quarta-feira, 7 de junho de 2017

Faces de Uma Mulher


Traumas da Infância

O drama familiar com pitadas de bom suspense tem como título original Orpheline (Órfã), do diretor e roteirista Arnaud des Pallières, reconhecido pelo instigante Michael Kohlhaas- Justiça e Honra (2013). Foi batizado no Brasil com a sugestiva denominação de Faces de Uma Mulher e se caracteriza pela intensidade de uma narrativa pela ótica da investigação psicológica, ao partir do fim do enredo para mesclar situações presentes, para retornar e compreender as razões do passado. Um realizador com um olhar profundo sobre as injustiças da sociedade em relação à mulher, seus traumas e sua condição de um ser humano completamente desassistido pela forma brutal pela qual a vida conduz o destino, através de um roteiro complexo e hábil com muita sensibilidade em que quatro personagens femininas são fundidas em apenas uma única sofrida protagonista.

A trama é bem estruturada de causas e efeitos como consequências para criar o entrelaçado roteiro de Des Pallières e Christelle Berthevas repleto de armadilhas para fisgar e prender o espectador, que tem como referência estética o longa Não Estou Lá (2007), de Todd Haynes. Kiki (Vega Cuzytek) é a garotinha traumatizada na infância que dá o mote causador da história, passa pela fase da adolescência e o despojamento agressivo (Solène Rigot), que será na fase adulta Karine (a ótima intérprete Adèle Haenel, de O Homem Que Elas Amavam Demais) e (a bela e sensual atriz Adèle Exarchopoulos, de Azul é a Cor Mais Quente) que leva um cotidiano monótono trabalhando como professora em uma escola primária, enquanto pensa em ter um filho com o apaixonado namorado, até a polícia prendê-la. Eis um elenco homogêneo que conta ainda com a personagem Tara (Gemma Arterton, em grande estilo).

O filme tem um desenrolar nada linear que tenta confundir a plateia, como se fossem personagens diferentes numa representação multifacetada. Mas aos poucos o enredo dá voltas até chegar à menina órfã e suas vidas múltiplas com outros nomes e sobrevivendo dos fantasmas do passado de violências e abusos pelas atitudes autodestrutivas diante da inexistência de um objetivo maior de vida. O nó vai desatando e clareia pelas imagens e diálogos o futuro da personagem central, que tem uma forte erotização de seus relacionamentos sem amarras e preconceitos, está bem condensado num estratégico apelo sexual sem estereótipos como um dos ingredientes bem condimentados. Há profundidade na difícil transição da conturbada infância para adolescência até esbarrar no mundo adulto e os sonhos perturbados, contrastando com a fuga para a Romênia ditatorial, deixando para trás uma França tida como berço da civilização cultural, mas que trata mal seus compatriotas marginalizados circunstancialmente.

O cineasta retrata com imparcialidade as fragilidades femininas e suas confusas idealizações e utopias indefinidas. Há muitas dificuldades de se reencontrar, numa posição beirando a ausência, como se vê na cena da infância da criança com sérios problemas emocionais e há apenas uma vaga indagação sobre o distanciamento da realidade e a culpa que a persegue, sendo abordados com equilíbrio, como decorrências do fato marcante diante do inesperado choque frontal com o surgimento de outras pessoas envolvidas no contexto como um entrave penoso pela hostilidade. Tudo contribui para a crise no processo perturbador do esvaziamento amoroso. A essência e a existência estão presentes, ainda que num momento de falsa harmonia entre o casal que busca a felicidade. A protagonista tenta superar as adversidades pela força de vontade e uma capacidade emocional que se esvai e se desequilibra, tendo em vista que por dentro está estraçalhada pelas lembranças e os transtornos diante da iminência do rompimento.

Faces de Uma Mulher tem uma influência concreta e inarredável da temática profunda do microcosmo familiar abordado pelo irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, como nos excelentes dramas O Filho (2002), A Criança (2005) e O Silêncio de Lorna (2008). Os efeitos traumáticos pretéritos são conduzidos com grande desenvoltura pelo realizador que direciona para um desfecho inusitado, mas com as evidências de um presente constituído por conjunções psicológicas carregadas em sua saga, porém dá um tom de justificativa dentro de um mosaico deste painel pontilhado por amarguras e situações emblemáticas que faz surgir um redemoinho assustador alucinatório que povoa a mente de uma mãe despreparada, embora todo o carinho maternal que nutre pelo recém-nascido. Uma reflexão magistral sobre a condição humana e seus traumas existenciais que mergulha no sofrimento, na tristeza, na solidão, e se escancara como resultado final neste espetacular drama francês que desemboca em rupturas com a redenção dolorida.

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