Tributo a Fellini
Nanni Moretti é um dos mais importantes e competentes diretores
da Itália. Flutua entre os dramas familiares, religiosos, políticos e sociais como
O Crocodilo (2006), quando abordou o
ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi, que teve sua imagem abalada sem perdão;
questionou a escolha do papa
Moretti voltou em grande estilo em sua realização anterior, Tre Piani (2021), ao retratar três famílias que vivem no mesmo condomínio de classe média alta, e suas vidas acabam ardilosamente se entrelaçando. Embora pudesse pelas circunstâncias conduzir a trama para um filme menor com demagogias baratas e lacrimejantes, mas habilmente foge das armadilhas piegas e faz uma obra espetacular com cenas marcantes, como dos casais dançando na rua. Agora faz uma justa e merecida homenagem ao mestre conterrâneo Federico Fellini ao realizar um remake de Oito e Meio (1963). Além de assinar o disperso roteiro em parceria com Francesca Marciano, Federica Pontremoli e Valia Santella, também atua como protagonista na comédia de costumes italiana O Melhor Está Por Vir, coproduzida com a França. O longa acompanha o ultrapassado cineasta Giovanni (Moretti), que tenta terminar um filme de época, ambientado em Roma, em 1956, sobre os comunistas italianos, mas enfrenta uma série de obstáculos. Está sempre no limite de suas forças com o contumaz estresse para alcançar seu objetivo de acreditar em algo melhor para sua carreira e vida pessoal conturbada com a esposa Paola (Margherita Buy), uma produtora de cinema que ao mesmo tempo divide as atenções com outra produção para um jovem promissor diretor. Ou seja, dois filmes dentro de um terceiro principal..
Embora faça uma reflexão amargurada com algum humor irônico, o realizador tenta nesta obra retratar uma concepção sobre a arte com o viés da abordagem das ideologias que cercam a sociedade contemporânea, como o comunismo e suas linhas da praticidade e as inconveniências políticas históricas. As diversas contradições são apontadas pelos seus erros, como os comunistas italianos oriundos da extinta União Soviética. O personagem central assume uma postura de desvairado ao encarnar as memórias e os incômodos que o atormentam. Diante das recorrentes provocações rasteiras de uma esquerda em choque com o mercado cinematográfico e os rumos com os novos talentos que surgem e a recepção de um novo público de espectadores. Estão presentes os empecilhos profissionais e pessoais para concluir seu novo filme de esperança. Acredita sinceramente que deve levar para a telona a história do Partido Comunista da Itália, bem como ter perdido a grande oportunidade de ter rompido com os tiranos russos para obter a verdadeira liberdade e o caminho da independência. Porém, ninguém mais se lembra desses acontecimentos, tendo em vista que o mundo mudou e a maneira de fazer uma película sobre aquela época também soçobrou. Pensa que está fazendo uma obra política, mas a atriz entende que ele está realizando é um filme de amor, possivelmente ela esteja com a razão.
O longa de Moretti peca por se tornar chato e repetitivo. Ele que sempre estrelou seus filmes, desta vez exagerou, ao usar e abusar do protagonismo histriônico que leva o espectador à exaustão. Nem como temática principal, sequer como construção de personagens, o filme não consegue decolar, tornando-se enfadonho e arrastado até o desfecho ufanista. A história deveria ter um frescor próprio pela tentativa de ser atual neste recorte específico na representação de um artista maniático no decorrer de seu processo de criação. Há uma tentativa válida de explicar as cenas musicais, deslocadas e atravessadas no enredo. Comportamento este que não está na criação do personagem, mas nas incursões dos rumos da história maçante, onde o circo húngaro poderia ter um aproveitamento melhor, mesmo que haja uma tentativa pouco convincente de colocá-lo no enredo através de uma situação de mudanças e conflitos na Revolução da Hungria com a ocupação soviética. Os rituais familiares com a maneira de expressar opiniões, afastam a esposa, que não quer mais continuar com a relação pelos episódios de picuinhas do marido em crise profissional, de ideias e vida amorosa dividida pelos conflitos do cotidiano. Já a filha prefere namorar em segredo um diplomata idoso polonês.
A comédia apresenta, apesar de ter dificuldade de aceitar que as coisas andam rápido, o personagem central com uma tendência de abraçar as novidades e mudar seus caminhos e o destino que o cercam quando observa os novos rumos. Apesar de ser uma contradição de comportamento e de ideais que nem ele acredita, mas que percebe e reconhece os novos horizontes existenciais batendo à porta. Nas variações da visão artística estão presentes as concessões que precisam ser feitas para que haja o financiamento e a distribuição, quando Giovanni fica inconformado numa reunião com a Netflix ao buscar financiamento para seu projeto de filme. Os executivos asseveram que "nossos conteúdos são vistos em 190 países, 190 países, 190 países”, e que sua produção não serve para o streaming. Mas há uma esperança que vem dos cofres da Ásia, após fracassar com a França. Na crise criativa proposta e nas escolhas de filmes dentro de um outro, a comédia se refere diretamente a Oito e Meio. Também há citações aos longas Caçada Humana (1966), de Arthur Penn e Um Grito de Revolta (1972), dos Irmãos Taviani, nas relações amorosas e clichês abundantes. Apesar das boas intenções de Moretti para uma reflexão sobre esquecer ideias retrógadas e dar alvíssaras para um futuro melhor, radiante e politicamente correto, O Melhor Está Por Vir não correspondeu à expectativa. Um mosaico construído por uma gama enorme de personagens em ciclos de amor, política, frustrações, arrependimentos, renovações e desajustes pelas decepções familiares e profissionais. Eis um tributo a Fellini que merecia ser mais meritório, mas que ficou devendo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário