segunda-feira, 23 de maio de 2016

Demon


Festa Bizarra

Vem da Polônia em coprodução com Israel o magnífico thriller sobrenatural Demon, última realização do jovem promissor Marcin Wrona, 42 anos, que tem em sua filmografia o longa Batismo (2010). O cineasta foi encontrado morto em setembro de 2015, por enforcamento, no quarto do hotel que estava hospedado, tendo o inquérito policial concluído que houve suicídio. O fato ocorreu em meio ao badalado Festival de Gdynia, na Polônia, quando seria lançado pelo diretor este fabuloso terror psicológico mesclado com uma crítica social contundente, numa combinação bizarra de histórias de possessão com comédias durante a inusitada festa de casamento. Foi laureado como melhor filme no festival de cinema fantástico de Austin, nos EUA, além da calorosa recepção no Festival de Toronto.

A história é muito bem construída com subsídios exemplares num cenário propício de dias chuvosos acarretando um lodaçal e uma enorme retroescavadeira com alegóricos tentáculos assustadores para criar um clímax aterrorizante. É aberto um buraco enorme com uma ossada humana que dará sustentação para a trama fluir com uma desenvoltura digna dos clássicos do gênero, mas sem os sustos corriqueiros, os efeitos sonoros óbvios e as conclusões explicativas dos velhos clichês. Tudo começa quando o jovem inglês Piotr (Itay Tiran- excelente atuação do ator israelense) está prestes a se casar com a polonesa Zaneta (Agnieszka Zulewska), que conhece há pouco tempo. No dia da celebração do matrimônio, descobre em sua futura casa herdada do avô da noiva um esqueleto humano enterrado no terreno, que será coberto novamente. O protagonista passará a ter sensações estranhas e verá na festa uma segunda noiva, Hanna (Maria Debska), pela qual irá corporificar a figura da assombração tétrica, terá convulsões que serão confundidas com a sua bebedeira etílica. Falará em iídiche no transe da possessão, o que deixará os convidados estupefatos.

Demon faz um resgate dos fantasmas do passado e busca desenterrar e colocar em xeque até que ponto vai a responsabilidade da Polônia sobre os extermínio dos judeus, questionando o silêncio em forma de alegoria como uma maneira execrável de enterrar as atrocidades do Holocausto ocorrido na II Guerra Mundial. O discurso do sogro (Andrzej Grabowski) é revelador sobre como colocar na berlinda as causas e consequências decorrentes de um país que serviu de cenário para o maior genocídio da história da humanidade: “Vamos esquecer tudo aquilo que não vimos hoje”. Um médico divaga e tenta explicar os espasmos do noivo como patologias clínicas, já o padre descarta falar em exorcismo. Ambos negam a possibilidade de uma intromissão espiritual. A inverossimilhança do comportamento do rapaz faz do filme um contexto complexo bem além do que é sugerido entre a fé e razão através de uma narrativa com humor para atingir o horror que ali existiu.

Fica evidente a prática da consciência induzida de um povo para não querer o comprometimento, pois a ordem é esquecer e não revirar os cadáveres nas covas abertas. Esconder e amarrar o noivo no porão da casa, enquanto a música segue no celeiro contíguo à residência festiva para alegrar os convivas, sob o pretexto de não causar pânico, mas a histeria causada beirando a explosão da catarse coletiva é abafada flagrantemente, embora desmistificadora nas almas das vítimas que pululam e clamam para serem admitidas, tendo em vista que elas voltaram para cobrar uma posição e um comportamento de reconhecimento das lacunas pelas feridas abertas que continuam sufocadas pelo tempo.

Um filme que aprofunda questões com imagens elegantes e paradoxalmente repletas de mistério. A casa vazia serve de cenário para enquadramentos de suspense, como na cena dos noivos fazendo sexo na cama com a janela aberta e a presença dos intrusos convidados desfilando, bem como as crianças correndo pelos corredores em forma de labirintos, numa referência ao celebrizado O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick, ou ainda, da inesquecível possessão em O Exorcista (1973), de William Friedkin, Não é por acaso que Wrona foi buscar o compositor Krzysztof Penderecki, responsável pelas trilhas sonoras dos dois referidos clássicos para assinar a trilha de sua derradeira realização deixada como legado.

A narrativa visceral é um notável exemplo de uma história bem contada, numa trama com ingredientes para todos os gostos. Impressiona, perturba e instiga pela ousadia na mescla de gêneros, principalmente pela maneira como são colocados os fatos em consonância com os usos, costumes e a tradição dos poloneses, realçando-se as imagens na fascinante fotografia em tom pastel esmaecido para dar uma visão menos glamourizada dos acontecimentos. Não é um filme que aborda diretamente o genocídio judeu dos porões com as câmaras de gás e cadáveres, como visto recentemente em O Filho de Saul (2015), de László Nemes; ou pela virulência de Phoenix (2014), de Christian Petzold, sobre a história da sobrevivente judia desfigurada; ou ainda de Ida (2013), de Pawel Pawlikowski, no registro de uma defesa intransigente para uma verdade não tão absoluta passada pelas gerações. Demon tem uma trama que coloca o personagem central num delírio ancestral, faz o espectador ter uma visão aberta sobre uma triste época que não é para ser esquecida, através de metáforas, ao deixar fluir a parcialidade da nação em questão, visando elaborar uma posição mais crítica e menos escassa da realidade, mas que faz brotar o instinto de busca num alucinante mergulho de um passado brutal.

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