A Resistência
Depois do cultuado O
Som ao Redor (2013), que rendeu o
prêmio da Crítica no Festival de Roterdã, na Holanda; o Kikito em Gramado de
melhor direção; e o título de Melhor Filme no Festival do Rio, Kleber Mendonça
Filho causou polêmica com Aquarius (2016)
pelo protesto da equipe na França, ao participar da seleção oficial do Festival
de Cannes, o longa virou bandeira política contra o governo interino, à época, cinco
dias após o processo de impeachment ser instaurado. O primeiro longa do diretor
refletia a preocupação do cinema autoral com a estratificação social, através
da captação da câmera que percorre uma rua famosa da zona Sul de Recife,
mostrando belos moradias bem protegidas. O retrato do dia a dia de uma dona de
casa cansada e com dois filhos, representante típica da classe social menos
favorecida, sendo obrigada a ouvir o latido estridente do cachorro da vizinha.
Já na segunda realização, a temática do cotidiano é abordada pela especulação
imobiliária desenfreada que só visa lucros, pouco se importando com a ética e
os desejos de escolha e opção do cidadão. Trazia um realismo da exacerbação
pela intransigência de métodos absurdos pela coação de uma empreiteira para que
uma moradora lhe vendesse seu apartamento para construir um novo prédio no
espaço.
Ganhador do prêmio do Júri no Festival de Cannes deste ano, Bacurau (nome de um pássaro noturno que inspirou
o apelido do último ônibus da madrugada em Recife), é a nova realização de
Mendonça Filho, que divide a direção com Juliano Dornelles. Com arrojo é criado
um marcante faroeste contemporâneo que transita para o suspense, passa pela
ficção científica, flerta com o horror e chega até o drama das famílias acuadas
pela invasão de alienígenas numa aldeia aparentemente pacata. Naquele singelo
lugarejo que empresta seu nome ao título do filme, um distrito fictício do
município de Serra Verde, no Oeste de Pernambuco, com locações no povoado de
Barra, no sertão de Seridó, entre Rio Grande do Norte e Paraíba, o prefeito
demagogo é malvisto por camuflar a água depois da interdição premeditada de uma
represa para abastecer a população somente com um caminhão-pipa. Não desiste da
campanha para a reeleição que está prestes a começar e sofre represálias dos
seus eleitores que não o recebem e se escondem em suas humildes residências.
A trama tem um elenco coeso e sem estrelismo nesta história
surreal contada por uma narrativa apreciável, com toques de bom suspense nos
artifícios do roteiro dinâmico. As subversões propostas irão ao encontro do
espectador para decifrar as sugestões do gênero no seu desenrolar. Teresa
(Bárbara Colen) é a jovem que retorna à terra natal para o enterro da avó;
Domingas (Sônia Braga) é a única médica, mas exerce um espírito de discutível liderança;
Plínio (Wilson Rabelo) é o professor da comunidade e paizão de todos; Acácio,
vulgo Pacote (Thomas Aquino) é um criminoso que irá se aliar a Lunga (Silvero
Pereira) que reedita o cangaço pela clássica degola, uma analogia ao bandoleiro
Lampião das selvas nordestinas em novos tempos, mas sem a Maria Bonita, eles são
figuras importantes na resistência heroica; Michael (Udo Kier) é um alemão
radicado nos EUA que chefia os milicianos estrangeiros e a crueldade está
inerente em seus atos frios e premeditados. A fotografia captada em ambientes
peculiares das caatingas do Nordeste foi registrada com extrema elaboração de
cores por Pedro Sotero, parceiro nos filmes anteriores de Mendonça Filho. Outro ponto forte é a fascinante trilha sonora, especialmente no prólogo com a canção
Não Identificado, de Caetano Veloso, na
bela interpretação de Gal Costa, e o magnífico desfecho com Réquiem para Matraga, um verdadeiro hino
do protesto, do enigmático cantor e compositor Geraldo Vandré.
O filme começa com a morte de uma lendária habitante de 94 anos, os
moradores descobrem que a comunidade não consta mais em qualquer mapa na
internet, exceto nos antigos rolos de papel guardados por um líder local. Os
sinais da telefonia móvel também somem misteriosamente e, aos poucos, irão
percebendo que fatos estranhos e aterradores na região estão acontecendo. Há
uma tensão no ar com os drones no formato de disco voador que circulam pelos céus.
Um casal de aparentes motoqueiros inofensivos simula um passeio pelas trilhas e
estrangeiros chegam do nada à pequena cidade. Os carros são metralhados e
alguns nativos morrem vítimas de tiros sem qualquer explicação plausível para
os fatos inusitados que colocam todos em pânico. Sem identificar inicialmente o inimigo e induzir
o medo no coletivo para criar um meio de defesa em boa parte do enredo, os diretores
tentam fugir das armadilhas sorrateiras entre o bem e o mal, mas deslizam sutilmente
para um ardiloso maniqueísmo. As alegorias buscam a empatia do público pela
história contada com subsídios básicos e indispensáveis para a construção de um
filme revelador das tramoias com artimanhas politiqueiras enjambradas por maus
executivos detentores do poder, no caso o prefeito corrupto e sua obstinação pela
continuidade em um contexto de opressão psicológica e crimes bárbaros que se
sucedem.
Bacurau é
importante pela relevância no cenário nacional diante das imagens cruas e os
diálogos incisivos com simbologias determinantes. A heterogeneidade rompe com a
mesmice do protagonismo único, pois todos os personagens são necessários e se
encaixam nesta grande babel construída. Cada um desempenha um papel específico
para ceder seu espaço a outro na cena posterior, na qual a situação
sociopolítica está presente de maneira metafórica, como na invasão dos
colonizadores norte-americanos em conluio com péssimos políticos tupiniquins
travestidos de defensores do povo. Os caixões em abundância na cidade para
suprir as necessidades da tragédia anunciada funcionam como elementos que
contrapõe em uma outra alegoria premonitória das execuções sumárias em São Paulo , vistas na
televisão, mas atual para os moradores. É o simbolismo da classe oprimida
contra as classes dominantes, em que a vingança é o elemento preponderante para
afastar ou dar um basta aos usurpadores. Atual e corrosivo pelo olhar crítico
de seus realizadores pelo prisma do inconformismo da corrupção atávica nesta
curiosa fábula social sobre a insegurança que vai se instalando e refletirá na
tranquilidade estremecida de uma comunidade em polvorosa pelas crueldades que
tomam corpo e se avolumam cada vez mais. São os contrastes da atualidade
brasileira de anomalias e distanciamentos que avançam com sintonia pesada de fatos
violentos e reais em uma narrativa ousada com méritos, sem cair nas obviedades
de obras menores. Há elementos caracterizadores e envolventes que refletem com
qualidade esta emblemática obra sobre a injustiça pela justiça da redenção através
da resistência em defesa do bem maior: a vida.
Um comentário:
"Bacurau" é o melhor filme brasileiro destes últimos anos e que no futuro ele falará muito sobre esses tempos atuais e nebulosos dos quais nós vivemos. Saiba mais no meu blog de cinema https://cinemacemanosluz.blogspot.com/2019/08/cine-dica-em-cartaz-bacurau-o-contra.html
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