As Irmãs
Um dos aguardados lançamentos neste Festival Varilux de
Cinema Francês era o drama familiar com requintadas pitadas de suspense
psicológico Carnívoras, dirigido com
sobriedade e sutileza pelos competentes atores belgas Jérémie e Yannick Renier,
no primeiro longa-metragem como diretores, também responsáveis pelo roteiro. O
filme tem traços autobiográficos dos irmãos cineastas que remetem para uma
história instigante de duas irmãs atrizes. É construído um universo perverso
advindo do tempo que passa, mas não deixa cair no melodrama fácil, deixando a
sensibilidade das situações intrincadas ingressarem como um amargor decorrente
de uma acidez voluntária de duas vidas que se intercalam lentamente, com a exposição
visceral da ambição e da inveja como elementos propulsores do enredo, num
clímax bem engendrado pelos realizadores neófitos, porém deixam suas marca como
promissores na carreira.
Como um novelo que se desenrola, a dupla de diretores vai
lançando as situações diárias típicas de conflitos familiares inerentes. A
trama centraliza em Mona (Leïla Bekhti), a irmã mais velha de 29 anos, que tenta
decolar como atriz, após terminar seu curso de artes dramáticas. O tempo vai passando
e ela não consegue um papel marcante na carreira, exceto onde ela contracena num teste com um cavalo, interpretado por um figurante, ao terminar a cena a insegurança se
expressa no rosto decepcionado. Com poucos recursos, vai morar com Sam (Zita
Hanrot), sua irmã mais nova, também atriz, que está em meio às gravações de um filme com pretensões maiores. Ela vive com Manuel (Bastien
Bouillon) e o filho menor do casal (Octave Bossuet). Mona tem um olhar sombrio
sobre a vida, cobiça como prioridade o lugar da mana, seu marido, a criança, e
a posição social que leva, pois lhe falta o sucesso profissional, conjugal e
financeiro. Sam é despojada e tem uma visão colorida do cotidiano, embora sua realidade
seja controversa, ao apresentar algumas neuroses da infância, que são bem exploradas
pela irmã antiética e manipuladora ao extremo.
O thriller tem o
viés da reflexão sobre o conflito com tensões arrebatadoras do relacionamento e
o vínculo no microcosmo familiar causados pela disputa de espaço, a terrível
baixo estima da pseudovítima do sistema, no qual aflora sem piedade e funciona como
um fator agressivo e perigoso de quem tem as faculdades mentais duvidosas e
distante da lucidez, aparentemente. A temática é bem estruturada sobre a inveja,
o ciúme, e a ambição é bem explorada e mostrada com alguma crueldade, como
elementos de uma retórica de perda e rejeição pelo sangue frio da protagonista
vazia e artificial. Eis uma mulher que tem na gélida relação da adversária por
ela escolhida, que chega a enganar até a própria mãe (Hiam Abbass), que a vê
como a filha certinha e por isto é a queridinha numa embalagem bonita, mas sem
conteúdo e com um espantoso senso de manipulação, que conduz para o desenfreado
artifício maquiavélico dos fins que justificam os meios.
A dupla de diretores cria uma realização dolorosa que traz uma
insustentável leveza com sutileza pela intensidade de uma narrativa pela ótica
da investigação psicológica, para mesclar situações presentes com perversidade,
para retornar e compreender as razões do passado deste magnífico filme, mas em
que está embutida uma melancolia que fisga o espectador com a crítica situação
dentro de um contexto chocante e com os malefícios inerentes que irão fluir na
tela de maneira inexorável pela reconstrução familiar buscada nos pequenos detalhes
para uma amostragem que ganha tons de uma paranoia obsessiva. Há uma atmosfera
equilibrada dos contrastes da liberdade e o medo da insignificância
profissional pela jornada de aventuras de conquistas a qualquer preço com uma
magia peculiar. Retrata com imparcialidade as fragilidades femininas e suas
confusas idealizações e utopias indefinidas. Tudo contribui para a crise no
processo fragmentado do esvaziamento amoroso e profissional. A essência da vida
e a existência estigmatizada estão presentes, ainda que num momento de ilusória
harmonia entre irmãs na busca da precária felicidade. A protagonista tenta
superar as adversidades pela força da maldade e uma capacidade emocional que se
esvai e se desequilibra, tendo em vista que por dentro está angustiada pelos
transtornos diante da iminência do rompimento e a perda.
Carnívoras tem uma
influência concreta e inarredável da temática profunda da família abordada pelo
irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, não é à toa que são os coprodutores
do longa. Os efeitos traumáticos pretéritos são conduzidos com grande
desenvoltura pelos realizadores que direcionam para um desfecho pouco
convencional, mas com as evidências de um presente constituído por conjunções
psicológicas carregadas em sua saga, porém dá um tom da falsa justificativa
dentro de um mosaico neste painel pontilhado por amarguras e situações
emblemáticas que faz surgir um redemoinho assustador alucinatório que povoa o
consciente de uma mulher obsessiva e frustrada, na farsa do carinho que nutre
pela irmã bem-sucedida. Uma reflexão magistral sobre a condição humana e seus
traumas existenciais da rivalidade fraterna que mergulha no sofrimento de uma
inveja tresloucada, na solidão, e se escancara como resultado no desfecho desta
perturbadora realização que desemboca em rupturas de insuperáveis hostilidades na
catarse da tragicidade pela doentia mente subconsciente.
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