segunda-feira, 27 de junho de 2016

Paulina


O Estupro

Santiago Mitre foi o roteirista dos filmes Leonera (2008), Abutres (2010) e Elefante Branco (2012), todos realizados por Pablo Trapero, fez sua estreia como diretor em O Estudante (2011), ano marcado por convulsões sociais nos EUA, Chile e na Europa. Abocanhou mais de 20 prêmios em festivais pelo mundo. Em seu segundo longa, Paulina, baseado no filme homônimo La Patota, de Daniel Tinayre, produção de 1961, o sucesso continua para este cineasta de apenas 35 anos, obtendo premiações em San Sebastián, Lima, Turim, Biarritz e Chicago, mas a principal láurea veio ao ganhar o troféu principal da Semana da Crítica em Cannes. É uma coprodução da Argentina, Brasil e a França, que vem num momento de comoção nacional para os brasileiros, diante do estupro de uma jovem no Rio de janeiro.

O drama social retrata a temática da violência contra a mulher de uma maneira pouco convencional, sem ser sensacionalista, busca contextualizar a trama e dar luzes à história em uma reflexão mais profunda, tendo como subtema a justiça a serviço dos interesses pessoais de poderosos. Dolores Fonzi (atriz de Truman e O Crítico) interpreta com esmero a personagem-título, de 28 anos, que largou uma promissora carreira na advocacia após estudar e se formar em Direito, em Buenos Aires, para ser professora com suas convicções de ensino sobre política na província de Misiones, em uma escola rural no norte do país, na divisa com o Paraguai, considerada problemática e de alto risco pelas circunstâncias inerentes da região.

Mitre, que assina o roteiro com Mariano Llinás, não conta uma história linear, há idas e vindas, não segue uma cronologia precisa, pois aos poucos o enredo vai se desanuviando para ir ao encontro do imbróglio e suas nuances decorrentes do crime em que é vítima por engano, ao ser confundida com outra mulher. A protagonista que aparece no prólogo do filme discutindo seu futuro com o pai (Oscar Martinez), um poderoso juiz conservador e pouco ético na sua ortodoxia profissional, quer que ela siga seus passos na magistratura e desista de seu projeto de dar aulas no interior, sob o argumento de que qualquer outra pessoa de escolarização de nível médio poderia fazer o que é sua convicção de lecionar. Sustenta que como uma profissional na área do Direito poderá contribuir muito mais para a sociedade do que na carreira do magistério para alunos pouco qualificados. Sequer o namorado conseguirá desmotivá-la de seu objetivo traçado.

O filme apresenta uma complexidade bem maior do que parece, pois uma jovem que sofreu abuso sexual de um tio, resultando no nascimento de um filho, será o pivô involuntário por causa de um desacerto com o companheiro e apontado como o principal suspeito do estupro. O realizador coloca na tela um prato indigesto de uma situação dolorosa para que a personagem central vá buscar forças na crença da justiça e resolver sozinha o fato inusitado, pois ela quer conduzir uma investigação imparcial para saber dos motivos que levaram o acusado de uma gangue de jovens que falam guarani, entre eles alunos seus, a praticarem tamanho desatino de violência sexual contra uma pessoa indefesa com sentimentos humanitários e ideais de botar o mundo nos trilhos. Mas com a entrada do pai novamente em cena, a relação estremece, diante do propósito de buscar justiça pelas próprias mãos, através de uma vingança barata com elementos de força pela truculência policial. O choque pelas atitudes extremadas fragilizará a relação com o vínculo paterno ora em xeque, diante de sua crença pelo senso de justiça, ao afirmar num diálogo: “Quando os envolvidos são pessoas pobres o Judiciário não procura justiça, mas sim culpados”.

Outro componente importante do drama será a insistência do namorado em realizar o exame de DNA para saber se é ele o pai da criança prestes a nascer. Desmorona a relação e o amor entre eles perderá consistência. Para a protagonista, filho do estupro ou não, pouco importa na atual situação. A questão do aborto é tratada sutilmente no enredo, pois o objetivo não é fazer ou não simplesmente o abortamento. O que o diretor busca são os métodos legítimos e éticos da justiça, sem que haja apologia da vingança pelo crime cometido pelos infratores. Outro elemento importante lançado para reflexão pela psicóloga é a vítima no estado de Síndome de Estocolmo, quando passa a ter simpatia e sentimento de amor ou amizade perante o seu agressor, mas rechaçada com fortes argumentos pela violentada, ao invocar que as pessoas de poucos recursos não teriam o direito da ampla defesa, como demonstrado pelo aspecto físico dos abusadores. A cena da delegacia fica evidente e o reconhecimento fica prejudicado pela aberração imposta no contexto traumático é visível, mas que não irá abalar a convicção da professora, que antes fora perguntada por um agente machista representante do Estado, sobre o tipo de roupa que vestia ao ser atacada.

O cineasta não tem a pretensão de dar soluções definitivas, apenas questiona os métodos utilizados pelo ressentimento vingativo no ato do estupro. Eis um drama recorrente que deixa margens de dúvidas para o debate sobre a complexidade das circunstâncias que resultaram no delito, neste sintomático filme que causará muita polêmica sobre os desdobramentos entre vítima e estuprador, pois às vezes o espectador irá entender os gestos da moça que não quer dar simplesmente o perdão; já em outras decisões, não. Porém no fundo Mitre quer enfatizar e passar para a plateia as soluçõs antiéticas do poder representado pelo magistrado para se chegar ao desfecho pessoal com uma punição exemplar, desmedida até, mas sem examinar e dar seguimento com inteira justiça ou legitimidade ao fato no todo. Paulina é um filme perturbador por ser imparcial, isento e questionador da sociedade por colocar o dedo na ferida, por isto é notável na sua conjuntura temática das causas e efeitos.

Nenhum comentário: