quarta-feira, 24 de julho de 2019

O Bar Luva Dourada



Crimes Hediondos

O diretor, roteirista e produtor alemão de ascendência turca Fatih Akin é considerado um dos principais expoentes do movimento cinematográfico contemporâneo da Alemanha. Tem brilho próprio, assim como seu conterrâneo Christian Petzold, visto recentemente no elogiado Em Trânsito (2018). O cineasta tem em sua filmografia realizações rigorosamente instigantes sobre imigração. Com o notável Contra a Parede (2004), ganhou o Urso de Ouro em Berlim; foi sucesso de público e crítica com o deslumbrante documentário musical Atravessando a Ponte- O Som de Istambul (2005); com sua possível obra-prima, Do Outro Lado (2007), obteve o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes; já na elogiável comédia dramática escrachada Soul Kitchen (2009) abocanhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza; obteve a láurea de melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro por Em Pedaços (2017), que retrata a morte por explosão de um ex-traficante e seu filho depois de cumprir pena e tem na arrasada mãe e ex-companheira a busca incessante de justiça para os crimes de seus familiares.

Depois de demonstrar toda sua sensibilidade e vigor estético inovador em suas obras anteriores, Akin retorna com o contundente O Bar Luva Dourada para se aprofundar nas mazelas decorrentes das feridas abertas de uma sociedade ainda traumatizada pelos efeitos do nazismo. Envolve e perturba o espectador com este drama mesclado com suspense, adaptado do livro de Heinz Strunk sobre fatos reais praticados por um serial killer nos anos de 1970, no boêmio bairro St. Pauli da cidade de Hamburgo. Fritz Honka (Jonas Dassler) é um homem fracassado, horrendo, de rosto deformado, que perambula pelas ruas ao redor de outras criaturas perdidas, sem que ninguém desconfie ser ele o assassino em série. O protagonista persegue mulheres mais velhas e solitárias que conhece no seu bar favorito Zum Goldenen Handschuh, que dá nome ao filme, para atrair prostitutas idosas à procura de aconchego e bebidas, levá-las para o sótão de seu claustrofóbico apartamento. Lá, ele mata e esquarteja as vítimas, guarda os pedaços dentro das paredes, mas quando alguém reclama do fedor, atribui o mau cheiro à culinária de vizinhos gregos e disfarça com perfumes o local para afastar suspeita. Os jornais começam a noticiar os desaparecimentos sucessivos, o que irá causar medo e apavorar a comunidade em uma das mais complexas investigações de crimes hediondos ali presenciados.

Uma realização ao melhor estilo da escola alemã, através de um roteiro dinâmico por uma narrativa sem subterfúgios e emblemática sobre o cotidiano simples de pessoas sem destinos e ignoradas por serem excluídas da sociedade de consumo, onde somente o cigarro e as grandes bebedeiras irão confortar aquelas almas penadas e sofredoras. Com cortes certeiros e precisos, sem concessões para o espectador num realismo brutal, em um tom seco e direto com artimanhas adequadas, retrata um painel do flagelo humano decorrente das angústias políticas contemporâneas de um universo de dúvidas e aflições constantes. Filmado em dois ambientes melancólicos: o bar boêmio e a residência do psicopata. No estabelecimento há brigas constantes na penumbra com o fundo musical tocando canções entristecidas, com frequentadores contumazes bebendo no balcão sob o embalo da trilha sonora fabulosa que, na primeira cena, ouve-se “Never On Sunday” (Nunca aos Domingos), do filme grego de 1960 de Jules Dassin, tendo a música de mesmo nome composta por Manos Hadjidakis e ganhadora do Oscar de Melhor Canção Original. Há algumas lamúrias de personagens desencontrados em meio a discussões mais acirradas com confissões sobre o passado de uma prostituta queixosa de sua profissão no fim da Segunda Guerra Mundial. Ou ainda, o olhar atônito do esquisito ex-soldado que lutou pelo seu país e agora apresenta sequelas físicas e psicológicas que o distancia de um ser humano com lucidez de raciocínio lógico. Já no apartamento imundo repleto de bonecas e com mulheres nuas decorando as paredes para satisfazer as fantasias sexuais do homem impotente. O sangue em abundância é um ingrediente de marca registrada proveniente da violência explícita praticada por Honka, uma espécie de Jack, O Estripador, na versão alemã.

Um capítulo à parte é a antológica interpretação do jovem ator galã Jonas Dassler, de 23 anos, completamente irreconhecível pelos efeitos da maquiagem transformadora com uso de próteses, na pele do personagem central que conduz a trama pelo marcante caminhar encurvado nas costas, ao melhor estilo do célebre personagem francês Corcunda de Notre Dame. Segura até o desfecho inusitado com seu olhar atemorizante em um enredo recheado de crueldade que deriva para um cinema frenético de resultado fantástico. Quando solta seus guinchos de insatisfação e loucura plena de um ser que não se satisfaz com as mulheres, vem à lembrança os gritos semelhantes de Hitler na sua insensata e tresloucada busca animalesca do domínio mundial, em uma analogia metafórica ao velho ditador nazista de uma sociedade doentia ainda impactada pelo passado. Paradoxalmente o personagem se apresenta como filho de um comunista preso no campo de concentração, que de varredor de uma fábrica passa a vigilante no novo emprego, estufa seu ego com a roupa que dará ostentação e orgulho de poder como evidências reveladoras.

O Bar Luva Dourada é uma singular realização sobre os seres humanos destroçados pelo tempo, em uma exemplar reflexão sobre a irracionalidade bestial neste painel arrebatador pelo olhar questionador de um realizador sobre as fragilidades humanas. O drama não cai na caricatura fácil e nem no maniqueísmo contumaz de algumas realizações pouco consistentes. Causou algum desconforto na apresentação do Festival de Berlim, em fevereiro de 2019, diante da tensão e da intensidade elaboradas com alguma dosagem de exageros que poderão causar náuseas em pessoas mais suscetíveis de estômagos sensíveis. As construções de personagens psicologicamente derrotados na vida e em situações que beira o abismo estão bem alicerçadas por uma direção autoral magnífica, através de uma forte complexidade dos detalhes pelas dores que carregam de traumas da rejeição ao prazer, da perda da dignidade e da piedade como elementos que afloram pelos métodos violentos dos impulsos doentios sem freios. São reflexos de uma sociedade de invisíveis marginalizados no refúgio do bar contrapondo com os dois jovens personagens intrusos representantes da casta burguesa. Contextualizado dentro de um clímax embrutecido por um panorama sombrio oriundo desde o pós-guerra, em que a selvageria impacta e devasta pela solidão com lembranças pretéritas nefandas. Desde já, insere-se entre os 10 melhores filmes do ano.

Nenhum comentário: