Crimes Hediondos
O diretor, roteirista e produtor alemão de ascendência turca
Fatih Akin é considerado um dos principais expoentes do movimento
cinematográfico contemporâneo da Alemanha. Tem brilho próprio, assim como seu
conterrâneo Christian Petzold, visto recentemente no elogiado Em Trânsito (2018). O cineasta tem em sua filmografia realizações rigorosamente instigantes
sobre imigração. Com o notável Contra a
Parede (2004), ganhou o Urso de Ouro em Berlim; foi sucesso de público e crítica
com o deslumbrante documentário musical Atravessando
a Ponte- O Som de Istambul (2005); com sua possível obra-prima, Do Outro Lado (2007), obteve o prêmio de
melhor roteiro no Festival de Cannes; já na elogiável comédia dramática
escrachada Soul Kitchen (2009)
abocanhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza; obteve a láurea de
melhor filme estrangeiro no Globo de Ouro por Em Pedaços (2017), que retrata a morte por explosão de um
ex-traficante e seu filho depois de cumprir pena e tem na arrasada mãe e
ex-companheira a busca incessante de justiça para os crimes de seus familiares.
Depois de demonstrar toda sua sensibilidade e vigor estético
inovador em suas obras anteriores, Akin retorna com o contundente O Bar Luva Dourada para se aprofundar nas
mazelas decorrentes das feridas abertas de uma sociedade ainda traumatizada
pelos efeitos do nazismo. Envolve e perturba o espectador com este drama
mesclado com suspense, adaptado do livro de Heinz Strunk sobre fatos reais praticados
por um serial killer nos anos de 1970,
no boêmio bairro St. Pauli da cidade de Hamburgo. Fritz Honka (Jonas Dassler) é
um homem fracassado, horrendo, de rosto deformado, que perambula pelas ruas ao
redor de outras criaturas perdidas, sem que ninguém desconfie ser ele o assassino
em série. O
protagonista persegue mulheres mais velhas e solitárias que conhece no seu bar
favorito Zum Goldenen Handschuh, que dá nome ao filme, para atrair prostitutas
idosas à procura de aconchego e bebidas, levá-las para o sótão de seu claustrofóbico
apartamento. Lá, ele mata e esquarteja as vítimas, guarda os pedaços dentro das
paredes, mas quando alguém reclama do fedor, atribui o mau cheiro à culinária
de vizinhos gregos e disfarça com perfumes o local para afastar suspeita. Os jornais
começam a noticiar os desaparecimentos sucessivos, o que irá causar medo e apavorar
a comunidade em uma das mais complexas investigações de crimes hediondos ali presenciados.
Uma realização ao melhor estilo da escola alemã, através de
um roteiro dinâmico por uma narrativa sem subterfúgios e emblemática sobre o
cotidiano simples de pessoas sem destinos e ignoradas por serem excluídas da
sociedade de consumo, onde somente o cigarro e as grandes bebedeiras irão
confortar aquelas almas penadas e sofredoras. Com cortes certeiros e precisos, sem
concessões para o espectador num realismo brutal, em um tom seco e direto com
artimanhas adequadas, retrata um painel do flagelo humano decorrente das
angústias políticas contemporâneas de um universo de dúvidas e aflições constantes.
Filmado em dois ambientes melancólicos: o bar boêmio e a residência do psicopata.
No estabelecimento há brigas constantes na penumbra com o fundo musical tocando
canções entristecidas, com frequentadores contumazes bebendo no balcão sob o
embalo da trilha sonora fabulosa que, na primeira cena, ouve-se “Never On
Sunday” (Nunca aos Domingos), do filme grego de 1960 de Jules Dassin, tendo a
música de mesmo nome composta por Manos Hadjidakis e ganhadora do Oscar de
Melhor Canção Original. Há algumas lamúrias de personagens desencontrados em
meio a discussões mais acirradas com confissões sobre o passado de uma
prostituta queixosa de sua profissão no fim da Segunda Guerra Mundial. Ou ainda,
o olhar atônito do esquisito ex-soldado que lutou pelo seu país e agora
apresenta sequelas físicas e psicológicas que o distancia de um ser humano com
lucidez de raciocínio lógico. Já no apartamento imundo repleto de bonecas e com
mulheres nuas decorando as paredes para satisfazer as fantasias sexuais do
homem impotente. O sangue em abundância é um ingrediente de marca registrada
proveniente da violência explícita praticada por Honka, uma espécie de Jack, O Estripador, na versão alemã.
Um capítulo à parte é a antológica interpretação do jovem
ator galã Jonas Dassler, de 23 anos, completamente irreconhecível pelos efeitos
da maquiagem transformadora com uso de próteses, na pele do personagem central que
conduz a trama pelo marcante caminhar encurvado nas costas, ao melhor estilo do
célebre personagem francês Corcunda de
Notre Dame. Segura até o desfecho inusitado com seu olhar atemorizante em
um enredo recheado de crueldade que deriva para um cinema frenético de
resultado fantástico. Quando solta seus guinchos de insatisfação e loucura
plena de um ser que não se satisfaz com as mulheres, vem à lembrança os gritos semelhantes
de Hitler na sua insensata e tresloucada busca animalesca do domínio mundial, em
uma analogia metafórica ao velho ditador nazista de uma sociedade doentia ainda
impactada pelo passado. Paradoxalmente o personagem se apresenta como filho de
um comunista preso no campo de concentração, que de varredor de uma fábrica
passa a vigilante no novo emprego, estufa seu ego com a roupa que dará
ostentação e orgulho de poder como evidências reveladoras.
O Bar Luva Dourada é
uma singular realização sobre os seres humanos destroçados pelo tempo, em uma
exemplar reflexão sobre a irracionalidade bestial neste painel arrebatador pelo
olhar questionador de um realizador sobre as fragilidades humanas. O drama não
cai na caricatura fácil e nem no maniqueísmo contumaz de algumas realizações
pouco consistentes. Causou algum desconforto na apresentação do Festival de
Berlim, em fevereiro de 2019, diante da tensão e da intensidade elaboradas com
alguma dosagem de exageros que poderão causar náuseas em pessoas mais
suscetíveis de estômagos sensíveis. As construções de personagens
psicologicamente derrotados na vida e em situações que beira o abismo estão bem
alicerçadas por uma direção autoral magnífica, através de uma forte complexidade
dos detalhes pelas dores que carregam de traumas da rejeição ao prazer, da
perda da dignidade e da piedade como elementos que afloram pelos métodos
violentos dos impulsos doentios sem freios. São reflexos de uma sociedade de
invisíveis marginalizados no refúgio do bar contrapondo com os dois jovens
personagens intrusos representantes da casta burguesa. Contextualizado dentro
de um clímax embrutecido por um panorama sombrio oriundo desde o pós-guerra, em
que a selvageria impacta e devasta pela solidão com lembranças pretéritas nefandas.
Desde já, insere-se entre os 10 melhores filmes do ano.
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