O Novo Extremismo Francês é um movimento cinematográfico que tem como base principal o foco de realizações com o objetivo da transgressão em temáticas pesadas e com uma violência explícita. Um dos pilares é a abundância de muito sangue para desafiar o público e fazê-lo pensar sobre diversas situações de uma sociedade aparentemente acomodada. Esta definição foi cunhada pelo crítico James Quandt para classificar o cinema transgressivo francês que teve início na década de 1990 e se estende até os dias de hoje como um contraponto aos filmes de terror produzidos em Hollywood. Marcados pelo estilo de produções polêmicas onde o grotesco e a bizarrice são a mola propulsora do conceito, tais como: Desejo e Obsessão (2001), de Claire Denis; Irreversível (2002) e Clímax (2018), ambos de Gaspar Noé; Alta Tensão (2003), de Alexandre Aja; A Invasora (2007), de Alexandre Bustillo e Julien Maury; Mártires (2008), de Pascal Laugier; Grave (2016), primeiro longa-metragem de Julia Ducournau ao retratar elementos violentos do canibalismo para mostrar o amadurecimento e as transformações de sua protagonista. Depois realizou o polêmico Titane (2021), vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, para abraçar definitivamente este novo seguimento cinematográfico, em que não há delicadezas para expor. Pobres Criaturas (2023), do grego Yorgos Lanthimos, com 11 indicações ao Oscar, foi vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, tendo também aderido a este movimento com fundamentos nos estereótipos.
Com direção e roteiro de Coralie Fargeat, o filme A Substância, em cartaz na plataforma MUBI, se credencia para ingressar no movimento Novo Extremismo Francês. Causou frisson no Festival de Cannes deste ano, e foi laureado com o prêmio de Melhor Roteiro. A cineasta francesa de 46 anos mostrou méritos em sua estreia no cinema com Vingança (2017), um filme brutal de estupro e vingança para colocar seu nome entre as mais promissoras. A trama de seu último longa retrata Elisabeth Sparkle (Demi Moore- atuação impecável e com muita sobriedade), uma celebridade em declínio que enfrenta uma reviravolta inesperada ao ser demitida de seu programa que retrata a condição da boa forma física e saudável num canal líder de audiência na televisão pelo egocêntrico e asqueroso diretor (Dennis Quaid). Desesperada por um novo começo, ela decide experimentar uma droga do mercado clandestino que promete replicar suas células, criando temporariamente uma criação mais jovem e aprimorada de si mesma (Margaret Qualley- de uma beleza colossal com boa dose de talento). Um sonho vendido como um aspecto melhor de si mesmo, com a excentricidade de que é preciso experimentar este novo produto. Agora, a protagonista está dividida entre suas duas exposições que devem coexistir enquanto navegam pelos desafios da fama e da identidade controversa, ou seja, mais jovem, mais bonita, e mais perfeita. Há apenas uma regra: as duas versões terão que dividir o tempo. Uma semana para cada uma, rigorosamente, para manter o equilíbrio da perfeição. Porém, o sonho vira um terror corporal extremo que subverte e questiona a indústria da beleza diante do horror abordado com um viés feminista contestador.
A jovem diretora demonstra boa inspiração em Frankenstein ou o Prometeu Moderno, de Mary Shelley, publicado em 1816, famosa obra do gênero que se tornou um clássico na Era Vitoriana entre 1837 e 1901. Integra outros dois clássicos do gênero: Drácula, de Bram Stoker (1992), e O Médico e o Monstro (1886), de Robert Louis Stevenson. Após a clássica adptação de 1931, estrelada por Boris Karloff, dirigida por James Whale, o personagem ficou famoso. A Substância foi ambientado em Los Angeles, começa com uma vista aérea da Calçada da Fama de Hollywood, onde uma nova estrela está sendo colocada. A trama acompanha uma visão surreal, sendo difícil não associar com a lesão no crânio da protagonista em Titane, que por ser grave necessita de um implante de uma placa de titânio em sua cabeça, deixando sequelas visíveis e abaláveis psicologicamente que irão marcar para sempre seu futuro pelos efeitos colaterais. Fargeat mostra sem nenhum pecado ou culpa sua obra recheada de violência. Uma transformação explícita corporal intensa, no qual ousa pela degradação e privação sem cerimônia com o intuito autodestrutivo do experimento diabólico da droga na crise de identidade, na qual a indústria de entretenimento reforça padrões diários da formosura através do olhar fetichista dos homens sobre o corpo feminino.
Há representantes de várias nuances nos personagens masculinos com a autoridade ditatorial, machista e patriarcal reinando como uma necessidade abjeta e mesquinha de manter o controle sobre as mulheres como descartáveis num mundo distópico diante das desigualdades absurdas que soam como as lançadas na narrativa. Embora bizarra, mas com uma lógica de uma visão que tem méritos ao apontar o bullying empregado de forma vil que atinge o emocional e o psicológico da vítima feminina, predominando as situações kafkianas inverossímeis. Mesmo que haja exaltação ao grotesco, há boas contribuições sublimes da realizadora, que lança um olhar feminino preocupado ao abordar as transposições com as armações sinuosas da personagem central, até partir em busca de seu objetivo maior e irrenunciável que é a volta da beleza libertadora de uma estrela que envelheceu. Ela quer a redenção acentuada pelas imagens daquela nova mulher jovial e sedutora, e às vezes, recheada de ironias à sociedade de consumo do belo. O óbvio sendo caracterizado causa impacto pela repulsa do monstro que emerge de dentro dela, mas retrata com eloquência os privilégios perdidos pela velhice rejeitada, especialmente quando lhe é negada a própria consciência do passar dos anos.
A Substância pode ser visto e entendido como uma saga satírica excêntrica que traz no bojo um terror mórbido dolorido para criticar a sociedade e seus aspectos repulsivos ao expressar a violência das questões femininas representada na grande festa programada na televisão de final de ano. Um desfecho com muito sangue jorrando na tela ao apresentar uma figura monstruosa construída, além da catarse de horrores. A estética mexe com o espectador na zona de conforto para não ficar desatento, diante da desorientação de lucidez num cenário chocante de autodestruição que abalroa a plateia com imagens violentas e pouco indicadas para estômagos mais fragilizados ao melhor estilo de David Cronenberg, em A Mosca (1986). Sem a força necessária para atingir sutilezas e ironias finas ao lidar com os problemas emocionais e psicológicos no caos instalado diante do saber envelhecer com amadurecimento, acaba prejudicando uma ideia mais sincronizada e reflexiva dentro da psique humana. Aflora fantasias de um universo que vai da fábula adulta à ficção científica com tintas de desbloqueio para retratar o inconsciente humano da personalidade e o ego. Por uma dimensão inconsciente, seus desejos e emoções dentro de uma psicologia sobre a bizarrice das duas versões, o que é polêmico, delirante e discutível, além da cobrança diária de um sistema da perfeição obsessiva do fascínio da aparência.
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