terça-feira, 22 de maio de 2018

À Sombra de Duas Mulheres



Relações Amorosas

O veterano cineasta francês Philippe Garrel, discípulo da Nouvelle Vague, no qual ingressou bem depois de fundado, para dar continuidade com o inerente naturalismo da proposta do movimento que revolucionou o cinema. Tem em seu currículo o longa de estreia Marie Pour Mémoire, ganhador do Grande Prêmio do Festival du Jeune Cinéma de Hyères, em 1969, também abocanhou o Leão de Prata no Festival de Veneza de 1992 com J'Entends Plus la Guitare, prêmio que voltaria a receber por Amantes Constantes, em 2005. É detentor de uma filmografia elogiável como A Fronteira da Alvorada (2008); Um Verão Escaldante (2011); o autobiográfico O Ciúme (2013), que dirigiu seu filho Louis Garrel; e a última realização, Amante Por Um Dia (2017), outro belo e sensível drama familiar que estreou este ano no Brasil.

Chega somente agora ao circuito comercial brasileiro seu penúltimo filme, À Sombra de Duas Mulheres, realizado em 2015. Novamente se debruça sobre a temática da fidelidade e as consequências dos amores com ciúmes e traições como um ingrediente de molho para apimentar uma relação esfriada pelo tempo de uma convivência de muitos anos que cai na rotina do cotidiano implacável. Neste seu drama atual, segue a mesma senda e não decepciona seu público fiel das inequívocas circunstâncias da alma e do coração. Não falta o amor com ardor e dor, a angústia e o prazer entrelaçados, que são criados através de momentos de pura beleza e poesia, como na cena do epílogo. Tudo está encaixado dentro de uma proposta aparentemente simples, na qual está presente o objeto fundamental do estado emocional complexo envolvente de um sentimento provocado em relação ao medo da perda pela traição (mais que a própria morte) da pessoa amada.

Pierre (Stanislas Merhar) é um aborrecido cineasta de documentários independente, de poucos recursos, que busca uma linha autoral, é casado com Manon (Clotilde Courau), uma roteirista e produtora. Eles sobrevivem realizando trabalhos temporários para ter suporte nas produções mais arrojadas que pretendem no futuro. Estão em meio às filmagens de um casal de anciões, símbolos da resistência da França durante a ocupação da Alemanha nazista na II Guerra Mundial, porém o desfecho revelará a verdadeira posição dos seus heróis. Há um viés político na trama, mas seu foco principal está na investigação com acuidade das relações do microcosmo familiar e as paixões enlouquecidas da instantaneidade em rota de colisão com os amores duradouros de seus personagens fragilizados pelo tempo. Apesar de amar Manon, Pierre acaba conhecendo Elizabeth (Lena Paugam), uma estagiária de História, que conheceu numa cinemateca. A relação com a amante, as escapadas e o desejo em manter o affair, entra em rota de colisão com a companheira. Pretende manter as duas mulheres, mas algo está complicando a situação. O inesperado acontece como uma surpresa e o sentimento de culpa e perda estarão colocados em xeque pelo realizador, como uma proposta madura para uma abordagem consistente e sem fricotes ou subterfúgios, num roteiro conciso, enxuto e direto ao ponto, escrito por Jean- Claude Carrière, Arlette Langmann, Caroline Deruas-Garrel (esposa do diretor) e o próprio cineasta.

Importante destacar a primorosa fotografia em preto e branco, num tom melancólico e sem glamorização das relações, dá o equilíbrio exato nesta trama bem urdida da história retratada. O cineasta disseca por uma lúcida reflexão os atritos das relações surgidas no cotidiano do amor em toda sua extensão com os prazeres sexuais e os vínculos afetivos decorrentes pelas traições, numa obra que relembra com charme, além de provocar e instigar, através da consagrada estrutura da Nouvelle Vague. A solidão, o abandono, a iminência da perda e a traição conflitando com a fidelidade estão presentes nos personagens envolvidos que representam os papéis da vida no dia a dia da ficção e da dúvida sempre entrelaçados no realismo lançado dentro de uma verdade inafastável e onipresente na vida daquelas criaturas sofridas pela incerteza do amanhã, como simbologia da existência e a reconquista como um saboroso elemento constitutivo poético e infinito.

O genial Alain Resnais, um dos expoentes do famoso movimento da nova onda, foi insuperável ao criar uma atmosfera de amor e tristeza de uma existência que se torna ficcional no cenário das interpretações pela estética apurada com consistência e rigor no equilíbrio em Amar, Beber e Cantar (2014), um drama de sutilezas numa narrativa leve e ao mesmo tempo profunda, bem como em Vocês Ainda Não Viram Nada! (2011). Garrel tem uma admiração pelo velho mestre já falecido, por isso se esmera como um bom seguidor na essência do amor, do ciúme, a fidelidade e a traição. No filme O Ciúme, a relação da dúvida sobre a lealdade é visível e encaixa com precisão no enredo de um ator de teatro que vive em um modesto apartamento com uma atriz e levam uma vida normal de dois apaixonados, embora com sérias dificuldades financeiras. Já no drama Amante Por Um Dia, a temática das relações atormentadas está presente outra vez, em que a filha de um professor e a namorada dele se aturam, mas uma desconfia da outra, até que ambas acabam se aproximando e ficando amigas, mas irão deixando rastros pelo caminho que levam para o rompimento.

À Sombra de Duas Mulheres é uma abordagem mais elaborada e com mais verossimilhança na proposição da reconciliação de dois seres em litígio, porém eles têm algo em comum. São personagens mergulhados na solidão do cotidiano, além das idas e vindas conturbadas, há uma simplicidade de rara profundidade nos romances desfeitos e refeitos, o que dá realismo e alma ao longa. Não há culpados dentro das escolhas livres, ou induzidas, diante das consequências que o casal irá assumir. A iminente perda de uma grande paixão, a infidelidade fugaz no prazer sexual sem vinculação afetiva, como pessoas maduras pelas atitudes tomadas livremente, além do desconforto do flagrante e da traição que são contextualizados para uma reflexão sem preconceitos tacanhos pelo falso moralismo. O realizador cria belas imagens para uma escolha amoral num preto e branco estristecido propositalmente, como nas sequências que indicam a felicidade sendo tragada pela decepção sombria nas andanças pelas ruas do bairro, e no desfecho de exorcismo de fantasmas. Ao desenvolver a narrativa com a reconstrução, desenvolve essencialmente um filme sobre a tristeza do ser humano e sua proximidade com a vida angustiada do grande amor incondicional e suas virtudes, que deixará fluir pela ternura, mas dentro de um vazio da realidade dolorida e prazerosa, paradoxalmente, neste admirável drama intimista.

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