sábado, 16 de novembro de 2024

Festival Varilux Cinema Francês (Bolero, A Melodia Eterna)

 

Um Gênio Revisitado

O mais aguardado lançamento neste Festival Varilux de Cinema Francês, Bolero, A Melodia Eterna, com direção da producente francesa Anne Fontaine. A cineasta, que depois de atuar em algumas comédias, realizou seu primeiro filme, Les Histoires d´amour finissent mal…en general (1993), ganhador do Prêmio Jean Vigo, sendo dela também o elogiado Lavagem a Seco (1997), premiado na Mostra de Veneza; o drama psicológico Nathalie X (2003); A Garota de Mônaco (2008); o festejado Coco Antes de Chanel (2009), Meu Pior Pesadelo (2011); Amor Sem Pecado (2013), Gemma Bovery (2014), Agnus Dei (2015), e Marvin (2017), entre tantos outros. Volta com esta extraordinária cinebiografia do pianista, compositor e regente francês Maurice Ravel (1835-1937), que demonstrava interesse pela música desde os 7 anos. Reconhecido pela sutileza das suas melodias instrumentais e orquestrais, entre elas está a obra-prima Bolero, que ele considerava trivial e descreveu como “uma peça para orquestra sem música”. A interpretação de Raphaël Personnaz não poderia ser melhor, de forma magistral, com muito vigor e uma técnica apurada, é conhecido especialmente por atuar em O Palácio Francês (2012), de Bertrand Tavernier, Uma Nova Amiga (2014), de François Ozon, e na série L'Opéra: Nos Bastidores do Balé (2021-2022).

O longa-metragem foi ambientado em 1928, nos “anos loucos” de Paris, onde brilhava a atriz e dançarina russa bissexual Ida Rubinstein (1885-1960), interpretada por Jeanne Balibar. Celebrizada por sua beleza, senso de expressividade e audácia no palco, rica, financiou inúmeros artistas e fundou a sua própria companhia. Encomendou ao compositor uma música especial para seu próximo provocante balé sensual com toques de erotismo, em uma dança revolucionária para os tempos da época, com data agendada de três meses para estrear no teatro. Ravel enfrenta uma crise existencial com pouca inspiração, assediado pelas mulheres, evitava relacionamentos íntimos, tinha como comportamento amores platônicos, sem sexo. Deixa transparecer uma relação edipiana com a mãe, pela qual venerava. Pagava prostitutas para conversar e dançar, se afastava constantemente de sua musa inspiradora casada, Misia Sert (Doria Tillier), em um amor impossível, com argumentos evasivos. Os capítulos de sua vida eram desafios constantes, alistou-se como voluntário para servir seu país com marcas indeléveis da Grande Guerra. Em constante contradição pessoal, decide dedicar-se de corpo e alma à criação de uma obra universal, o clássico Bolero, no qual sonhava fosse apresentado numa fábrica, uma utopia pessoal, e não num teatro, motivo pelo qual entrou em atrito com Rubinstein.

Um filme com algumas semelhanças com outras cinebiografias, embora mais ousado, com algumas diferenças do documentário Ennio, O Maestro (2022), de Giuseppe Tornatore, que contava a vida e a carreira artística do lendário maestro italiano Ennio Morricone; de Bohemian Rhapsody (2018), dirigido por Bryan Singer, sobre Freddie Mercury e seus companheiros; bem como do outro grande compositor no documentário Aznavour por Charles (2019), de Marc di Domenico, sobre o icônico cantor e compositor mundial Charles Aznavour; pouco ou nada a ver com Elvis (2022), de Baz Luhrmann, que documenta a vida e a carreira artística do músico que se tornou o Rei do Rock’n’Roll; próximo de Maria Callas- Em Suas Próprias Palavras (2017), do competente Tom Volf, entre tantas outras realizações sobre grandes estrelas. Bolero, A Melodia Eterna foi adaptado livremente do livro de Marcel Marnat (editora Fayard, de 1986). Fontaine cria com rara sensibilidade e uma delicadeza sofisticada como uma obra singular ao retratar a complexa personalidade do artista que tinha sua maior paixão a arte pela música, com suas neuroses, angústias, num clima dolorido e de muita melancolia para explorar a origem dessa música de repetidas batidas sonoras. Sofria com as críticas especializadas e por várias vezes foi reprovado em concursos públicos, teve passagens pelos EUA e Espanha, na busca da inspiração agonizante que teimava em resistir.

Uma construção com uma criteriosa sutiliza e uma trama fascinante sobre a complexa personalidade de um gênio, que não admitia sequer que sua obra máxima estivesse acima dele, pois entendia ser um artista de outras composições meritórias, ainda superiores. Um constante e destrutivo conflito de superego e alter ego, que o fazia padecer e aniquilava o protagonista. Obstinado pela perfeição que abalava o artista no paralelo entre a concepção até o surgimento desta composição maior, mesmo sendo renegada pela sua relevância. Havia dúvidas e preocupações no confronto dos sons como contraditório na elaboração de uma cavalaria ligeira com o enigma figurado que consistia em exprimir palavras ou frases cujos nomes produzissem quase os mesmos resultados. A cena de uma sessão educativa com a mãe na ânsia de um resultado supremo trará respostas para sua criação com os acordes na cabeça esperando emergir para a explosão criativa, como um vulcão adormecido à espera do grande momento. Mostra um retrato intimista com sobriedade de um artista apático, fruto da própria natureza de insatisfação e cobrança ao extremo pela sua dimensão misteriosa.

O epílogo revelador da grave doença atormentando seus neurônios ardendo na imersão sensitiva de uma catarse no final, quando a diretora habilmente filma em preto e branco, faz desfilar em sua memória já combalida os grandes amores de sua vida ao som e no ritmo de um Bolero, lascivo e sexual. Como se houvesse uma rajada de vento gelado no hospital para atravessar uma temerosa cirurgia. A frustração afetiva e a relutância profissional permeiam o biografado amargurado em viver, amar e criar. Um painel profundo sobre um homem deprimido, que tenta afastar seus problemas de terceiros pela sua brandura com um viés ácido sobre o sentido de existir. A solidão e as buscas furtivas para dançar e conversar sob pagamentos são arrasadoras constatações de um mundo vazio para quem quer realmente criar, principalmente na perda materna, como se órfão ficasse no universo, deixa de escrever por dois anos. Um retrato pungente documentado da vida de um astro e sua fervorosa vocação como compositor e maestro, com todo seu magnetismo e brilho quase inigualável no universo cultuado da música, em especial sua criação redentora através de sentimentos emocionais na construção psicológica do sofrimento humano. Uma ode aos apreciadores da pura arte na companhia musical sedutora nesta cinebiografia arrebatadora, que está entre as três maiores realizações de Anne Fontaine.

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