Segredos do Mar
O cineasta chileno radicado na França Patricio Guzmán é um
dos mais badalados documentaristas em atividade no cinema mundial. Dirigiu o fabuloso
A Batalha do Chile (1975-1979),
dividido em três partes, no qual passa a limpo o processo político-social
anterior ao golpe militar de 1973 de seu país, bem como as nefastas
consequências posteriores. É dele o invejável Nostalgia da Luz (2010), melhor documentário do European Film
Awards, numa reflexão poderosa e profunda sobre os restos humanos encontrados
no Deserto de Atacama, em uma grande mancha marrom da terra mais seca do
planeta vista do espaço que funciona como uma porta de um triste passado.
O mais recente filme, O
Botão de Pérola (2015), foi um dos premiados no Festival de Berlim no ano
passado como melhor roteiro e Prêmio do Júri Ecumênico. É uma espécie de sequência
por uma amostragem fiel de uma estrutura semelhante ao filme anterior, dando
continuidade na abordagem do Golpe
de Estado no Chile, sob o comando de Augusto Pinochet que destituiu
Salvador Allende, em 11 de Setembro
de 1973. Retrata com discernimento pela notável analogia da existência
da espécie humana e suas origens relacionadas com a religião, a política e a
ciência do infinito que se fundem pela filosofia, a arqueologia e a
antropologia para propor uma metáfora vigorosa deste período nebuloso para os
chilenos decorrentes de um inventário macabro. O realizador sutilmente troca de
cenário, sai do Deserto de Atacama com o olhar para a terra e o céu e vai para
o mar da Patagônia com os rochedos de pedra como paredões sinistros que se
encontram com a Cordilheira os Andes.
O documentário começa explicando didática e professoralmente
sobre a população indígena que habitou aquele lugar com quatro tipos de tribos;
o poder e a importância da água no corpo humano e na terra, em que predomina
majoritariamente, mas pouco se fala de sua importância. As entrevistas com
alguns moradores da região entremeados com o depoimento de um poeta e os efeitos
nefastos na ingenuidade do índio que foi para a Inglaterra num navio, voltou de
lá e nunca mais foi o mesmo, sendo aculturado de maneira perversa, concluindo
com a perda da identidade dele e dos nativos dali, ainda colaborou
involuntariamente com os colonizadores na dizimação de seu povo. Com brilho
poético, o cineasta demonstra toda sua sensibilidade para um mergulho sobre a
existência humana e as questões dentro de uma relação de circunstâncias que
acompanham os fatos e situações da política e as consequências sociais que faz
abrir um debate contextualizado.
Na recente premiação em Berlim, em entrevista coletiva para a imprensa, Guzmán denota sua
preocupação com o passado político, o que já fizera em Nostalgia da Luz, ao afirmar que: “Me interessa muito a geografia
chilena e creio que se podem fazer metáforas por meio desses elementos. O que
mais me interessa é a memória. Me interessa lutar contra a amnésia do Chile.” Por
essa razão, faz toda uma construção pela geografia do país, o passado colonial
com mortes e estupros de índios, para chegar até a ditadura imposta em 1973,
que teve milhares de vítimas jogadas no mar, amarradas e empacotadas
literalmente, com a intenção de não deixar vestígios das atrocidades. Mas o
crime nunca é perfeito, como diz a velha máxima das investigações policiais,
pois há a devolução de um corpo feminino desfigurado, que resultará em
pesquisas e buscas no fundo do oceano com a descoberta de indicativos da
truculência dos algozes que dominavam o poder. O desfecho do longa sinaliza
para o título como o símbolo da aproximação, pois o objeto é marcante na barra
de ferro presa no fundo do mar.
O mérito maior do documentarista é saber selecionar da série
de depoimentos aqueles mais consistentes e adequados ao tema, sob o ponto de
vista humano e com a força das descrições contadas pela boca de personagens do
povo e por um intelectual sobre as marcas indeléveis colocadas na temática. Guzmán
não é movido pelo discurso panfletário maniqueísta, longe disto, seu cinema
busca o equilíbrio e a racionalidade do tema do tempo e da memória para um
resgate histórico, pois sabe controlar e dar o tom na entrevista como um
emérito questionador, ao deixar as pessoas à vontade para falarem algo
interessante e os enigmas guardados com fervor e paixão pelos remanescentes que
procuram manter suas vidas e dos seus familiares encravados naquela região com
seus mistérios do passado. Um grande exemplo da narrativa sóbria é da velha
índia que diz que eles não precisam de Deus e nem de polícia naquele lugar,
falam com o coração e buscam soluções para as dúvidas mencionadas. Às vezes, em
comoventes devaneios para continuar lutando com as forças que ainda restaram.
O Botão de Pérola tem
a essência do cinema, diante das poderosas imagens captadas num cenário
distante para dar cores fortes de uma realidade que existiu e deixou marcas por
cicatrizes incuráveis que as informações desfilam na tela para o espectador
refletir sobre uma brutalidade advinda de um processo deformado que atinge em
cheio vidas que ficaram pelos caminhos tortuosos de um poder ilegítimo. Eis um
espetacular registro sobre a história, através de uma narrativa em off descrita pelo próprio diretor, com
uma fotografia fascinante para um estonteante cenário que serviu de palco para
as barbáries covardes praticadas aos cidadãos contrários ao regime militar, que
eram jogados dos aviões como se fossem objetos descartáveis. Mas sobram pistas
oriundas do genocídio de opositores à tirania. Ali eram despejados para
desaparecerem para sempre nas profundezas das águas salgadas apresentadas como
um cemitério escondido para colocar presos políticos descontentes. Um ótimo
documentário que possivelmente terá o terceiro ato para fechar a trilogia. Quem
sabe no Estádio Nacional transformado em um campo de concentração do horror
para 20.000 pessoas durante dois meses em Santiago?
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