Religião e Estupro
Uma das surpresas positivas deste Festival Varilux de Cinema
Francês é Agnus Dei (tradução literal
Cordeiro de Deus), com o título original
de Les Innocentes, dirigido por Anne
Fontaine, reconhecida pela crítica internacional por Coco Antes de Chanel (2008), depois se solidificou com Meu Pior Pesadelo (2011), Amor Sem Pecado (2013) e Gemma Bovery- A Vida Imita Arte (2014).
A nova musa da França Lou de Laâge, desde que fez a garota moderninha Respire (2014), de Mélanie Laurent, está
soberba no papel da jovem médica francesa Mathilde Beaulieu, uma ateia comunista
que namora Samuel (Vincent Macaigne), um médico judeu e atento para os passos
da companheira. Eles estão numa missão pela Cruz Vermelha em um hospital, em plena II
Guerra Mundial, com cenário na Polônia, em 1945, invadida pelos russos e
alemães, servindo o conflito como pano de fundo para as abordagens dos conflitos
decorrentes da Igreja Católica.
A diretora foca seu longa-metragem no estupro das freiras
num convento durante a guerra. A médica é encarregada de tratar sobreviventes
franceses antes de serem repatriados, ao ser chamada para socorrer uma freira
polonesa, descobre que há muito mais a fazer pela causa. Embora relute
inicialmente, concorda em prestar atendimento para trinta freiras Beneditinas que
estão isoladas do mundo exterior, literalmente enclausuradas entre os altos muros
de proteção. Alguns segredos irão se decifrando com o andar dos dias, entre eles
o mais arrebatador: várias freiras engravidaram dos soldados russos que
ocuparam o convento e lá ficaram alguns dias aterrorizando em circunstâncias
dramáticas as religiosas. O cotidiano se inverte e agora as noviças estão na
iminência de dar à luz. Um elo surge entre Mathilde e a cúpula da comunidade
católica, a irmã Maria (Agata Buzek), que faz a transição aos poucos, para
tentar quebrar as regras da vocação religiosa, tendo em vista que vidas correm
perigo de serem ceifadas, diante das relações complexas aguçadas pelo perigo que
farão delas cúmplices para um novo propósito de uma abertura da visão oculta e
oblíqua que foram determinadas pelos ferrenhos dogmas religiosos, causando uma
cegueira geral dentro do misticismo ofuscante para a liberação das ideias mais
amplas.
O drama de Fontaine segue uma linha crítica encontrada
também no magnífico enfoque dado pelo seu conterrâneo Bruno Dumont, em O Pecado de Hadewijch (2009), ao
retratar uma jovem da classe alta que deseja ser freira e tem um envolvimento
com dois irmãos muçulmanos que moram na periferia de Paris. A moça é uma
católica que tem vocação, mas entra em conflito existencial ao descobrir outras
religiões, percebe a fé e os conceitos de devoção contrários ao catolicismo
pragmático que conhece e testa sua fervorosa e ardente obsessão, tendo como
lema sua obstinação pela igreja. A cineasta francesa revela-se uma estudiosa da
paixão mística, ao abordar com grande sensibilidade o extremismo religioso, com
um olhar crítico avassalador. No centro do longa está uma devoção pelo
catolicismo como fé inabalável, em que a vergonha e o medo da repercussão do
escândalo na casa sagrada fazem com que a madre superiora também cometa atrocidades
contra os recém-nascidos jogados nas intempéries da natureza, em que irão ao
encontro da barbárie praticada pelos soldados desalmados quase na mesma
proporção dos atos repugnantes e drásticos da irracionalidade mostrados na
tela.
O filme flui por uma dramaticidade de forma autêntica, ao
retratar o inevitável choque de ideias dogmáticas de uma ardente religião
contrastando com a ciência médica representada por uma ateia, como símbolo
civilizatório das vítimas estupradas em estado de penúria e fragilidade, com
pouca opção de escolha para seus filhos no futuro. Outro drama que também
mostra a religião em xeque foi abordado de forma notável em Ida (2013), de Pawel Pawlikowski, em que
a trama é centrada numa jovem noviça que está pronta para prestar seu voto de
castidade e tornar-se freira. Porém, antes do evento religioso, ela é instada
pela madre superiora para visitar uma única pessoa restante de seus laços de
família. Fontaine mostra os porões dos conventos e a inabalável fé cristã sendo
corroída em seus alicerces pelos desatinos de selvagens homens que atacam
mulheres como feras humanas num cenário sombrio de uma guerra sem precedentes
éticos e morais. Pawlikowski retrata a religião fora do convento e o registro
da invasão nazista durante a Segunda Guerra Mundial com o extermínio macabro de
três milhões de judeus poloneses com a colaboração de antissemitas em detrimento
do patriotismo, bem como o período stalinista de perseguição aos comunistas no
governo de Varsóvia, além da importância fundamental de reconstrução do país
pela Igreja Católica.
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