O Estupro
Santiago Mitre foi o roteirista dos filmes Leonera (2008), Abutres (2010) e Elefante
Branco (2012), todos realizados por Pablo Trapero, fez sua estreia como
diretor em O Estudante (2011), ano marcado por convulsões sociais
nos EUA, Chile e na Europa. Abocanhou mais de 20 prêmios em festivais pelo
mundo. Em seu segundo longa, Paulina,
baseado no filme homônimo La Patota , de Daniel
Tinayre, produção de 1961, o sucesso continua para este cineasta de apenas 35
anos, obtendo premiações em
San Sebastián , Lima, Turim, Biarritz e Chicago, mas a
principal láurea veio ao ganhar o troféu principal da Semana da Crítica em
Cannes. É uma coprodução da Argentina, Brasil e a França, que vem num momento
de comoção nacional para os brasileiros, diante do estupro de uma jovem no Rio
de janeiro.
O drama social retrata a temática da violência contra a
mulher de uma maneira pouco convencional, sem ser sensacionalista, busca contextualizar
a trama e dar luzes à história em uma reflexão mais profunda, tendo como subtema
a justiça a serviço dos interesses pessoais de poderosos. Dolores Fonzi (atriz
de Truman e O Crítico) interpreta com esmero a personagem-título, de 28 anos,
que largou uma promissora carreira na advocacia após estudar e se formar em
Direito, em Buenos Aires ,
para ser professora com suas convicções de ensino sobre política na província
de Misiones, em uma escola rural no norte do país, na divisa com o Paraguai,
considerada problemática e de alto risco pelas circunstâncias inerentes da
região.
Mitre, que assina o roteiro com Mariano Llinás, não conta uma
história linear, há idas e vindas, não segue uma cronologia precisa, pois aos
poucos o enredo vai se desanuviando para ir ao encontro do imbróglio e suas
nuances decorrentes do crime em que é vítima por engano, ao ser confundida com
outra mulher. A protagonista que aparece no prólogo do filme discutindo seu
futuro com o pai (Oscar Martinez), um poderoso juiz conservador e pouco ético
na sua ortodoxia profissional, quer que ela siga seus passos na magistratura e
desista de seu projeto de dar aulas no interior, sob o argumento de que
qualquer outra pessoa de escolarização de nível médio poderia fazer o que é sua
convicção de lecionar. Sustenta que como uma profissional na área do Direito
poderá contribuir muito mais para a sociedade do que na carreira do magistério
para alunos pouco qualificados. Sequer o namorado conseguirá desmotivá-la de
seu objetivo traçado.
O filme apresenta uma complexidade bem maior do que parece,
pois uma jovem que sofreu abuso sexual de um tio, resultando no nascimento de
um filho, será o pivô involuntário por causa de um desacerto com o companheiro
e apontado como o principal suspeito do estupro. O realizador coloca na tela um
prato indigesto de uma situação dolorosa para que a personagem central vá buscar
forças na crença da justiça e resolver sozinha o fato inusitado, pois ela quer
conduzir uma investigação imparcial para saber dos motivos que levaram o
acusado de uma gangue de jovens que falam guarani, entre eles alunos seus, a praticarem
tamanho desatino de violência sexual contra uma pessoa indefesa com sentimentos
humanitários e ideais de botar o mundo nos trilhos. Mas com a entrada do pai
novamente em cena, a relação estremece, diante do propósito de buscar justiça
pelas próprias mãos, através de uma vingança barata com elementos de força pela
truculência policial. O choque pelas atitudes extremadas fragilizará a relação
com o vínculo paterno ora em xeque, diante de sua crença pelo senso de justiça,
ao afirmar num diálogo: “Quando os envolvidos são pessoas pobres o Judiciário
não procura justiça, mas sim culpados”.
Outro componente importante do drama será a insistência do
namorado em realizar o exame de DNA para saber se é ele o pai da criança
prestes a nascer. Desmorona a relação e o amor entre eles perderá consistência.
Para a protagonista, filho do estupro ou não, pouco importa na atual situação.
A questão do aborto é tratada sutilmente no enredo, pois o objetivo não é fazer
ou não simplesmente o abortamento. O que o diretor busca são os métodos
legítimos e éticos da justiça, sem que haja apologia da vingança pelo crime
cometido pelos infratores. Outro elemento importante lançado para reflexão pela
psicóloga é a vítima no estado de Síndome de Estocolmo, quando passa a ter simpatia e sentimento de amor ou
amizade perante o seu agressor, mas rechaçada com fortes argumentos pela
violentada, ao invocar que as pessoas de poucos recursos não teriam o direito
da ampla defesa, como demonstrado pelo aspecto físico dos abusadores. A cena da
delegacia fica evidente e o reconhecimento fica prejudicado pela aberração
imposta no contexto traumático é visível, mas que não irá abalar a convicção da
professora, que antes fora perguntada por um agente machista representante do
Estado, sobre o tipo de roupa que vestia ao ser atacada.
O cineasta não
tem a pretensão de dar soluções definitivas, apenas questiona os métodos
utilizados pelo ressentimento vingativo no ato do estupro. Eis um drama
recorrente que deixa margens de dúvidas para o debate sobre a complexidade das
circunstâncias que resultaram no delito, neste sintomático filme que causará
muita polêmica sobre os desdobramentos entre vítima e estuprador, pois às vezes
o espectador irá entender os gestos da moça que não quer dar simplesmente o
perdão; já em outras decisões, não. Porém no fundo Mitre quer enfatizar e
passar para a plateia as soluçõs antiéticas do poder representado pelo
magistrado para se chegar ao desfecho pessoal com uma punição exemplar,
desmedida até, mas sem examinar e dar seguimento com inteira justiça ou legitimidade
ao fato no todo. Paulina é um filme
perturbador por ser imparcial, isento e questionador da sociedade por colocar o
dedo na ferida, por isto é notável na sua conjuntura temática das causas e
efeitos.
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