domingo, 12 de junho de 2016

Festival Varilux Cinema Francês (Agnus Dei)


Religião e Estupro

Uma das surpresas positivas deste Festival Varilux de Cinema Francês é Agnus Dei (tradução literal Cordeiro de Deus), com o título original de Les Innocentes, dirigido por Anne Fontaine, reconhecida pela crítica internacional por Coco Antes de Chanel (2008), depois se solidificou com Meu Pior Pesadelo (2011), Amor Sem Pecado (2013) e Gemma Bovery- A Vida Imita Arte (2014). A nova musa da França Lou de Laâge, desde que fez a garota moderninha Respire (2014), de Mélanie Laurent, está soberba no papel da jovem médica francesa Mathilde Beaulieu, uma ateia comunista que namora Samuel (Vincent Macaigne), um médico judeu e atento para os passos da companheira. Eles estão numa missão pela Cruz Vermelha em um hospital, em plena II Guerra Mundial, com cenário na Polônia, em 1945, invadida pelos russos e alemães, servindo o conflito como pano de fundo para as abordagens dos conflitos decorrentes da Igreja Católica.

A diretora foca seu longa-metragem no estupro das freiras num convento durante a guerra. A médica é encarregada de tratar sobreviventes franceses antes de serem repatriados, ao ser chamada para socorrer uma freira polonesa, descobre que há muito mais a fazer pela causa. Embora relute inicialmente, concorda em prestar atendimento para trinta freiras Beneditinas que estão isoladas do mundo exterior, literalmente enclausuradas entre os altos muros de proteção. Alguns segredos irão se decifrando com o andar dos dias, entre eles o mais arrebatador: várias freiras engravidaram dos soldados russos que ocuparam o convento e lá ficaram alguns dias aterrorizando em circunstâncias dramáticas as religiosas. O cotidiano se inverte e agora as noviças estão na iminência de dar à luz. Um elo surge entre Mathilde e a cúpula da comunidade católica, a irmã Maria (Agata Buzek), que faz a transição aos poucos, para tentar quebrar as regras da vocação religiosa, tendo em vista que vidas correm perigo de serem ceifadas, diante das relações complexas aguçadas pelo perigo que farão delas cúmplices para um novo propósito de uma abertura da visão oculta e oblíqua que foram determinadas pelos ferrenhos dogmas religiosos, causando uma cegueira geral dentro do misticismo ofuscante para a liberação das ideias mais amplas.

O drama de Fontaine segue uma linha crítica encontrada também no magnífico enfoque dado pelo seu conterrâneo Bruno Dumont, em O Pecado de Hadewijch (2009), ao retratar uma jovem da classe alta que deseja ser freira e tem um envolvimento com dois irmãos muçulmanos que moram na periferia de Paris. A moça é uma católica que tem vocação, mas entra em conflito existencial ao descobrir outras religiões, percebe a fé e os conceitos de devoção contrários ao catolicismo pragmático que conhece e testa sua fervorosa e ardente obsessão, tendo como lema sua obstinação pela igreja. A cineasta francesa revela-se uma estudiosa da paixão mística, ao abordar com grande sensibilidade o extremismo religioso, com um olhar crítico avassalador. No centro do longa está uma devoção pelo catolicismo como fé inabalável, em que a vergonha e o medo da repercussão do escândalo na casa sagrada fazem com que a madre superiora também cometa atrocidades contra os recém-nascidos jogados nas intempéries da natureza, em que irão ao encontro da barbárie praticada pelos soldados desalmados quase na mesma proporção dos atos repugnantes e drásticos da irracionalidade mostrados na tela.

O filme flui por uma dramaticidade de forma autêntica, ao retratar o inevitável choque de ideias dogmáticas de uma ardente religião contrastando com a ciência médica representada por uma ateia, como símbolo civilizatório das vítimas estupradas em estado de penúria e fragilidade, com pouca opção de escolha para seus filhos no futuro. Outro drama que também mostra a religião em xeque foi abordado de forma notável em Ida (2013), de Pawel Pawlikowski, em que a trama é centrada numa jovem noviça que está pronta para prestar seu voto de castidade e tornar-se freira. Porém, antes do evento religioso, ela é instada pela madre superiora para visitar uma única pessoa restante de seus laços de família. Fontaine mostra os porões dos conventos e a inabalável fé cristã sendo corroída em seus alicerces pelos desatinos de selvagens homens que atacam mulheres como feras humanas num cenário sombrio de uma guerra sem precedentes éticos e morais. Pawlikowski retrata a religião fora do convento e o registro da invasão nazista durante a Segunda Guerra Mundial com o extermínio macabro de três milhões de judeus poloneses com a colaboração de antissemitas em detrimento do patriotismo, bem como o período stalinista de perseguição aos comunistas no governo de Varsóvia, além da importância fundamental de reconstrução do país pela Igreja Católica.

Agnus Dei tem um desfecho um tanto quanto discutível pela solução fácil e com requintes de melodrama com final feliz, embora não invalide o todo da realização, o filme questiona com uma boa reflexão os efeitos do estupro, a religião fervorosa para seus fiéis e seguidores voluntários ou induzidos, a guerra antiética e sem limites de mínima dignidade, o suicídio para pôr fim ao desespero do martírio da dor com a razão perdida e o bom senso que ficou pelo caminho evidenciado de um mundo de permanente busca, em que há contrariedades religiosas nos seus preconceitos, contradições e radicalismo. Ou optando por se fechar dentro dos muros como faz o catolicismo, sendo espreitado pela presença marcante da morte e da tristeza pelo olhar forte e uma posição firme da diretora sobre os dogmas religiosos e suas aberrações ultrapassadas de proselitismos e epifanias, com o uso inadequado dos seus adeptos pelo radicalismo exacerbado explorado com dignidade e elegância neste fascinante drama.

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