A Rede
A Rede é, talvez,
o melhor filme da 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Com a estupenda direção
do sul-coreano Kim Ki-duk, também autor do fascinante roteiro que sustenta uma
narrativa sólida e equilibrada. Da sua filmografia destaca-se o sensível e
comovente Primavera, Verão, Outono,
Inverno e...Primavera (2003); depois realizou Casa Vazia (2004, 28ª Mostra), sobre um jovem sem rumo que
costumava invadir casas estranhas quando os donos estavam fora, mas tudo muda
quando encontra a proprietária no local; ousou de forma contundente com Pietá (2012), vencedor do Leão de Ouro
no Festival de Veneza, obra vigorosa sobre a interação da família como núcleo e
base contextualizada, o sadismo sem limites, o prazer pela dor, o sofrimento
cruel do próximo e o papel da mãe em xeque, além do avanço brutal do
capitalismo e da crise de valores.
O filme é uma aula de cinema pela maestria de um dos mais
expressivos cineastas em atividade. A trama centraliza o foco num prosaico pescador
(Ryoo Seung-Bum) que mora na Coreia do Norte com a mulher e uma doce criança. Mas num dia qualquer vê seu barco sofrer uma pane, após a rede se
enrolar no motor, fica à deriva e vai parar em águas da Coreia do Sul,
ultrapassando a fronteira dos dois países. Uma alegoria premonitória para o terrível
drama que lhe espera, pois irá conhecer as profundezas do poder e os métodos de
mecanismos pouco convencionais para uma nação capitalista democrática. Ao ser
detido no país vizinho, é acusado de espião, passará por sessões de tortura com
agressão explícita, física e psicológica. É obrigado a escrever várias vezes nos
mínimos detalhes, à exaustão, o que fazia no seu país de origem. A busca do
suicídio é uma tentativa desesperada de saída para escapar daquele martírio, ao
relutar em dizer o que sabia, tendo vista que prestou serviços militares numa
corporação do Exército.
Apenas seu segurança pessoal designado pelo governo acredita
nele e cria-se uma relação estreita de cumplicidade e solidariedade. A forjada
fuga não tem seu respaldo, pelo contrário, coloca-se contra e aposta na
inocência de seu pupilo. O pescador conhece os encantos da deslumbrante Seul e
seus avanços tecnológicos. Encontra uma prostituta em situação difícil, mas
antes terá um fortuito encontro com um acusado de espionagem, que lhe passará
uma missão para encontrar a filha e entregar um aparente e singelo poema. O
enredo é instigante e não perdoa nenhum dos lados, fica neutro entre o capitalismo
e o comunismo. Após ser submetido a severas investigações, sem provas cabais
convincentes, o personagem central é enviado de volta para casa. Nestas alturas
o caso já havia virado um incidente diplomático de grandes proporções entre as
duas nações, com repercussão na imprensa internacional.
O drama com alta dosagem de suspense pela narrativa fiel,
dura e seca, segue o caminho da dolorosa luta daquele homem simplório que perde
a liberdade, mas não a dignidade até ser deportado com um motor novo no barco
pesqueiro, um ursinho que recebeu de presente para dar à filha e alguns dólares
do amigo guardião, o que lhe trará dissabores e mais encrencas. O calvário de
tormentos continua no seu retorno tão desejado para os braços dos familiares.
Novamente vira alvo de investigação por ter cedido às tentações do capitalismo,
sendo mais uma vez interrogado com os mesmos, ou até piores, métodos de um
ritual rigoroso, tendo que reescrever todo seu itinerário durante o período
preso para averiguações e as ofertas para desertar. Até a esposa aparece com
marcas da violência durante o período de ausência do marido. Nada se altera,
tudo se repete e se copia. Tanto faz se é democracia ou regime de exceção, pelo
olhar pessimista de Kim Ki-duk. O filme escancara a corrupção dos temidos
militares norte-coreanos, que não perdem tempo em enfiar no bolso as notas
verdinhas confiscadas do pescador e oriundas dos irmãos sulistas separados pela
guerra.
O drama explicitado em A
Rede comove o espectador como um míssil na boca do estômago, perturba pela
exuberante narrativa das idiossincrasias dos governantes e seus poderes
ilimitados que irão ao encontro da bestialidade humana, suplantando as feras
selvagens das florestas intransponíveis. O desfecho violento, sem esperança e
com tintas trágicas do indivíduo simples e honesto, como um marisco entre o
rochedo e o mar, sendo a grande vítima, pois nunca mais será o mesmo, é um
claro exemplo da desconstrução e da derrocada do indivíduo dentro da coletividade.
A guerra entre países vizinhos afastados por um capricho de governos pedantes
que deixam a arrogância sem freios invadir o universo da paz e das relações
humanas civilizadas sendo atropeladas. O filme promete surpresas para o final,
tendo no prólogo a cena do gancho que irá materializar a reveladora mentira dos
opressores. Uma mini obra-prima que contextualiza a amargura e o pessimismo
sobre as instituições cada vez mais desacreditadas.
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