando uma representação textual e as inspirações, tanto na pintura realizada ao ar livre em contato direto com a natureza, mas em outras sequências há os estúdios e pincéis sendo manipulados com as cores vivas para a elaboração, até chegar ao resultado final. As imagens ficcionais tentam dar uma leveza de realismo no desenrolar da trama, mas em muitas situações o artificialismo se sobrepõe no filme. Os conteúdos teóricos são relatados à exaustão com predominância de um enredo muito amarrado na cronologia dos fatos. Não são mencionados fontes do texto em desenvolvimento, o que remete, provavelmente, para notícias vinculadas na imprensa daquele período, tudo dito didaticamente na narrativa. A batalha contra o academicismo em nome de um novo estilo, tema central do movimento, indica as dificuldades daqueles jovens rebeldes contra os concursos artísticos de salões, onde as novas formas eram refutadas e execradas pela sociedade conservadora e aristocrática de 1874.

Os vários quadros dos artistas que surgem no enredo é um dos pontos altos do documentário, bem como as relações deles com as guerras do final do século XIX, entre as quais estão as tropas do governo provisório que invadiram a capital francesa e destituíram a Comuna de Paris, que impactou a vida dos pintores, mexendo com a criação de episódios que levaram para o surgimento de um novo estilo. Entre eles, está Renoir, que nunca deixou de dar importância à forma, como na série As Banhistas. Marcante pela sua pincelada enérgica com motivos que lembram o mestre Jean Auguste Ingres. A sua obra de maior impacto é Le Moulin de la Galette, em que conseguiu elaborar uma atmosfera de vivacidade e alegria à sombra refrescante de frondosas árvores, com intensidades azuis. A luz solar aparecia como elemento predominante na sua pintura e o resultado foi uma série de obras-primas ao melhor estilo de seu mestre italiano Ticiano Vecellio e outros pintores reverenciados, como Jean-Honoré Fragonard e François Boucher. Os realizadores concentraram sua projeção nos fracassos e resiliências do ser humano, pois esta não é somente uma obra de endeusamento de mestres como uma poesia lírica. É antes de tudo um interessante relato crítico de uma aristocracia com seus problemas familiares, os efeitos nefastos das guerras, de uma união resistente contra o poder sufocante e sem diálogos com a classe artística. Uma rebeldia consistente contra influências externas num ambiente carregado por tabus e preconceitos, que dão consistência a este apreciável filme sobre a escola do Impressionismo.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Ainda Estou Aqui

 

Sombras da Ditadura

O aclamado cineasta brasileiro Walter Salles, numa produção dos EUA, França e Grã-Bretanha, através do cineasta e produtor Francis Ford Copolla, que em 1979, adquiriu os direitos legais para adaptar o best-seller de Jack Kerouac On The Road, de 1957, foi levado pela primeira vez às telas do cinema com o título Na Estrada (2012), sua última grande realização. Recriou de forma elegante a saga da contracultura dos jovens perdidos no mundo do pós-guerra, deixando nítidos os reflexos violentos do período da Grande Depressão norte-americana de 1929. Antes, dirigiu Linha de Passe (2008), Diários de Motocicleta (2003), Abril Despedaçado (2001) e Central do Brasil (1998), até então sua obra absoluta. Agora, Salles dá seu maior salto na carreira e atinge o ápice com Ainda Estou Aqui, uma adaptação do livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, pelos roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lorega, ao narrar a emocionante saga da mãe do escritor, Eunice Paiva, durante a ditadura militar no Brasil, ambientada em 1970. A realização coproduzida com a França foi indicada para representar o Brasil na categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar de 2025.

A trama conta a história que se passa na casa da família do engenheiro, importante político e ex-deputado federal Rubens (Selton Mello- sempre sóbrio e irrepreensível) e sua esposa, Eunice (Fernanda Torres- em atuação antológica, certamente numa das maiores já vistas no cinema nacional, carrega o filme com uma desenvoltura soberba), uma mulher destemida, gigante na altivez, empoderada e com muita fibra, na companhia dos cinco filhos do casal. Aparentemente era uma pessoa comum, que teve de mudar drasticamente seu comportamento logo após o desaparecimento do marido, levado da residência para supostamente prestar alguns esclarecimentos sobre o sequestro do embaixador suíço no auge do regime de exceção, acusado de conspirar contra o governo. Salles conduz a trama com segurança e energia, deixando transparecer sempre sobra de fôlego com um estilo próprio de uma insustentável leveza narrativa para golpear o espectador no âmago de seu imaginário. Uma obra com ausência de violência explícita e com uma perspicaz criação de terror psicológico, sem abusar ou desbordar para o melodrama maniqueísta que pudesse levar facilmente às lágrimas. Pode levar a náuseas pelo impacto auditivo e sensitivo dos gritos dos presos sendo torturados, mas com sutileza e finesse, que só um criativo artesão poderia conseguir tal resultado.

Tudo é fruto de uma boa estrutura para uma dramaticidade equilibrada e sem sensacionalismos, mas com um apreciável tecnicismo para evitar os arroubos de grandes cenários, numa história contada com sensibilidade e uma profunda visão sobre a ditadura sobrepondo os efeitos da liberdade democrática. Há um domínio excelente dos planos e contraplanos de cenas, aproximando sempre a câmera nos rostos dos personagens para captar toda a emoção e a dor dilacerante, tanto da esposa como dos filhos, mas sem utilizar métodos apelativos baratos. Forçada a abandonar sua rotina de dona de casa, a resiliente mãe e mulher se transforma em uma ativista dos direitos humanos e dos indígenas, lutando pela verdade sobre o paradeiro do companheiro ao enfrentar as consequências brutais da repressão dos duros anos de chumbo. O filme não se resume em retratar somente um drama familiar, mas principalmente o impacto do regime militar na vida de milhares de famílias brasileiras na mesma situação, com uma distinção especial para a força feminina na espinhosa e terrível empreitada da resistência diante das questões de perdas, mas sem abstrair a coragem e a dignidade.

Salles revisita um dos períodos mais sombrios da história brasileira, mergulhando nos fétidos porões escuros e abjetos de uma época a ser lembrada para mostrar as feridas abertas de fantasmas que ainda pululam como lembranças nefastas. Um tributo à força da magnitude de uma mulher poderosa pela sua energia sólida para manter a família de pé, mesmo com sorrisos e poses emblemáticos pela ironia, sem nunca se abater ou vitimizar por todas as adversidades atrozes de um regime sanguinário. Um hino à democracia na luta pelos direitos esfacelados, tendo como simbologia o desaparecimento para sempre de um opositor ao sistema truculento com resultados nefandos. Uma viagem existencial recheada de dor, melancolia e rumos irrefreados de um universo incerto pelos dogmas com normas totalitárias preocupadas com os ditames estabelecidos por uma sociedade avessa aos diálogos civilizados, sendo sempre conveniente lembrar as atrocidades contra um cidadão sequestrado por agentes do governo, sem deixar vestígios e provas.

Eunice é determinada e quer manter o bem-estar de seus filhos ao buscar respostas que sempre vieram com evasivas. Tenta subverter as angústias da ausência incômoda antecedida pelos momentos de alegria e felicidade do microcosmo familiar nas belas praias carioca ensolaradas. Os namoros das filhas, o cachorrinho achado pelo filho menor, tudo regado com brincadeiras nostálgicas de um pai amoroso naquela casa sempre aberta, com o sol iluminando e motivando um cotidiano idílico, depois aniquilado pela força bruta, na qual as janelas e portas se fecharão para sempre, deixando a escuridão claustrofóbica, metáfora da tirania, invadir e se perpetuar como um elemento intimidador. O novo momento retornará no desfecho, agora em São Paulo, mas os acontecimentos abordados irão voltar à tona, mesmo que dezenas de anos depois para apontar uma resposta sem elucidação, exceto uma minguada vitória amarga e contraditória como da obtenção da certidão de óbito. É preciso continuar vivendo como um lema protocolar, sem extrair jamais a tristeza, pois a crueldade de sobreviver sem saber o que aconteceu se faz necessário para uma mãe acuada, perseguida e torturada psicologicamente, sem direito algum de se despedir. Há uma pergunta de um filho sobre qual é a hora de enterrar uma pessoa na própria memória? Cada um tem no imaginário uma solução pragmática, mas desprovida de uma realidade absoluta.

Embora haja uma linha autoral em sua estética, há similitude em conteúdo e proposta com o instigante Marighella (2019), de Wagner Moura, 52 anos após o assassinato do revolucionário baiano, neto de escravos, sobre as violentas ações e reações impostas em 1964; o extraordinário Pra Frente Brasil (1982), de Roberto Farias; e o sequestro do embaixador dos EUA no filme O Que É Isso, Companheiro? (1997), de Bruno Barreto, baseado no livro do jornalista Fernando Gabeira. Ainda Estou Aqui indica as atrocidades marcantes no enredo, com o objetivo de alertar o espectador, principalmente os jovens que não viveram aquele período de exceção, e o futuro incerto de todos carregados pela intolerância política, ao colocar em lados opostos membros da família brasileira. Contém densidade sobre um ciclo manchado de sangue por um sistema opressor, em que a reconstrução das vidas pela perda decorre do devastador estigma golpista. Cartas e recordações estão presentes em um cenário sinistro, embora a família tenha se multiplicado ao longo da história, deixando o abismo do vazio em segundo plano para seguir em frente, mas a agonia e o emocional fragilizado dos filhos e mãe estarão sempre juntos. A protagonista retorna no desfecho, já com a saúde debilitada pelo Mal de Alzheimer, na qual Fernanda Montenegro entra em cena, sem dizer uma palavra, mas se expressa pelo olhar, para coexistir seus últimos dias com os filhos adultos e alguns netos, num recorte da própria memória. Um marcante registro histórico do pior período político brasileiro contemporâneo. Significativo e relevante por seus aspectos em um regime vergado da democracia para o estado totalitário, sob o manto do autoritarismo nesta obra-prima de Walter Salles.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Festival Varilux Cinema Francês (O Segundo Ato)

 

Inquietações Futuras

Um dos mais aguardados lançamentos do Festival Varilux de Cinema Francês deste ano foi o interessante O Segundo Ato, com direção do prolífico parisiense Quentin Dupieux, de 50 anos, chamado de Mr. Oizo, também conhecido pelo trabalho como produtor e artista de música eletrônica. Estreou na direção de cinema em 2001, com o média-metragem Non-Film (2007); no mesmo ano, dirigiu seu primeiro longa-metragem, Steak (2007). Depois disso, realizou várias obras, tais como Wrong (2012), Os Maus Policiais (2013), Reality (2014), Deerskin: A Jaqueta de Couro de Cervo (2019), Mandibules (2020), Incredible but True (2022) e Fumar Causa Tosse (2022). O diretor e roteirista tem sido um nome constante em festivais como os de Cannes, Veneza, Berlim, Roterdã, Locarno e Sundance. O longa-metragem teve a honraria de fazer a abertura do Festival de Cannes deste ano e foi visto com entusiasmo pela crítica internacional e pelo público presente.

Uma comédia com esgar de sorriso irônico e um sarcasmo no ponto certo de muita ironia fina com requintes de abordagem psicológica preocupante para um presente iminente e um futuro cada vez mais próximo. O Segundo Ato é um filme dentro de outro, com uma proposta pouco usual de um jogo duplicado, dividido em quatro partes. A ação se abre com um longo plano-sequência num travelling em que conversam David (Louis Garrel), que quer apresentar Florence (Léa Seydoux) para o melhor amigo Willy (Raphaël Quenard), enquanto vão caminhando ao encontro da moça que está interessadíssima no protagonista, mas que não é correspondida. Suplica ao interlocutor que jogue um charme sobre a moça e a seduza. Este teme entrar numa fria, faz vários questionamentos sobre o que há de errado na tal garota para que haja este estranho pedido. Situações de preconceitos e homofobias são lançadas em tela para uma abordagem colocada em xeque sobre os rótulos da feiura, transgênero e os problemas neurológicos. O machismo desborda num ideário complexo numa situação de relação amorosa que vem à tona e só será revelada no desfecho para apresentar a cara da hipocrisia reinante num contexto ainda conservador pela ideologia da supremacia do macho alfa em relação aos padrões de beleza vigorantes na sociedade de consumo.

Na outra cena, a jovem está irrequieta porque pretende apresentar seu amado, aquele que julga ser o homem de sua vida, ao seu pai, Guillaume (Vincent Lindon). Em outra cena, o ansioso garçom figurante treme freneticamente ao ter que fazer uma ponta do filme, num ritual que irá se repetir. Todos são atores que estão fazendo o mesmo filme, e logo começa a se encaixar no roteiro as contradições e as peças do tabuleiro de xadrez. O realizador, com sutilezas, vai dando sugestões e mostrando uma dura realidade na qual o futuro já está presente. Ali é revelado que a direção de um filme foi realizado 100% por inteligência artificial, com dispensa de um quadro técnico humano de apoio que logo irá se tornar obsoleto ao testar ferramentas novas. Surgirão as imagens e os diálogos neste encontro controvertido, inverossímil acima de tudo, entre uma encenação com uma realidade complexa naquele enfadonho set de quatro personagens em um restaurante no meio do nada. Desprovido de emoção e com presenças físicas sucumbindo e despencando no artificialismo da produção e montagem, como nas duas cenas em sequência, em que atores perguntam ao suposto diretor sobre os efeitos positivos e negativos do resultado da realização. Só que, do outro lado, as respostas são protótipas de um robô sem alma e sem vida. Literalmente padronizadas e advindas de uma máquina sem coração pela ausência de humanismo. Causa um mal-estar, tanto nos personagens como no espectador, a eloquência vazia pela frieza.

As causas e efeitos estão presentes como situações ainda não bem elaboradas e sem perspectiva de cicatrização, que proliferam numa realidade acompanhada do contrassenso árido que promete o futuro sombrio. Aos poucos, torna-se complicado distinguir a ficção da realidade, como na rapidez da encenação entre os atores e os diálogos deles sobre suas amarguras na vida pessoal. Por isto, o cineasta habilmente utiliza seu sentido provocativo na viagem melancólica e silenciosa, beirando ao entediante, no travelling buscando uma luz no fim do túnel como um sopro quase que de desespero e angústia de um passado que se despede, acenando para um ponto de interrogação sobre os efeitos maléficos ou não da inteligência artificial que veio para ficar. Um filme construído com um propósito que surpreende pelo seu desenrolar preciso e direto ao ponto diante das dúvidas decorrentes na raiz da perversão das atrocidades que poderão restar de um futuro dúbio e carregado de dúvidas universais de outrora. O cineasta utiliza recursos para elaborar um cenário convincente, simbolizado no olhar atônito de alguns personagens quase que em transe, como do garçom italiano, para vencerem o medo na busca da verdade e das revelações que se acumulam, se entrelaçam e se espelham na magia do cinema.

Dupieux subverte os vários clichês que viraram moda e desafia o tom policialesco do recorrente politicamente correto, como na cena do beijo roubado e a ameaça de denúncia da atriz para acabar com a carreira do colega. Adota um estilo marcado pela naturalidade e pelo cômico, com cutucadas ferinas no absurdo do falso moralismo em nome de uma liberdade pertinente, mas utilizada de forma excessiva que deteriora as recorrentes causas justas de um repertório massificante. Um mergulho prazeroso nos chiliques existenciais da profissão dos artistas com suas idiossincrasias, amarguras, insatisfações, delírios, além das vaidades brotando e se esfacelando rapidamente numa narrativa consistente deste abismo de virtuoses estelares, extremadas em alguns casos; contidas em outras. Mesmo que a comédia não seja tão profunda, e sem grandes pretensões estilísticas, a narrativa é eficiente e o assunto causa desconforto, embora o roteiro seja linear e multifacetado em seu desenrolar, com elipses certeiras. O Segundo Ato remete para os bons tempos do movimento artístico revolucionário e contestatório da Nouvelle Vague nas décadas de 1950 e 1960. A dignidade está em xeque, embora seja questionada pelos defensores da inteligência artificial e seu campo multidisciplinar que abrange tecnologias e permitem uma variedade de funções, incluindo a capacidade de ver e entender. Há um fardo insustentável e pesado que tomará grandes dimensões numa atmosfera soturna diante de fatos que geram dor para uma reflexão sobre a irracionalidade neste painel admirável, magnificamente contextualizado na essência da sétima arte.