sexta-feira, 19 de maio de 2017

O Cidadão Ilustre


A Discórdia

Novamente vem da Argentina, desta vez em coprodução com a Espanha, um filme com uma temática aparentemente simples, mas enganosa, diante da boa reflexão da privacidade e das relações em sociedade, que faz desta obra quase uma obrigação aos cinéfilos em assisti-la, deixando o enredo correr, para um desfecho inusitado que chegará à proposta dos seus realizadores, tendo em vista a complexidade dos seres humanos pelo paradoxo da harmonia com o conflito e os valores que são dados às vidas, aos interesses particulares e às amizades. A dupla de diretores Mariano Cohn e Gastón Duprat, a mesma do excelente O Homem ao Lado (2009), retorna com uma outra instigante comédia dramática, O Cidadão Ilustre, digno representante da Argentina na disputa por uma vaga no Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano, trouxe ainda o prêmio Goya de melhor filme ibero-americano, láurea máxima da indústria cinematográfica espanhola.

Já se tornaram triviais as produções do país vizinho terem características muito peculiares nas suas abordagens como a sutileza e a sensibilidade, com abordagens discutidas buscando como mote a simplicidade, deixando os grandes cenários em segundo plano, dando-se mais importância para o roteiro e as conclusões filosóficas de vida e das relações humanas tangenciadas pelo clima hostil ou pela solidariedade, como visto nas realizações de Carlos Sorín em Histórias Mínimas (2002), O Cão (2004) e A Janela (2008); Pablo Trapero com Família Rodante (2004) Nascido e Criado (2006) e Abutres (2008); Lucrécia Martel com a obra-prima O Pântano (2001); Marcelo Piñeyro no belíssimo Kamchatka (2002); Paula Hernández no comovente Chuva (2008), e outros tantos cineastas comprometidos com o cotidiano singelo, muitas vezes invadido ou perturbado por problemas familiares, ou pela crise econômica que ainda perdura.

O Cidadão Ilustre é mais uma dessas produções marcantes na essência que chega às telas brasileiras, numa trama em que Daniel Mantovani é um escritor argentino que vence o Prêmio Nobel da Literatura, bem-sucedido na Europa, vive há 40 anos em Barcelona. Logo que a mãe faleceu, o jovem de apenas 20 anos deixou a província de Salas, distante mais de 700 quilômetros de Buenos Aires. O retorno do intelectual se dá pelo convite da prefeitura da tacanha cidade natal, que fará várias homenagens ao seu filho famoso, entre elas uma medalha e uma estátua na praça. Vencedor do último Festival de Veneza de melhor ator, o eclético Oscar Martinez que brilhou em Ninho Vazio (2008), Relatos Selvagens (2014) e Paulina (2015), interpreta magistralmente o personagem central que passará uma semana de prazeres e alguns inconvenientes, como dissabores bem hostis, uma boa dose de violência e muitos ressentimentos de seus conterrâneos, que o veem paradoxalmente em um traidor que se utiliza de figuras folclóricas dali para inspirar seus personagens fictícios nos livros para adquirir fama e dinheiro.

Cohn e Duprat retratam com um certo cinismo mesclado de humor os rancores, os ciúmes e uma pitada de amargura na volta do consagrado romancista vaidoso avesso às bajulações que deu asas à imaginação ao residir no exterior, criando best-sellers com fatos pitorescos de Salas. Por tudo isto é visto como um estranho no ninho pela maioria dos habitantes daquele lugarejo distante que parou no tempo. Escrever bem longe era sua meta que deu certo, porém não tinha noção dos contratempos que poderia encontrar, como ser usado pelo prefeito para angariar simpatia e votos nas próximas eleições, tem que desfilar ao lado rainha da cidade num carro de bombeiros seguido por um cortejo de veículos. Recebe inúmeros presentes, convites para almoços e jantares, participa como jurado de uma Mostra de Pintura de artistas locais, e até um pedido de uma cadeira de rodas especial, de um pai para um filho paraplégico. Ganha desafetos em meio às homenagens, como de um velho amigo que casou com sua ex-namorada, além de envolver-se com uma garota que jamais pensara de quem era filha. São encrencas diárias que terá que saber lidar neste retrato panorâmico sobre os infortúnios de uma celebridade que terá novos subsídios para escrever seu inspirado romance definitivo, que dá nome ao título do longa no epílogo redentor.

A comédia apresenta de forma direta com um tempero agridoce e sem rodeios a rotina dos dias da viagem de Mantovani, ao observar a paisagem que se revela ouvindo fragmentos de situações excêntricos que o rodeiam. Era para ser um passeio de reminiscências, virou um dilema nefasto no enxuto e demolidor roteiro de Andrés Duprat, ao reviver emoções de velhos fantasmas escondidos nas fraquezas das amizades e dos amores pretéritos que ficaram submersos por décadas. Porém o jovem recepcionista do acanhado hotel em que se hospeda, no gesto de alcançar os manuscritos literários ao seu ídolo, simboliza a continuação e a esperança de quem poderá também chegar ao estrelato, por coincidência tem a mesma idade do escritor quando deixou a província. Uma sutil analogia sarcástica à sociedade dividida entre o menosprezo à sofisticação pomposa europeia com um entusiasmo excessivo pelo arcaico nacionalismo rudimentar com repúdio ao estrangeirismo nesta narrativa linear e emblemática sobre o cotidiano nesta realização imperdível pela singularidade, não só pelas fantasias e sonhos contrapondo-se com um contexto amargo, mas com uma brecha para se buscar a dignidade no conflito de fatores como o rancor, e no embate de duas civilizações opostas neste tema universal.

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