Ausência
Um dos filmes mais aguardados, mas que pouco correspondeu à grande expectativa depositada, é o discutível Ausência pelas suas incongruências, em exibição on-line e presencial na 45ª. Mostra de Cinema de São Paulo, com direção e roteiro de Ali Mosaffa. O cineasta tem em sua filmografia três curtas e dois longas: Portrait of a Lady Faraway (2005) e O Último Passo (2012), que foi exibido na 36ª. Mostra de SP. Começou a carreira no cinema como ator, onde é bem melhor que dirigindo, no início dos anos 1990, destacando-se em filmes como Leila (1997), de Dariush Mehrjui, O Passado (2013), de Asghar Farhadi, Que Horas São no Seu Mundo? (2014), de Safi Yazdanian, e A Plantação de Laranjas (2018), de Arash Lahooti. A fotografia de Massoud Salami foi o ponto alto da obra, aos captar belas imagens em Praga com seus monumentos, estátuas, e um pitoresco cotidiano de seus habitantes, usos e costumes, remetendo para seu filho maior, o cultuado escritor Franz Kafka (03.07.1883/03.06.1924), que ali viveu e escreveu obras memoráveis.
Diante de todas as dificuldades de filmar no Irã, Mosaffa realizou este drama sociopolítico em coprodução com a República Tcheca e a Eslováquia, para abordar uma história aparentemente simples no seu desenrolar. Transita para o romance, especula no thriller policial e cutuca na política, mas fica distante da genuína essência cinematográfica do gênero enfocado. Rouzbeh (Ali Mosaffa- desta vez teve uma pálida interpretação) é um jornalista iraniano separado, que tem um filho pré-adolescente, viaja de Teerã até Praga, para desvendar o passado do pai em uma biografia que pretende escrever num livro. Sabe apenas que ele é um expatriado comunista que viveu na extinta Tchecoslováquia, logo após o Golpe de Estado no Irã, em 1953. A cena inicial mostra uma pessoa dando comida para os pombos numa janela que apresenta um perigo iminente de queda. O corte da cena é retomado com o protagonista no interior do apartamento onde o pai morou há 50 anos. O surgimento de uma investigadora da polícia destacada para acompanhar o caso do acidente, ou tentativa de suicídio, envolvendo um homem que vivia no mesmo local, que se chamava Vladimir, e teria desabado da mesma fatídica janela. No diálogo entre os dois, descobre que o pai da vítima também tinha origem iraniana e o mesmo nome do seu próprio genitor.
O longa-metragem retrata uma sequência de contradições e escolhas convencionais na trajetória amorosa e um vínculo estranho com uma outra personagem do suposto meio-irmão, fruto de uma relação extraconjugal do pai, que agora vive no seu país de origem com dificuldades de cognição. Não importa os rumos tomados da trama sugerida, ela irá transformar os aspectos psicológicos do protagonista e seus relacionamentos pessoais, bem como a dinâmica da vida de cada um deles, direta ou indiretamente. Rouzbeh começa a ter sobressaltos e associa o imbróglio à história familiar que ele desconhecia completamente, tomando rumo diferente da sua pesquisa com o intuito de obter subsídios em bibliotecas, para uma investigação em sintonia com a policial. Surgem questões morais e éticas no caminho, como desligar os aparelhos no hospital do meio-irmão com morte cerebral para consumar a eutanásia. Assina, depois rasga o termo de autorização, por princípios e valores que lhe corroem a consciência. A liberdade individual teria pouco valor e não poderia ser executada como uma livre expressão de vontade de uma pessoa que recém conheceu. Poderiam ficar como ameaças de verdades absolutas, o que lhe causaria supostos traumas indeléveis pela sua atitude, talvez impensada e afoita.
O filme tem excessos de flashbacks, o que atrapalha mais do que soluciona com imagens pretéritas, uma mescla de realidade com a infância do jornalista em família num passado distante. O roteiro é confuso e com vários enigmas que irão se solucionar abruptamente com o desfecho no surgimento de uma meia-irmã da vítima no sorumbático apartamento, que assume o papel de também personagem da realização. O cineasta, possível e bem provavelmente, se inspirou às avessas para escrever o desalinhado roteiro pela burocracia e os enigmas encontrados no best-seller O Processo, de Kafka, diante do enigmatismo e o entulho da ineficácia rígida desenvolvido para resolver dificuldades com soluções nada pragmáticas e muito prolixas, optando pela inverossimilhança atroz.
O protagonista ao assumir a personalidade do meio-irmão, corta a barba, vai à janela como buscar alguma resposta escondida no passado. Há uma flagrante transformação forçada e desnecessária para a fluidez da trama. Embora os equívocos apontados, a obra não chega a ser invalidada totalmente. Salvam-se a fotografia, partes do roteiro como a responsabilidade ética e o arrependimento, bem como a boa intenção em deixar a herança para quem realmente de direito, mas esbarra e se escancara na distância entre eles naquele espaço a ser preenchido pelo imenso vazio de encontros fortuitos afetivos, deixando um legado para se entender a complexidade humana. O foco do enredo de Ausência não é a vítima e nem a dolorosa perda da vida, porém os dramas pessoais irreparáveis pelo olhar sombrio e a despedida melancólica com suas consequências e cicatrizes que permanecerão abertas pelos fatos fragmentados ocorridos por circunstâncias involuntárias pouco esclarecidas.
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