terça-feira, 3 de setembro de 2019

Bacurau



A Resistência

Depois do cultuado O Som ao Redor (2013), que rendeu o prêmio da Crítica no Festival de Roterdã, na Holanda; o Kikito em Gramado de melhor direção; e o título de Melhor Filme no Festival do Rio, Kleber Mendonça Filho causou polêmica com Aquarius (2016) pelo protesto da equipe na França, ao participar da seleção oficial do Festival de Cannes, o longa virou bandeira política contra o governo interino, à época, cinco dias após o processo de impeachment ser instaurado. O primeiro longa do diretor refletia a preocupação do cinema autoral com a estratificação social, através da captação da câmera que percorre uma rua famosa da zona Sul de Recife, mostrando belos moradias bem protegidas. O retrato do dia a dia de uma dona de casa cansada e com dois filhos, representante típica da classe social menos favorecida, sendo obrigada a ouvir o latido estridente do cachorro da vizinha. Já na segunda realização, a temática do cotidiano é abordada pela especulação imobiliária desenfreada que só visa lucros, pouco se importando com a ética e os desejos de escolha e opção do cidadão. Trazia um realismo da exacerbação pela intransigência de métodos absurdos pela coação de uma empreiteira para que uma moradora lhe vendesse seu apartamento para construir um novo prédio no espaço.

Ganhador do prêmio do Júri no Festival de Cannes deste ano, Bacurau (nome de um pássaro noturno que inspirou o apelido do último ônibus da madrugada em Recife), é a nova realização de Mendonça Filho, que divide a direção com Juliano Dornelles. Com arrojo é criado um marcante faroeste contemporâneo que transita para o suspense, passa pela ficção científica, flerta com o horror e chega até o drama das famílias acuadas pela invasão de alienígenas numa aldeia aparentemente pacata. Naquele singelo lugarejo que empresta seu nome ao título do filme, um distrito fictício do município de Serra Verde, no Oeste de Pernambuco, com locações no povoado de Barra, no sertão de Seridó, entre Rio Grande do Norte e Paraíba, o prefeito demagogo é malvisto por camuflar a água depois da interdição premeditada de uma represa para abastecer a população somente com um caminhão-pipa. Não desiste da campanha para a reeleição que está prestes a começar e sofre represálias dos seus eleitores que não o recebem e se escondem em suas humildes residências.

A trama tem um elenco coeso e sem estrelismo nesta história surreal contada por uma narrativa apreciável, com toques de bom suspense nos artifícios do roteiro dinâmico. As subversões propostas irão ao encontro do espectador para decifrar as sugestões do gênero no seu desenrolar. Teresa (Bárbara Colen) é a jovem que retorna à terra natal para o enterro da avó; Domingas (Sônia Braga) é a única médica, mas exerce um espírito de discutível liderança; Plínio (Wilson Rabelo) é o professor da comunidade e paizão de todos; Acácio, vulgo Pacote (Thomas Aquino) é um criminoso que irá se aliar a Lunga (Silvero Pereira) que reedita o cangaço pela clássica degola, uma analogia ao bandoleiro Lampião das selvas nordestinas em novos tempos, mas sem a Maria Bonita, eles são figuras importantes na resistência heroica; Michael (Udo Kier) é um alemão radicado nos EUA que chefia os milicianos estrangeiros e a crueldade está inerente em seus atos frios e premeditados. A fotografia captada em ambientes peculiares das caatingas do Nordeste foi registrada com extrema elaboração de cores por Pedro Sotero, parceiro nos filmes anteriores de Mendonça Filho. Outro ponto forte é a fascinante trilha sonora, especialmente no prólogo com a canção Não Identificado, de Caetano Veloso, na bela interpretação de Gal Costa, e o magnífico desfecho com Réquiem para Matraga, um verdadeiro hino do protesto, do enigmático cantor e compositor Geraldo Vandré.

O filme começa com a morte de uma lendária habitante de 94 anos, os moradores descobrem que a comunidade não consta mais em qualquer mapa na internet, exceto nos antigos rolos de papel guardados por um líder local. Os sinais da telefonia móvel também somem misteriosamente e, aos poucos, irão percebendo que fatos estranhos e aterradores na região estão acontecendo. Há uma tensão no ar com os drones no formato de disco voador que circulam pelos céus. Um casal de aparentes motoqueiros inofensivos simula um passeio pelas trilhas e estrangeiros chegam do nada à pequena cidade. Os carros são metralhados e alguns nativos morrem vítimas de tiros sem qualquer explicação plausível para os fatos inusitados que colocam todos em pânico. Sem identificar inicialmente o inimigo e induzir o medo no coletivo para criar um meio de defesa em boa parte do enredo, os diretores tentam fugir das armadilhas sorrateiras entre o bem e o mal, mas deslizam sutilmente para um ardiloso maniqueísmo. As alegorias buscam a empatia do público pela história contada com subsídios básicos e indispensáveis para a construção de um filme revelador das tramoias com artimanhas politiqueiras enjambradas por maus executivos detentores do poder, no caso o prefeito corrupto e sua obstinação pela continuidade em um contexto de opressão psicológica e crimes bárbaros que se sucedem.

Bacurau é importante pela relevância no cenário nacional diante das imagens cruas e os diálogos incisivos com simbologias determinantes. A heterogeneidade rompe com a mesmice do protagonismo único, pois todos os personagens são necessários e se encaixam nesta grande babel construída. Cada um desempenha um papel específico para ceder seu espaço a outro na cena posterior, na qual a situação sociopolítica está presente de maneira metafórica, como na invasão dos colonizadores norte-americanos em conluio com péssimos políticos tupiniquins travestidos de defensores do povo. Os caixões em abundância na cidade para suprir as necessidades da tragédia anunciada funcionam como elementos que contrapõe em uma outra alegoria premonitória das execuções sumárias em São Paulo, vistas na televisão, mas atual para os moradores. É o simbolismo da classe oprimida contra as classes dominantes, em que a vingança é o elemento preponderante para afastar ou dar um basta aos usurpadores. Atual e corrosivo pelo olhar crítico de seus realizadores pelo prisma do inconformismo da corrupção atávica nesta curiosa fábula social sobre a insegurança que vai se instalando e refletirá na tranquilidade estremecida de uma comunidade em polvorosa pelas crueldades que tomam corpo e se avolumam cada vez mais. São os contrastes da atualidade brasileira de anomalias e distanciamentos que avançam com sintonia pesada de fatos violentos e reais em uma narrativa ousada com méritos, sem cair nas obviedades de obras menores. Há elementos caracterizadores e envolventes que refletem com qualidade esta emblemática obra sobre a injustiça pela justiça da redenção através da resistência em defesa do bem maior: a vida.

Um comentário:

Marcelo Castro Moraes disse...

"Bacurau" é o melhor filme brasileiro destes últimos anos e que no futuro ele falará muito sobre esses tempos atuais e nebulosos dos quais nós vivemos. Saiba mais no meu blog de cinema https://cinemacemanosluz.blogspot.com/2019/08/cine-dica-em-cartaz-bacurau-o-contra.html