Traumas da Infância
O drama familiar com pitadas de bom suspense tem como título
original Orpheline (Órfã), do diretor
e roteirista Arnaud des Pallières, reconhecido pelo instigante Michael Kohlhaas- Justiça e Honra (2013).
Foi batizado no Brasil com a sugestiva denominação de Faces de Uma Mulher e se caracteriza pela intensidade de uma
narrativa pela ótica da investigação psicológica, ao partir do fim do enredo
para mesclar situações presentes, para retornar e compreender as razões do passado.
Um realizador com um olhar profundo sobre as injustiças da sociedade em relação
à mulher, seus traumas e sua condição de um ser humano completamente
desassistido pela forma brutal pela qual a vida conduz o destino, através de um
roteiro complexo e hábil com muita sensibilidade em que quatro personagens
femininas são fundidas em apenas uma única sofrida protagonista.
A trama é bem estruturada de causas e efeitos como consequências
para criar o entrelaçado roteiro de Des Pallières e Christelle Berthevas repleto
de armadilhas para fisgar e prender o espectador, que tem como referência
estética o longa Não Estou Lá (2007),
de Todd Haynes. Kiki (Vega Cuzytek) é a garotinha traumatizada na infância que
dá o mote causador da história, passa pela fase da adolescência e o
despojamento agressivo (Solène Rigot), que será na fase adulta Karine (a ótima
intérprete Adèle Haenel, de O Homem Que
Elas Amavam Demais) e (a bela e sensual atriz Adèle Exarchopoulos, de Azul é a Cor Mais Quente) que leva um
cotidiano monótono trabalhando como professora em uma escola primária, enquanto
pensa em ter um filho com o apaixonado namorado, até a polícia prendê-la. Eis
um elenco homogêneo que conta ainda com a personagem Tara (Gemma Arterton, em
grande estilo).
O filme tem um desenrolar nada linear que tenta confundir a
plateia, como se fossem personagens diferentes numa representação multifacetada.
Mas aos poucos o enredo dá voltas até chegar à menina órfã e suas vidas
múltiplas com outros nomes e sobrevivendo dos fantasmas do passado de
violências e abusos pelas atitudes autodestrutivas diante da inexistência de um
objetivo maior de vida. O nó vai desatando e clareia pelas imagens e diálogos o
futuro da personagem central, que tem uma forte erotização de seus relacionamentos
sem amarras e preconceitos, está bem condensado num estratégico apelo sexual sem
estereótipos como um dos ingredientes bem condimentados. Há profundidade na difícil
transição da conturbada infância para adolescência até esbarrar no mundo adulto
e os sonhos perturbados, contrastando com a fuga para a Romênia ditatorial,
deixando para trás uma França tida como berço da civilização cultural, mas que
trata mal seus compatriotas marginalizados circunstancialmente.
O cineasta retrata com imparcialidade as fragilidades femininas
e suas confusas idealizações e utopias indefinidas. Há muitas dificuldades de
se reencontrar, numa posição beirando a ausência, como se vê na cena da
infância da criança com sérios problemas emocionais e há apenas uma vaga
indagação sobre o distanciamento da realidade e a culpa que a persegue, sendo abordados
com equilíbrio, como decorrências do fato marcante diante do inesperado choque
frontal com o surgimento de outras pessoas envolvidas no contexto como um
entrave penoso pela hostilidade. Tudo contribui para a crise no processo perturbador
do esvaziamento amoroso. A essência e a existência estão presentes, ainda que
num momento de falsa harmonia entre o casal que busca a felicidade. A
protagonista tenta superar as adversidades pela força de vontade e uma
capacidade emocional que se esvai e se desequilibra, tendo em vista que por
dentro está estraçalhada pelas lembranças e os transtornos diante da iminência
do rompimento.
Faces de Uma Mulher
tem uma influência concreta e inarredável da temática profunda do microcosmo
familiar abordado pelo irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, como nos excelentes
dramas O Filho (2002), A Criança (2005) e O Silêncio de Lorna (2008). Os efeitos traumáticos pretéritos são
conduzidos com grande desenvoltura pelo realizador que direciona para um
desfecho inusitado, mas com as evidências de um presente constituído por
conjunções psicológicas carregadas em sua saga, porém dá um tom de
justificativa dentro de um mosaico deste painel pontilhado por amarguras e situações
emblemáticas que faz surgir um redemoinho assustador alucinatório que povoa a
mente de uma mãe despreparada, embora todo o carinho maternal que nutre pelo
recém-nascido. Uma reflexão magistral sobre a condição humana e seus traumas
existenciais que mergulha no sofrimento, na tristeza, na solidão, e se
escancara como resultado final neste espetacular drama francês que desemboca em
rupturas com a redenção dolorida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário