segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Mostra de Cinema São Paulo (A Rede)


A Rede

A Rede é, talvez, o melhor filme da 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Com a estupenda direção do sul-coreano Kim Ki-duk, também autor do fascinante roteiro que sustenta uma narrativa sólida e equilibrada. Da sua filmografia destaca-se o sensível e comovente Primavera, Verão, Outono, Inverno e...Primavera (2003); depois realizou Casa Vazia (2004, 28ª Mostra), sobre um jovem sem rumo que costumava invadir casas estranhas quando os donos estavam fora, mas tudo muda quando encontra a proprietária no local; ousou de forma contundente com Pietá (2012), vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, obra vigorosa sobre a interação da família como núcleo e base contextualizada, o sadismo sem limites, o prazer pela dor, o sofrimento cruel do próximo e o papel da mãe em xeque, além do avanço brutal do capitalismo e da crise de valores.

O filme é uma aula de cinema pela maestria de um dos mais expressivos cineastas em atividade. A trama centraliza o foco num prosaico pescador (Ryoo Seung-Bum) que mora na Coreia do Norte com a mulher e uma doce criança. Mas num dia qualquer vê seu barco sofrer uma pane, após a rede se enrolar no motor, fica à deriva e vai parar em águas da Coreia do Sul, ultrapassando a fronteira dos dois países. Uma alegoria premonitória para o terrível drama que lhe espera, pois irá conhecer as profundezas do poder e os métodos de mecanismos pouco convencionais para uma nação capitalista democrática. Ao ser detido no país vizinho, é acusado de espião, passará por sessões de tortura com agressão explícita, física e psicológica. É obrigado a escrever várias vezes nos mínimos detalhes, à exaustão, o que fazia no seu país de origem. A busca do suicídio é uma tentativa desesperada de saída para escapar daquele martírio, ao relutar em dizer o que sabia, tendo vista que prestou serviços militares numa corporação do Exército.

Apenas seu segurança pessoal designado pelo governo acredita nele e cria-se uma relação estreita de cumplicidade e solidariedade. A forjada fuga não tem seu respaldo, pelo contrário, coloca-se contra e aposta na inocência de seu pupilo. O pescador conhece os encantos da deslumbrante Seul e seus avanços tecnológicos. Encontra uma prostituta em situação difícil, mas antes terá um fortuito encontro com um acusado de espionagem, que lhe passará uma missão para encontrar a filha e entregar um aparente e singelo poema. O enredo é instigante e não perdoa nenhum dos lados, fica neutro entre o capitalismo e o comunismo. Após ser submetido a severas investigações, sem provas cabais convincentes, o personagem central é enviado de volta para casa. Nestas alturas o caso já havia virado um incidente diplomático de grandes proporções entre as duas nações, com repercussão na imprensa internacional.

O drama com alta dosagem de suspense pela narrativa fiel, dura e seca, segue o caminho da dolorosa luta daquele homem simplório que perde a liberdade, mas não a dignidade até ser deportado com um motor novo no barco pesqueiro, um ursinho que recebeu de presente para dar à filha e alguns dólares do amigo guardião, o que lhe trará dissabores e mais encrencas. O calvário de tormentos continua no seu retorno tão desejado para os braços dos familiares. Novamente vira alvo de investigação por ter cedido às tentações do capitalismo, sendo mais uma vez interrogado com os mesmos, ou até piores, métodos de um ritual rigoroso, tendo que reescrever todo seu itinerário durante o período preso para averiguações e as ofertas para desertar. Até a esposa aparece com marcas da violência durante o período de ausência do marido. Nada se altera, tudo se repete e se copia. Tanto faz se é democracia ou regime de exceção, pelo olhar pessimista de Kim Ki-duk. O filme escancara a corrupção dos temidos militares norte-coreanos, que não perdem tempo em enfiar no bolso as notas verdinhas confiscadas do pescador e oriundas dos irmãos sulistas separados pela guerra.

O drama explicitado em A Rede comove o espectador como um míssil na boca do estômago, perturba pela exuberante narrativa das idiossincrasias dos governantes e seus poderes ilimitados que irão ao encontro da bestialidade humana, suplantando as feras selvagens das florestas intransponíveis. O desfecho violento, sem esperança e com tintas trágicas do indivíduo simples e honesto, como um marisco entre o rochedo e o mar, sendo a grande vítima, pois nunca mais será o mesmo, é um claro exemplo da desconstrução e da derrocada do indivíduo dentro da coletividade. A guerra entre países vizinhos afastados por um capricho de governos pedantes que deixam a arrogância sem freios invadir o universo da paz e das relações humanas civilizadas sendo atropeladas. O filme promete surpresas para o final, tendo no prólogo a cena do gancho que irá materializar a reveladora mentira dos opressores. Uma mini obra-prima que contextualiza a amargura e o pessimismo sobre as instituições cada vez mais desacreditadas.

Nenhum comentário: