quarta-feira, 22 de junho de 2016

O Botão de Pérola


Segredos do Mar

O cineasta chileno radicado na França Patricio Guzmán é um dos mais badalados documentaristas em atividade no cinema mundial. Dirigiu o fabuloso A Batalha do Chile (1975-1979), dividido em três partes, no qual passa a limpo o processo político-social anterior ao golpe militar de 1973 de seu país, bem como as nefastas consequências posteriores. É dele o invejável Nostalgia da Luz (2010), melhor documentário do European Film Awards, numa reflexão poderosa e profunda sobre os restos humanos encontrados no Deserto de Atacama, em uma grande mancha marrom da terra mais seca do planeta vista do espaço que funciona como uma porta de um triste passado.

O mais recente filme, O Botão de Pérola (2015), foi um dos premiados no Festival de Berlim no ano passado como melhor roteiro e Prêmio do Júri Ecumênico. É uma espécie de sequência por uma amostragem fiel de uma estrutura semelhante ao filme anterior, dando continuidade na abordagem do Golpe de Estado no Chile, sob o comando de Augusto Pinochet que destituiu Salvador Allende, em 11 de Setembro de 1973. Retrata com discernimento pela notável analogia da existência da espécie humana e suas origens relacionadas com a religião, a política e a ciência do infinito que se fundem pela filosofia, a arqueologia e a antropologia para propor uma metáfora vigorosa deste período nebuloso para os chilenos decorrentes de um inventário macabro. O realizador sutilmente troca de cenário, sai do Deserto de Atacama com o olhar para a terra e o céu e vai para o mar da Patagônia com os rochedos de pedra como paredões sinistros que se encontram com a Cordilheira os Andes.

O documentário começa explicando didática e professoralmente sobre a população indígena que habitou aquele lugar com quatro tipos de tribos; o poder e a importância da água no corpo humano e na terra, em que predomina majoritariamente, mas pouco se fala de sua importância. As entrevistas com alguns moradores da região entremeados com o depoimento de um poeta e os efeitos nefastos na ingenuidade do índio que foi para a Inglaterra num navio, voltou de lá e nunca mais foi o mesmo, sendo aculturado de maneira perversa, concluindo com a perda da identidade dele e dos nativos dali, ainda colaborou involuntariamente com os colonizadores na dizimação de seu povo. Com brilho poético, o cineasta demonstra toda sua sensibilidade para um mergulho sobre a existência humana e as questões dentro de uma relação de circunstâncias que acompanham os fatos e situações da política e as consequências sociais que faz abrir um debate contextualizado.

Na recente premiação em Berlim, em entrevista coletiva para a imprensa, Guzmán denota sua preocupação com o passado político, o que já fizera em Nostalgia da Luz, ao afirmar que: “Me interessa muito a geografia chilena e creio que se podem fazer metáforas por meio desses elementos. O que mais me interessa é a memória. Me interessa lutar contra a amnésia do Chile.” Por essa razão, faz toda uma construção pela geografia do país, o passado colonial com mortes e estupros de índios, para chegar até a ditadura imposta em 1973, que teve milhares de vítimas jogadas no mar, amarradas e empacotadas literalmente, com a intenção de não deixar vestígios das atrocidades. Mas o crime nunca é perfeito, como diz a velha máxima das investigações policiais, pois há a devolução de um corpo feminino desfigurado, que resultará em pesquisas e buscas no fundo do oceano com a descoberta de indicativos da truculência dos algozes que dominavam o poder. O desfecho do longa sinaliza para o título como o símbolo da aproximação, pois o objeto é marcante na barra de ferro presa no fundo do mar.

O mérito maior do documentarista é saber selecionar da série de depoimentos aqueles mais consistentes e adequados ao tema, sob o ponto de vista humano e com a força das descrições contadas pela boca de personagens do povo e por um intelectual sobre as marcas indeléveis colocadas na temática. Guzmán não é movido pelo discurso panfletário maniqueísta, longe disto, seu cinema busca o equilíbrio e a racionalidade do tema do tempo e da memória para um resgate histórico, pois sabe controlar e dar o tom na entrevista como um emérito questionador, ao deixar as pessoas à vontade para falarem algo interessante e os enigmas guardados com fervor e paixão pelos remanescentes que procuram manter suas vidas e dos seus familiares encravados naquela região com seus mistérios do passado. Um grande exemplo da narrativa sóbria é da velha índia que diz que eles não precisam de Deus e nem de polícia naquele lugar, falam com o coração e buscam soluções para as dúvidas mencionadas. Às vezes, em comoventes devaneios para continuar lutando com as forças que ainda restaram.

O Botão de Pérola tem a essência do cinema, diante das poderosas imagens captadas num cenário distante para dar cores fortes de uma realidade que existiu e deixou marcas por cicatrizes incuráveis que as informações desfilam na tela para o espectador refletir sobre uma brutalidade advinda de um processo deformado que atinge em cheio vidas que ficaram pelos caminhos tortuosos de um poder ilegítimo. Eis um espetacular registro sobre a história, através de uma narrativa em off descrita pelo próprio diretor, com uma fotografia fascinante para um estonteante cenário que serviu de palco para as barbáries covardes praticadas aos cidadãos contrários ao regime militar, que eram jogados dos aviões como se fossem objetos descartáveis. Mas sobram pistas oriundas do genocídio de opositores à tirania. Ali eram despejados para desaparecerem para sempre nas profundezas das águas salgadas apresentadas como um cemitério escondido para colocar presos políticos descontentes. Um ótimo documentário que possivelmente terá o terceiro ato para fechar a trilogia. Quem sabe no Estádio Nacional transformado em um campo de concentração do horror para 20.000 pessoas durante dois meses em Santiago?

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