quarta-feira, 20 de junho de 2018

Festival Varilux Cinema Francês (Carnívoras)



As Irmãs

Um dos aguardados lançamentos neste Festival Varilux de Cinema Francês era o drama familiar com requintadas pitadas de suspense psicológico Carnívoras, dirigido com sobriedade e sutileza pelos competentes atores belgas Jérémie e Yannick Renier, no primeiro longa-metragem como diretores, também responsáveis pelo roteiro. O filme tem traços autobiográficos dos irmãos cineastas que remetem para uma história instigante de duas irmãs atrizes. É construído um universo perverso advindo do tempo que passa, mas não deixa cair no melodrama fácil, deixando a sensibilidade das situações intrincadas ingressarem como um amargor decorrente de uma acidez voluntária de duas vidas que se intercalam lentamente, com a exposição visceral da ambição e da inveja como elementos propulsores do enredo, num clímax bem engendrado pelos realizadores neófitos, porém deixam suas marca como promissores na carreira.

Como um novelo que se desenrola, a dupla de diretores vai lançando as situações diárias típicas de conflitos familiares inerentes. A trama centraliza em Mona (Leïla Bekhti), a irmã mais velha de 29 anos, que tenta decolar como atriz, após terminar seu curso de artes dramáticas. O tempo vai passando e ela não consegue um papel marcante na carreira, exceto onde ela contracena num teste com um cavalo, interpretado por um figurante, ao terminar a cena a insegurança se expressa no rosto decepcionado. Com poucos recursos, vai morar com Sam (Zita Hanrot), sua irmã mais nova, também atriz, que está em meio às gravações de um filme com pretensões maiores. Ela vive com Manuel (Bastien Bouillon) e o filho menor do casal (Octave Bossuet). Mona tem um olhar sombrio sobre a vida, cobiça como prioridade o lugar da mana, seu marido, a criança, e a posição social que leva, pois lhe falta o sucesso profissional, conjugal e financeiro. Sam é despojada e tem uma visão colorida do cotidiano, embora sua realidade seja controversa, ao apresentar algumas neuroses da infância, que são bem exploradas pela irmã antiética e manipuladora ao extremo.

O thriller tem o viés da reflexão sobre o conflito com tensões arrebatadoras do relacionamento e o vínculo no microcosmo familiar causados pela disputa de espaço, a terrível baixo estima da pseudovítima do sistema, no qual aflora sem piedade e funciona como um fator agressivo e perigoso de quem tem as faculdades mentais duvidosas e distante da lucidez, aparentemente. A temática é bem estruturada sobre a inveja, o ciúme, e a ambição é bem explorada e mostrada com alguma crueldade, como elementos de uma retórica de perda e rejeição pelo sangue frio da protagonista vazia e artificial. Eis uma mulher que tem na gélida relação da adversária por ela escolhida, que chega a enganar até a própria mãe (Hiam Abbass), que a vê como a filha certinha e por isto é a queridinha numa embalagem bonita, mas sem conteúdo e com um espantoso senso de manipulação, que conduz para o desenfreado artifício maquiavélico dos fins que justificam os meios.

A dupla de diretores cria uma realização dolorosa que traz uma insustentável leveza com sutileza pela intensidade de uma narrativa pela ótica da investigação psicológica, para mesclar situações presentes com perversidade, para retornar e compreender as razões do passado deste magnífico filme, mas em que está embutida uma melancolia que fisga o espectador com a crítica situação dentro de um contexto chocante e com os malefícios inerentes que irão fluir na tela de maneira inexorável pela reconstrução familiar buscada nos pequenos detalhes para uma amostragem que ganha tons de uma paranoia obsessiva. Há uma atmosfera equilibrada dos contrastes da liberdade e o medo da insignificância profissional pela jornada de aventuras de conquistas a qualquer preço com uma magia peculiar. Retrata com imparcialidade as fragilidades femininas e suas confusas idealizações e utopias indefinidas. Tudo contribui para a crise no processo fragmentado do esvaziamento amoroso e profissional. A essência da vida e a existência estigmatizada estão presentes, ainda que num momento de ilusória harmonia entre irmãs na busca da precária felicidade. A protagonista tenta superar as adversidades pela força da maldade e uma capacidade emocional que se esvai e se desequilibra, tendo em vista que por dentro está angustiada pelos transtornos diante da iminência do rompimento e a perda.

Carnívoras tem uma influência concreta e inarredável da temática profunda da família abordada pelo irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, não é à toa que são os coprodutores do longa. Os efeitos traumáticos pretéritos são conduzidos com grande desenvoltura pelos realizadores que direcionam para um desfecho pouco convencional, mas com as evidências de um presente constituído por conjunções psicológicas carregadas em sua saga, porém dá um tom da falsa justificativa dentro de um mosaico neste painel pontilhado por amarguras e situações emblemáticas que faz surgir um redemoinho assustador alucinatório que povoa o consciente de uma mulher obsessiva e frustrada, na farsa do carinho que nutre pela irmã bem-sucedida. Uma reflexão magistral sobre a condição humana e seus traumas existenciais da rivalidade fraterna que mergulha no sofrimento de uma inveja tresloucada, na solidão, e se escancara como resultado no desfecho desta perturbadora realização que desemboca em rupturas de insuperáveis hostilidades na catarse da tragicidade pela doentia mente subconsciente.

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