Pedofilia na Igreja
Um dos mais aguardados lançamento do Festival Varilux de Cinema Francês foi o badalado Graças a Deus, com direção do producente François Ozon, nome constante em festivais como Cannes, Berlim e Veneza. O longa-metragem foi visto com entusiasmo pela crítica internacional no 69º. Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro deste ano, quando arrebatou o Urso de Prata. Baseado em fatos reais ocorridos em Lyon, na França, retrata de forma imparcial, nua e crua, a pedofilia escancarada na Igreja Católica. Um drama de denúncia com requintes de abordagem psicológica profunda na sua mais pura essência, sem grandes pretensões estilísticas. A narrativa é eficiente e o assunto causa desconforto na plateia, embora o roteiro seja linear e multifacetado em seu desenrolar, com elipses certeiras. É provocativo na câmera que viaja pelos rostos das vítimas e dos familiares atingidos por um crime abjeto em vários personagens que carregam as marcas traumáticas de uma violência advinda da infância cometida por um doentio padre pedófilo que abusa sexualmente de mais de 70 crianças com o acobertamento dos bispos e cardeais do poder eclesiástico.
Depois das realizações O Refúgio (2009); Potiche-Esposa Troféu (2010); Dentro de Casa (2012); Jovem e Bela (2013); o premiado Frantz (2016), drama histórico que recebeu onze indicações ao Prêmio César, o Oscar da França, abocanhando a láurea de melhor fotografia, além da premiação de melhor jovem atriz no Festival de Veneza de 2016 para a bela Paula Beer; e o instigante O Amante Duplo (2017). O cineasta, agora, constrói um painel psicológico para contar uma amarga e dolorosa saga, que inicia com Alexandre (Melvil Poupaud) tomando coragem para escrever uma carta para o bispo e revelar um segredo: quando era criança, sofreu abusos sexuais do padre Preynat (Bernard Verley). A trama conduz para os psicólogos da Igreja tentando ajudar, mas que não conseguem negar o fato de que o acusado não foi afastado do cargo, pelo contrário, continuou atuando junto aos menores indefesos. Diante da publicação dos fatos relevantes e o envolvimento da mídia, outras vítimas na infância aparecem e as denúncias de abuso tomam corpo e o cerco se fecha, entre eles estão François (Denis Ménochet) e Emmanuel (Swann Arlaud). É criada uma associação de apoio chamada ironicamente de Palavra Liberada, no que aumenta a pressão na justiça por providências definitivas e sem paliativos, mas terão de enfrentar situações típicas como a prescrição legal dos crimes.
Há situações claras e evidentes mostradas de forma objetiva e direta como a conivência do cardeal Barbarin (François Marthouret), que sempre soube dos crimes, inclusive assumidos pelo padre abusador, mas nunca tomou providências mais sérias. Fazer uma reunião com os envolvidos para um singelo pedido de desculpas pelo pároco confesso, patrocinada pela arquidiocese, é a saída diplomática encontrada de maneira protocolar e completamente omissa. O realizador utiliza recursos para elaborar um cenário convincente, simbolizado no olhar atônito dos personagens para vencerem o medo na busca da verdade e das revelações que se acumulam. As causas e efeitos estão presentes como feridas ainda abertas e não cicatrizadas, que proliferam numa realidade devastadora acompanhada do contrassenso tenebroso que atingiu várias famílias católicas. Há membros do núcleo familiar que são céticos e não acreditam; outros ficam quase que duvidando dos fatos; mas há os que se insurgem com veemência e se solidarizam com as vítimas atormentadas. Um filme construído pelo olhar do diretor que surpreende pelo seu desenrolar preciso e direto ao ponto diante dos traumas decorrentes na perversão das atrocidades sexuais de outrora. A dignidade está em xeque, embora seja questionada pelos defensores do clérigo torpedeado, insistem para uma composição amigável e sem escândalo. Há um fardo insustentável e pesado que tomará grandes dimensões pelos crimes que continuam impunes numa atmosfera sombria para quem quer apenas justiça e não pedidos simbólicos de desculpas esfarrapadas, diante de fatos comprovados que geram revolta e dor dos mais próximos pelo descaso dos religiosos diante das acusações verossímeis.
Ozon coloca seus personagens vitimados na busca da verdade, no que difere de Tom McCarthy, que se baseou também em fatos reais ocorridos em Boston, nos EUA, para contar uma história similar e provocante, tema de preocupação do Papa Francisco, no oscarizado Spotlight- Segredos Revelados (2015), sobre um grupo de jornalistas do jornal The Boston Globe mergulhados numa parafernália de documentos probatórios sobre diversos casos de abuso de crianças por padres da Igreja Católica. O drama francês aponta e denuncia uma parte da Igreja ainda conservadora, que não se importou com as profundas cicatrizes que deturparam o psicológico de seus fiéis ludibriados por sacerdotes que se utilizaram da fé para cometer crimes de pedofilia, no qual também foi o foco de outras duas realizações: Má Educação (2004), de Pedro Almodóvar, e O Clube (2014), de Pablo Larraín, premiado pelo Júri do Festival de Berlim.
Graças a Deus é conduzido com habilidade em um tom seco e ferino com planos e contraplanos, enquadramentos fixos, ausência de trilha sonora, para dar mais contundência nos relatos fortes e dramáticos dos personagens já adultos com o recurso de flashbacks numa estética clássica das melhores realizações sérias e isentas da escola francesa. As reações das vítimas são heterogêneas, pois algumas continuam religiosas e outras abandonaram a crença pela desilusão completa. Agora, aqueles homens, tanto os heterossexuais como os homossexuais, seguem suas vidas. Uns com relacionamentos aparentemente normais, embora confusos, mas no fundo carregam mágoas, traumas, depressão e ressentimentos; outros carregam problemas afetivos e psicológicos graves. Tudo por conta da hipocrisia e o medo do escândalo religioso sobre a pedofilia recorrente, nesta primorosa obra de denúncia e resgate de seres humanos destroçados pelo tempo, para uma reflexão sobre a irracionalidade bestial neste painel arrebatador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário