terça-feira, 14 de junho de 2016

Festival Varilux Cinema Francês (A Viagem de Meu Pai)


O Nefasto Alzheimer

Outro dos aguardados lançamentos neste Festival Varilux de Cinema Francês era a comédia dramática Flórida, batizada no Brasil como A Viagem de Meu Pai, dirigida com sobriedade e sensibilidade pelo competente Philippe Le Guay, que tem outros dois filmes de boas passagens pelos nossos cinemas: As Mulheres do Sexto Andar (2011) e o festejado Pedalando com Molière (2013). Seu último longa é uma viagem ao imaginário de um idoso que começa a perder a lucidez e mergulhar no mundo da fantasia, distanciando-se do cotidiano para oscilar entre a triste realidade e o sonho de um mundo de outrora e de reminiscências de um passado bem longínquo, mas que irá causar desconforto e perplexidade entre os mais próximos, como seus parentes atordoados com uma situação delicada num ambiente no qual se questiona pela dúvida lançada sem o ingrediente da zombaria.

A história é aparentemente simples, mas a complexidade do enredo está mais para uma reflexão dolorida do que para as diabruras do velhinho Claude Lherminier (Jean Rochefort- boa atuação) que aos 80 anos ainda conserva sua imponência de um lorde, apesar dos constantes ataques de confusão e esquecimento mental, mas que se recusa terminantemente a admitir. Já não é mais o famoso industrial respeitado pela credibilidade, foi obrigado a se aposentar por força da saúde dando mostras de um estágio debilitado. Como uma bomba que cai no colo, a filha Carole (Sandrine Kiberlain- impecável na interpretação com doação) travará uma batalha diária inglória e desgastante para cuidar do pai e evitar maiores dissabores com acidentes domésticos, pois ele não consegue viver sem a ajuda de enfermeiras, mas mesmo assim insiste em morar sozinho em sua bela mansão com suas obsessões e manias adquiridas, botando a correr todas suas zelosas cuidadoras, exceto a romena (Anamaria Marinca) que dará o pulo do gato.

Le Guay constrói um universo perverso advindo do tempo que passa, mas não deixa cair no melodrama fácil, deixando o bom humor e a sensibilidade das situações cômicas ingressarem como um doce amargor decorrente de uma acidez involuntária de uma vida que se esvai lentamente. Assim é o avanço da idade e os cuidados especiais que requerem, com a sugestão implícita do acometimento do nefasto Mal de Alzheimer através dos ocorrentes lapsos incuráveis de memória que se agravam ao longo do tempo, mas pode e deve ser tratado. O desenrolar do drama vivenciado pelo idoso através de sua visão, dará um ângulo correto pela distorção da enfermidade, criando fantasias como a viagem aos EUA para encontrar a filha caçula que morreu há mais de 10 anos; ou quando se arruma de maneira impecável para passar em revista sua antiga fábrica, sentando-se na mesa em que fora por muitos anos o dirigente máximo ali.

Como um novelo que se desenrola, o diretor vai lançando as situações diárias típicas de conflitos com as empregadas, o choque de frente com a filha e o atual namorado agredido várias vezes, tanto no psicológico como pelas vias de fato. O filme tem o viés da reflexão sobre a terceira idade e as peraltices causadas pela vítima da doença que aflora sem piedade e não como um elemento agressivo de quem tem as faculdades mentais sadias. Como referências de subsídios foram realizados dois outros notáveis filmes similares: Nebraska (2013), do independente diretor norte-americano Alexander Payne que brilhou ao contar uma peripécia semelhante, em que um idoso alcoólatra está convicto de que recebeu um bilhete premiado com prazo limitado para resgatar a fortuna, já com as ideias embaralhadas dando sinais de demência; o outro filme, bem mais próximo de Flórida, vem do Uruguai pelas mãos de Álvaro Brechner, o perturbador Sr. Kaplan (2012), com a leveza e a suavidade característica do autocrítico humor judaico, retrata com finesse cômica um senil ancião que acredita que há um alemão foragido nas praias uruguaias, vendendo refrigerante e peixes para a população. Mas há também outros cineastas preocupados com questões relacionadas à velhice, como nos magníficos longas argentinos Elsa & Fed (2005), de Marcos Carnevale, e Dois Irmãos (2009), de Daniel Burman.

A temática da perda da memória quase sempre tem um bom velhinho com atitudes mirabolantes, mas paradoxalmente por trás há uma doença devastadora que começa a atacar e destruir o cérebro, por consequência a razão, minando a consciência de forma inapelável para mergulhar no vazio existencial que acomete os idosos, principalmente os preconceitos na sociedade repressora de quem já não é mais jovem.  A Viagem de Meu Pai é primorosa nos detalhes das sutilezas do olhar desorientado e o corpo já debilitado pela idade, ficando acentuado o estrago pelo avanço da moléstia no protagonista, ao deixar a filha em maus lençóis, pois esta terá que tomar uma decisão: mantê-lo em casa e abdicar de viver com dignidade mínima, ou interná-lo num asilo especial para este tipo de doença. Eis uma realização dolorosa que traz uma insustentável leveza com sutileza na eficiente narrativa desta estupenda comédia agridoce, mas em que está embutida uma melancolia que arrebata o espectador com a crítica situação dentro de um contexto chocante e com os malefícios inerentes que irão fluir na tela de maneira inexorável pela reconstrução familiar buscada nos pequenos detalhes para uma amostragem que ganha tons de uma paranoia obsessiva. Há uma atmosfera equilibrada dos contrastes da liberdade e o medo da morte pela jornada de aventuras com uma magia peculiar.

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