quarta-feira, 1 de junho de 2016

Ponto Zero


Adolescente em Crise

José Pedro Goulart é um cineasta gaúcho atento e sensível às circunstâncias e os preconceitos da civilização no cotidiano da vida. Assim foi com seus dois curtas-metragens que realizou em parceria com Jorge Furtado: Temporal (1984) e O Dia em que Dorival Encarou a Guarda (1986). Ponto Zero está sendo bem recebido pela crítica e pelo público, embora seja possível afirmar que tenha perdido uma grande oportunidade de marcar época com este drama familiar mesclado com elementos de thriller policial, com algumas incursões pelo sobrenatural, através dos pesadelos do protagonista em sua fase de transição da adolescência para o mundo dos adultos. Mas há méritos inegáveis no retorno ao cinema, pois voltou 30 anos depois de uma ausência dedicada para escrever livros, fez carreira em publicidade, alguns trabalhos para a TV, e elaborar sem pressa o roteiro deste seu primeiro longa para apresentar no Festival de Gramado de 2015, ganhando merecidamente os prêmios de melhor som e montagem.

Antes que o Mundo Acabe (2009), da também gaúcha Ana Luiza Azevedo, e As Melhores Coisas do Mundo (2010), da paulista Laís Bodanzky, apenas para citar duas referências na temática, foram fundo na questão dos prazeres e desprazeres da adolescência, suas dúvidas e os caminhos que procuram em suas vidas, além do questionamento da infância que fica para trás como um marco para o futuro. Laís coloca o fato de o pai assumir a homossexualidade que serve de gancho para os problemas encontrados no seio do colégio e com desdobramentos nas amizades que desenvolve um personagem complexo e frágil. Já Ana Luiza reflete com uma beleza melancólica, tendo como mote o triângulo amoroso dos amigos e colegas de aula, as enormes confusões no ambiente escolar, para um mergulho no universo juvenil das grandes paixões, os relacionamentos com as namoradinhas, os traumas da garotada, sem deixar de abordar a ausência do pai.

Goulart não foge muito do tema, ao pintar com tintas de tormentas e dos percalços que causam o medo e a tensão psicológica no dia a dia como um pesadelo quase que rotineiro. Ênio (Sandro Aliprandini) é um jovem tímido de 14 anos que precisa lidar com as mudanças inerentes da idade para a troca de fase que se aproxima para buscar a maturidade. Esconde-se atrás da vasta cabeleira como se estivesse dentro de um casulo resistente de proteção da carapaça intransponível. O garoto tenta superar os traumas e fantasmas decorrentes de uma adolescência repleta de turbilhões, entre elas ser vítima de bullying na escola. Mas tem seus momentos lúdicos ao andar de bicicleta, porém age como uma ponte no confronto entre sua mãe (Patrícia Selonk), uma mulher sofrida e humilhada pelo marido (Eucir de Souza), um radialista sensacionalista, demagogo e popular na emissora que trabalha, com uma atitude grosseira e fria dentro de casa, sempre distante dos dois, vive num mundo à parte.

Ponto Zero não é um filme perfeito, oscila entre o drama do microcosmo familiar e as alucinações fantasmagóricas delirantes, principalmente após o acidente que Ênio se envolveu, depois de pegar escondido o carro do pai e ir para a Avenida Farrapos, um ponto tradicional de prostituição de mulheres e travestis, em Porto Alegre, decorrentes das dificuldades com a chegada da puberdade e o interesse repentino pela sexualidade, sem saber como lidar com a situação. O fato inusitado trará consequências dolorosas para o rapaz maroto, como uma espécie de punição para a rebeldia pela traquinagem desastrada pela indisciplina que tenta vencer o medo. Beira um certo conservadorismo pelo politicamente correto. Há uma flagrante quebra do clímax da narrativa que vinha sendo bem estruturada, diante do desvio de rota da trama, deixando fluir mais as imagens num tom desvairado, porém magnificamente contrastada com a chuva caindo torrencialmente, para dar um ar mais poético, quase que um lirismo às avessas, o que torna impactante do ponto de vista visual num filme silencioso de poucos diálogos.

Ponto Zero avança e ao mesmo tempo se retrai no vazio existencial do pai, da mãe e do filho que busca a autoafirmação e uma identidade ainda debilitada dentro de uma cidade em que os carros andam para trás, como a inversão da vida. A construção dramática do protagonista fica a desejar pela falta de densidade no roteiro que sofre alguns contratempos pela falta de ritmo, supridas pela abordagem sem estereótipos, apesar dos anseios à flor da pele. O personagem central cai na piscina, após algumas vozes vindas de um espaço sideral, na cena do prólogo e repetidas no epílogo, parecem soltas e sem função, exceto como imagens para serem apreciadas. A trilha sonora de Leo Henkin se encaixa com naturalidade e não interfere nos efeitos sonoros da produção, bem como há se destacar a bela fotografia de Rodrigo Graciosa pelos planos-sequência, entre os quais o do menino correndo à noite pela rua no meio do aguaceiro interminável. Goulart já é um diretor maduro que deverá evoluir muito, pois deu mostras de um bom grau de conhecimento, apesar de alguns equívocos, neste simpático e diferente longa-metragem de estreia.

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