terça-feira, 1 de novembro de 2016

Mostra de Cinema São Paulo (O Apartamento)


O Apartamento

Um outro filme aguardado que correspondeu a expectativa depositada é o agradável O Apartamento, do cultuado cineasta iraniano Asghar Farhadi, que também assinou o enxuto roteiro, emprestando credibilidade para a calorosa recepção de público e crítica na 40ª. Mostra de Cinema de São Paulo. Venceu os prêmios de Melhor Roteiro e Melhor Ator no Festival de Cannes. O realizador dirigiu importantes títulos, tais como: Linda Cidade (2004, 28ª Mostra), o frenético e acolhedor À Procura de Elly (2009, 33ª Mostra), vencedor do Urso de Prata de Melhor Diretor no Festival de Berlim; o magnífico, talvez o melhor filme do diretor, A Separação (2011), primeiro iraniano a ganhar um Oscar estrangeiro, Globo de Ouro e Urso de Ouro em Berlim; e O Passado (2013), realizado na França.

A trama retrata um casal de atores que se vê obrigado a sair do apartamento com rachaduras onde vivem por causa de obras inadiáveis que deverão fazer, tendo em vista as escavações no terreno vizinho que comprometeram seu prédio. Emad (Shahab Hosseini) e Rana (Taraneh Alidoosti) se mudam para um novo flat no centro de Teerã. Mas a vida deles dá uma guinada com um suposto assalto com tentativa de morte que sofre a mulher, ao deixar a porta aberta, depois de tocar o interfone, por achar que era o companheiro que estava vindo para casa. Porém os fatos irão clareando do incidente, por estar ligado à antiga moradora que era prostituta. O cotidiano do povo iraniano é abordado novamente, através de uma história simples e complexa na essência, ao adquirir grande amplitude no desenrolar da trama.

O drama intimista dos personagens em foco é esmiuçado pelo diretor em dois momentos distintos pela importância da história no contexto. A vida real e a encenação no teatro, no qual os dois fazem parte como protagonistas da peça montada, transformando ficção e realidade como exponenciais alegóricos para o desenvolvimento bem urdido do roteiro proposto. O ataque violento à vitima por um desconhecido no banheiro é uma síntese alegórica da falta de justiça e da submissão das mulheres. Emad não se conforma com o ocorrido e faz uma meticulosa investigação por conta própria, com a finalidade de descobrir o malfeitor que atacou covardemente Rana.

No longa O Passado havia uma decorrência de A Separação com muitos personagens em comum. Não visava mostrar inocentes neste painel de erros, culpas e arrependimentos, onde todos estavam interligados numa babel de confrontos e acusações. Todavia, nem mesmo o que há como elementos fortes de ligação justificam as atitudes que ficam à deriva como consequência de um regime totalitário implantado como forma de subtrair ideias e manifestações livres e com os anseios que os acompanham. A temática é consistente aos planos intimistas do cineasta que se detém na abordagem moral familiar neste confronto de questões. Assim, como também nos filmes anteriores que desenvolviam um argumento que dava importância às palavras nos diálogos numa forma bem estruturada. Nesta última realização se repete este aspecto pelo olhar realista para um país de conceitos éticos duvidosos para uma justiça plena, inexistindo atitudes certas ou erradas, bem longe do maniqueísmo de alguns realizadores, mas que mantém com brilho significativo o conteúdo contextualizado.

O Apartamento toma contornos de um clímax com direcionamento para o suspense até descobrir quem é o verdadeiro culpado. Deveria ser uma ação do Estado a ser feita pela sua competência no âmbito investigatório, mas a sugestiva temática abordada se depara com elementos de culpa em consonância com a vingança, decorrente de uma justiça arcaica, inoperante e machista. Ou seja, a polícia não é acionada pela descrença na instituição falha, descompromissada e sem nenhum crédito dos cidadãos de bem. A vida imita a ficção artística e as situações se complementam e se fundem num regime totalitário, que aparentemente dá mostras de uma certa evolução, diante de alguma liberalidade teatral, embora sempre haja o medo dos homens do governo em fechar as portas da casa de espetáculos, como é bem enfatizado pela segura direção.

O desfecho com as luzes sendo apagadas, com as cadeiras frente a frente são símbolos de um resquício frequente da inquirição sem a ampla defesa nos tribunais e nos julgamentos no Irã de uma quase inexistente justiça. Tanto no aspecto legal sem a sustentação dos pilares básicos da legitimidade dos parâmetros de uma boa defesa para uma condenação justa, se for o caso. É o que se observa pela metáfora lançada na tela. O escuro e o silêncio são elementos indispensáveis que contribuem para o drama e as angústias de imenso sofrimento que ainda restam como sombras permanentes da tortura ainda viva para todos, neste ótimo filme de Farhadi.

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