sexta-feira, 19 de agosto de 2016

De Longe Te Observo


Relações Complexas

É inquestionável que o cinema latino-americano vem se consolidando nos grandes festivais internacionais da Europa. A Venezuela é um bom exemplo ao abrir espaços com produções bem realizadas. Assim foi com a diretora Mariana Rondon com Pelo Malo (2013), ao abocanhar vários prêmios, entre eles o de melhor longa no Concha de Ouro do Festival de San Sebastián, na Espanha. Agora é a vez do estreante Lorenzo Vigas Castes com De Longe Te Observo, ao arrebatar o Leão de Ouro no Festival de Veneza no ano passado, láurea concedida pela primeira vez para uma produção da América Latina. Os dois longas foram sucessos de público e crítica na Mostra de Cinema de São Paulo, nos anos de 2013 e 2015, respectivamente. Vem provar que existe vida inteligente também lá e não apenas na Argentina, Brasil, Uruguai, Colômbia e Chile que são polos respeitáveis em nosso continente.

O roteiro enxuto e seco é assinado pelo cineasta venezuelano em companhia do festejado roteirista mexicano Guillermo Arriaga, autor da história original que inspirou o enredo da trama, o mesmo das parcerias dos longas bem-sucedidos com o conterrâneo Alejandro González Iñárritu, consagrado diretor de Amores Brutos (2000), 21 Gramas (2003) e Babel (2006). O cenário é a cidade de Caracas, pobre e caindo aos pedaços, com níveis altíssimos de desemprego. O ator chileno Alfredo Castro, conhecido pelos papéis em Tony Manero (2008), No (2012) e O Clube (2015), todos de Pablo Larraín, interpreta admiravelmente o protagonista Armando, um sorumbático homem de meia-idade que é dono de um laboratório de próteses dentárias e tem por hábito espreitar rapazes em pontos de ônibus, levando-os para sua casa com recompensas de bom dinheiro para se masturbar e observá-los seminus, sem que haja aproximação carnal, num autêntico voyeurismo beirando a um patologismo mórbido.

Numa mescla de crítica social com suspense, Vigas Castes constrói um painel de um drama familiar de alta tensão psicológica, diante da obstinação desmesurada do personagem central em seguir obsessivamente seu pai, um empresário do alto escalão da sociedade, que retorna à capital venezuelana para seguir sua vida voltada para uma casta da sociedade que renega seus pares. Há o ressentimento explícito escancarado no filho pela incômoda ausência paterna pelos vínculos rompidos no passado, como se deduz pelo desenrolar da história que levará ao conturbado encontro com Elder (Luis Silva- ator estreante de ótima atuação que lhe rendeu premiação nos festivais de Biarritz e San Sebastián), que lidera uma gangue juvenil local, demonstra ser homofóbico, desconfiado e violento. Em um dos encontros, agride e rouba o dinheiro e um adorno da residência de Armando.

O filme retrata um complexo relacionamento entre os dois num contexto de mágoas e carências afetivas, com confissões íntimas e a revelação da prisão do pai do garoto num drama intimista que surpreende pelo ingrediente político encravado numa Venezuela envolvida numa crise social imensurável e caótica. Já no início do longa, observa-se cartazes da campanha presidencial de Nicolás Maduro contrastando com o desleixo e o submundo que a população habita pelo descaso do governo. O conservadorismo e o modo emblemático autoritário de Elder estão simbolizados no convívio com Armando e sua delirante patologia doentia, exprimem os dois personagens como metáforas do país no cenário atual de pouca perspectiva para o futuro. É um retrato típico do medo e da vingança embutidos nas entrelinhas da narrativa, porém é abordada como subterfúgios das circunstâncias que apresentam como indicativas da situação que desenha a cegueira dominante dos fatos e dos elementos intrínsecos de uma sociedade enferma. A sexualidade reprimida e a liberação dos sentimentos estão na falta do carinho, atenção e amor para o rapaz que busca referência masculina no enigmático amigo que se aproxima com segundas intenções para uma vingança sem culpa, mas que também sofre das mesmas carências afetivas, tanto da paterna como do Estado em decomposição sócio-econômica para seus filhos.

De Longe Te Observo tem um componente político forte e é realizado com muita sensibilidade pela eficiência, domínio de elenco para um neófito diretor que habilmente sabe usar as elipses precisas, mantendo consistência e coesão em uma performance acima da média na criação de personagens sólidos e psicologicamente bem construídos. Há uma descrição fiel num ambiente degradado pela falta de opção de trabalho, visto com muita sutileza e reflexão sobre um momento delicado que vive os venezuelanos neste manifesto da indignação de um sistema envelhecido pelo caudilhismo ultrapassado, pela amostragem de uma classe pobre sofrida e desamparada pela falta de condições básicas sociais numa realidade injusta com seu povo pela instabilidade anômala, diante da magnífica visão deste drama metafórico construído com pujante vigor sobre os vínculos afetivos corroídos, cuja câmera na mão percorre em um ritmo lento, mas necessário, assume uma posição de observadora dos fatos focados como se estivesse escondida na perseguição do seu objetivo de denúncia contundente no jogo estabelecido de desafios e enigmas para o desfecho inusitado.

Nenhum comentário: