Festa Bizarra
Vem da Polônia em coprodução com Israel o magnífico thriller
sobrenatural Demon, última realização
do jovem promissor Marcin Wrona, 42 anos, que tem em sua filmografia o longa Batismo (2010). O cineasta foi
encontrado morto em setembro de 2015, por enforcamento, no quarto do hotel que
estava hospedado, tendo o inquérito policial concluído que houve suicídio. O
fato ocorreu em meio ao badalado Festival de Gdynia, na Polônia, quando seria
lançado pelo diretor este fabuloso terror psicológico mesclado com uma crítica
social contundente, numa combinação bizarra de histórias de possessão com
comédias durante a inusitada festa de casamento. Foi laureado como melhor filme
no festival de cinema fantástico de Austin, nos EUA, além da calorosa recepção
no Festival de Toronto.
A história é muito bem construída com subsídios exemplares
num cenário propício de dias chuvosos acarretando um lodaçal e uma enorme
retroescavadeira com alegóricos tentáculos assustadores para criar um clímax
aterrorizante. É aberto um buraco enorme com uma ossada humana que dará
sustentação para a trama fluir com uma desenvoltura digna dos clássicos do
gênero, mas sem os sustos corriqueiros, os efeitos sonoros óbvios e as conclusões
explicativas dos velhos clichês. Tudo começa quando o jovem inglês Piotr (Itay
Tiran- excelente atuação do ator israelense) está prestes a se casar com a polonesa
Zaneta (Agnieszka Zulewska), que conhece há pouco tempo. No dia da celebração
do matrimônio, descobre em sua futura casa herdada do avô da noiva um esqueleto
humano enterrado no terreno, que será coberto novamente. O protagonista passará
a ter sensações estranhas e verá na festa uma segunda noiva, Hanna (Maria
Debska), pela qual irá corporificar a figura da assombração tétrica, terá convulsões
que serão confundidas com a sua bebedeira etílica. Falará em iídiche no transe
da possessão, o que deixará os convidados estupefatos.
Demon faz um
resgate dos fantasmas do passado e busca desenterrar e colocar em xeque até que
ponto vai a responsabilidade da Polônia sobre os extermínio dos judeus,
questionando o silêncio em forma de alegoria como uma maneira execrável de
enterrar as atrocidades do Holocausto ocorrido na II Guerra Mundial. O discurso
do sogro (Andrzej Grabowski) é revelador sobre como colocar na berlinda as
causas e consequências decorrentes de um país que serviu de cenário para o
maior genocídio da história da humanidade: “Vamos esquecer tudo aquilo que não
vimos hoje”. Um médico divaga e tenta explicar os espasmos do noivo como patologias
clínicas, já o padre descarta falar em exorcismo. Ambos
negam a possibilidade de uma intromissão espiritual. A inverossimilhança do
comportamento do rapaz faz do filme um contexto complexo bem além do que é
sugerido entre a fé e razão através de uma narrativa com humor para atingir o
horror que ali existiu.
Fica evidente a prática da consciência induzida de um povo para
não querer o comprometimento, pois a ordem é esquecer e não revirar os cadáveres
nas covas abertas. Esconder e amarrar o noivo no porão da casa, enquanto a
música segue no celeiro contíguo à residência festiva para alegrar os convivas,
sob o pretexto de não causar pânico, mas a histeria causada beirando a explosão
da catarse coletiva é abafada flagrantemente, embora desmistificadora nas almas
das vítimas que pululam e clamam para serem admitidas, tendo em vista que elas
voltaram para cobrar uma posição e um comportamento de reconhecimento das
lacunas pelas feridas abertas que continuam sufocadas pelo tempo.
Um filme que aprofunda questões com imagens elegantes e
paradoxalmente repletas de mistério. A casa vazia serve de cenário para
enquadramentos de suspense, como na cena dos noivos fazendo sexo na cama com a
janela aberta e a presença dos intrusos convidados desfilando, bem como as crianças
correndo pelos corredores em forma de labirintos, numa referência ao celebrizado
O Iluminado (1980), de Stanley
Kubrick, ou ainda, da inesquecível possessão em O
Exorcista (1973), de William Friedkin, Não é por acaso
que Wrona foi buscar o compositor Krzysztof Penderecki, responsável pelas
trilhas sonoras dos dois referidos clássicos para assinar a trilha de sua
derradeira realização deixada como legado.
A narrativa visceral é um notável exemplo de uma história
bem contada, numa trama com ingredientes para todos os gostos. Impressiona,
perturba e instiga pela ousadia na mescla de gêneros, principalmente pela maneira
como são colocados os fatos em consonância com os usos, costumes e a tradição
dos poloneses, realçando-se as imagens na fascinante fotografia em tom pastel
esmaecido para dar uma visão menos glamourizada dos acontecimentos. Não é um
filme que aborda diretamente o genocídio judeu dos porões com as câmaras de gás
e cadáveres, como visto recentemente em O Filho de Saul (2015), de László Nemes; ou pela virulência de Phoenix (2014), de Christian Petzold, sobre a história da sobrevivente
judia desfigurada; ou ainda de Ida
(2013), de Pawel Pawlikowski, no registro de uma defesa intransigente para uma
verdade não tão absoluta passada pelas gerações. Demon tem uma trama que coloca o personagem central num delírio
ancestral, faz o espectador ter uma visão aberta sobre uma triste época que não
é para ser esquecida, através de metáforas, ao deixar fluir a parcialidade da
nação em questão, visando elaborar uma posição mais crítica e menos escassa da
realidade, mas que faz brotar o instinto de busca num alucinante mergulho de um
passado brutal.
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