terça-feira, 18 de junho de 2019

Dor e Glória



A Vida em Retrospectiva

O cultuado realizador espanhol Pedro Almodóvar, aos 69 anos, está de volta ao seu clássico estilo de filmar os dramas profundos e intimistas com o rigor formal característico. Embora sem se reinventar, mantém o bom domínio estético narrativo que o consagrou nestes 40 anos de carreira e 21 filmes produzidos. Apresentado com ovação no Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio deste ano, Dor e Glória retrata uma autoficção do cineasta, com Antonio Banderas (laureado com o Prêmio do Júri) protagonizando Salvador Mallo, um diretor no ocaso da carreira, que também é homossexual. Encerra a trilogia espontânea sobre o projeto focado em desejo e ficção cinematográfica mesclados com a vida real de dores e paixões inerentes como sustentação de personagens masculinos que dirigem na sétima arte. Levou 32 anos para finalmente ser concluída, antes vieram A Lei do Desejo (1986) e Má Educação (2003).

A trama centraliza na criatura Mallo com o semelhante corte de cabelo, alter ego de seu criador, com tintas autobiográficas de um melancólico cineasta em franco declínio profissional. O personagem se vê obrigado a pensar sobre as escolhas que fez na vida de um passado que retorna com os fantasmas para serem exorcizados. O longa permeia flashbacks rápidos e não lineares, com lembranças do pai ausente e da mãe pela relação conflitada por insistir em colocá-lo num convento de padres, bem como o retorno às origens de pobreza em que morava numa caverna quando criança, descobrindo ali sua tendência da opção sexual através de um pedreiro, por acaso, ao servir de modelo para um quadro que irá reencontrar na fase adulta. Penélope Cruz, atriz-fetiche do realizador, interpreta a jovem mãe que canta doces músicas para se distrair e esquecer a miséria ao lavar roupas na beira do rio. O papel da genitora idosa é confiado a Julieta Serrano e o drama pessoal de querer voltar para morrer na antiga residência, mas o destino é cruel e o hospital será sua última morada. O tempo é escasso para perdões e reatamentos de divergências entre filho e mãe sobre a opção assumida da homossexualidade.

Eis uma obra intimista autoficcional de Almodóvar que retrata os reencontros e as reflexões sobre o período da infância na década de 1960, que irá passar pela fase de transição no processo de imigração para a Espanha. O primeiro amor maduro com o antigo namorado (Leonardo Sbaraglia) e sua relação com a escrita e com o cinema propriamente dito, com passagens pelo envolvimento de drogas pesadas. O cineasta espanhol não é diferente e segue o mesmo caminho de vários artistas em crise ou próximos do fim da existência, transformando a trajetória existencial como um legado histórico da arte, como visto recentemente no documentário da legendária Agnès Varda que fez um inventário de sua vida e carreira em Varda por Agnès (2019), ao despedir-se da telona em grande estilo e uma superação invejável; ou ainda a realização Maria Callas- Em Suas Próprias Palavras (2017), dirigido pelo competente Tom Volf, sobre a grande diva da ópera do século 20, a bela e talentosa Maria Callas, uma das mais consagradas cantoras e intérpretes da história da música, teatro e cinema.

Almodóvar cria um cenário aprazível com a humilde casa enjambrada e bem decorada pela mãe na infância, apesar da pobreza, traz também requintes de angústia psicológica quando explora com força as cores naturais e harmônicas, abolindo as mais fortes de predominância do vermelho nos listrados e xadrezes gritantes de agressão visual, em realizações anteriores como marcas inesquecíveis. Opta pela sobriedade com o olhar distante pela dor da ausência e das perdas amorosas de vínculos familiares rompidos que aconteceram em sequência, dando um semblante de tristeza e desesperança. Num contexto típico e revelador dentro do universo cênico almodovariano, com um enredo pontilhado por traumas, revelações e atitudes marcantes de um caminho escolhido para refletir. Mesmo sendo um filme menor, sem fisgar plenamente o espectador, está acima de realizações medíocres que infestam as salas de cinema, ao se estabelecer a relação com obras anteriores arrebatadoras como A Pele que Habito (2011); o brilho e eloquência inerente em Abraços Partidos (2009); o sempre lembrado Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988); o notável Fale com Ela (2002); Volver (2006) é a ode máxima ao feminismo; assim como em Ata-me (1990); De Salto Alto (1991), Carne Trêmula (1997) e Tudo Sobre Minha Mãe (1999).

Dor e Glória não empolga, mas não chega a decepcionar, fica num plano intermediário com sabor déjà vu. Dá para dizer que é mais uma produção com a grife Almodóvar, que transparece como uma evidente tentativa de controle do discurso inflamado, com um viés contido e embasado nas lembranças, nas memórias afetivas, nas mágoas e na veemência melancólica abundante da iminente finitude do ser humano. Há inúmeras referências aos fatos de modo que a ficção se confunde com um diário pessoal sendo folheado do início até o desfecho. O resultado se confunde na essência com um projeto mais profundo e uma obra extensa e calcada na simplicidade com ausência de vaidade, o que seria um mérito para um diretor menor, sem a potencialidade do autobiografado e seu sucesso estrondoso. Fica a falsa impressão de que já filmou tudo de bem-sucedido e que restou a ausência de criatividade para atingir êxitos a serem trilhados com a eloquência característica deste fabuloso artesão em declínio e sem ânimo para o presente. Focaliza os personagens combalidos pelas suas confissões mostradas como se fossem purificar a própria alma com um suposto pedido de clemência pelos eventuais equívocos praticados nas sucessões de acontecimentos que desfilam na tela. Os grandes dramas pessoais são absorvidos pelas fraquezas e as vicissitudes fragilizadas como decorrências do ser humano, numa trama que se delineia com verossimilhança no epílogo, após todas as conquistas do ápice da fama. Parece interessar agora somente um cotidiano das pequenas coisas. Tudo vai no embalo da bonita trilha sonora para revisitar um enredo peculiar e cinzento, através de um olhar de sentimentos atormentados pelas transformações emocionais na construção psicológica do sofrimento humano sem alegria.

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