quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Mostra de Cinema São Paulo (Vera Sonha com o Mar)

 










Vera Sonha com o Mar

Vem do Kosovo coproduzido com a Macedônia do Norte e a Albânia o excelente drama familiar com fortes conotações sociais e algumas pitadas de suspense Vera Sonha com o Mar, em exibição on-line e presencial na 45ª. Mostra de Cinema de São Paulo. A direção é da promissora Kaltrina Krasniqi, em seu longa-metragem de estreia. Ela mora no Kosovo, sendo considerada especialista em mídia e trabalha com cinema, televisão e publicações on-line desde 2001. Formada em direção cinematográfica pela Universidade de Prishtina, também possui um mestrado pelo Instituto de Jornalismo e Comunicação em seu país. Tem em sua filmografia três curtas: Kanarinët e Dinë (2014) e Sarabande (2018). A bela trilha sonora foi composta pela dupla Petrit Çeku e Genc Salihu e o instigante roteiro teve a assinatura de Doruntina Basha.

A trama é um fascinante painel sobre a interação do núcleo familiar desconstruído para a contextualização com a comunidade e seu cotidiano inerente com reflexos dos aspectos de uma sociedade visceralmente machista. O enredo retrata de maneira profunda a trajetória de Vera (Teuta Ajdini – ótima atuação), viúva de um juiz renomado, logo após seu estranho suicídio que deverá ser guardado em segredo por sugestão de um colega magistrado ainda na ativa. Ela trabalha como intérprete de linguagem de sinais de meia-idade, e tem uma vida aparentemente bem resolvida, avó zelosa, além de ser uma mãe solidária com a filha que tenta a profissão de atriz no teatro. O desenrolar da narrativa aponta que sua tranquilidade trará transtornos e dissabores diante da perda trágica do marido. Começa a sofrer ameaças violentas de parentes distantes, como um primo que quer ficar com um imóvel no interior e tenta obrigá-la a assinar um termo, alegando que recebera como doação e, por consequência, direito à casa de sua família.

A cineasta tem méritos ao conduzir com equilíbrio e mãos fortes o drama, demonstrando talento pouco comum para uma neófita que esbanja inegáveis qualidades no enquadramento das cenas com um clímax bem dosado e no ponto certo. Aos poucos o filme vai mergulhando em caminhos sombrios de um esquema escuso que começa vir à tona. São segredos pretéritos do envolvimento do esposo em jogos ilegais e a relação próxima com agiotas e o submundo do crime com dívidas impagáveis em dinheiro, na qual aparece a referida casa como o grande estopim da discórdia por ser ofertada nas jogatinas como moeda de troca para pagamento. O cenário fica cada vez mais perigoso e o mundo da protagonista está prestes a desmoronar, diante da pressão psicológica, agressão física num supermercado, chantagem emocional sobre a honra manchada do suicida que será jogada na internet diante das ameaças por telefone e mensagens no celular, caso resista. O medo aumenta e o dilema do destino de seus familiares afloram ainda mais com um atentado criminoso à filha e um equivocado suposto sequestro da neta.

O drama retrata como subtema os reflexos de uma guerra civil no Kosovo que ainda se ressente de um passado que ceifou muitas vidas inocentes. Houve o conflito por questões étnicas e religiosas, tendo como principal motivo o pedido de independência dos kosovares, que começou em 5 de março de 1998, quando esta província situada na Iugoslávia, decidiu lutar pela sua independência ocorrida em 11 de junho de 1999. O resultado da guerra deixou cerca de 10 mil mortos e 740 mil albano-kosovares sem moradia. O ditador Milosevic só deixou o poder na Iugoslávia em outubro de 2000. A realizadora coloca tintas fortes no machismo imperante, no qual os homens dão pouca importância para os desejos e direitos das mulheres. São situações colocadas em xeque para um olhar atento sobre o preconceito através da crise de valores dos respectivos papéis ora contaminados pelos descaminhos do destino e suas frustrações. Os sonhos da protagonista em conhecer o mar servirão como metáfora de uma crise institucional que se torna um imenso pesadelo durante o desenrolar da precisa narrativa. Outra metáfora importante é a personagem representada pela filha que consegue finalmente um papel de destaque no teatro. Porém, seu destino na peça é ser enterrada viva, tal qual a realidade apresenta para ela e sua mãe naquela sociedade com seus tabus de uma reinante opressão para manter a subserviência da figura feminina.

Vera Sonha com o Mar é uma obra que aborda de forma clara e inequívoca os grandes preconceitos nesta luta da mulher por um espaço mais abrangente. A bofetada no rosto da filha pela mãe conjugada com a expulsão de casa pelo pai são revelações que comovem e dão brilho na história para constatar uma moral mesquinha. A luta de Vera para manter o patrimônio, mas que causará uma irresistível coação para entregar o imóvel é outro fato da prevalência tirânica. Um filme de reflexão na abordagem de uma sociedade autoritária dominada pelo vulnerável e contraditório macho alfa, que conduziram para situações e atitudes apresentadas por uma mostra de um passado contaminado por comportamentos deploráveis de alguns falsos moralistas de toga. O epílogo, todavia, dará um facho de luz de esperança para restabelecer a dignidade e um certo otimismo através do vídeo da filha que prestará um tributo à mãe numa alegoria redentora, quiçá, de novos tempos do empoderamento feminino. A perseverança maternal fica estampada neste filme seco, direto, e sem grandes exercícios pirotécnicos. Contagia na essência cinematográfica pelo simbolismo da arrogância moral diante da ausência de um vínculo mais afetivo paternal na relação familiar pelos fatos que se sucedem numa atmosfera criada em torno de uma sociedade cínica com seus costumes ultrapassados. Comove o espectador, perturba pela boa narrativa das idiossincrasias dos personagens envolvidos e suas contradições que levam para uma fabulosa realização pouco comum nesta temática.

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