Resgate e Tributo
Vencedor da premiação paralela Olho de Ouro no Festival de
Cannes deste ano, o instigante documentário Cinema
Novo conta a história do mais relevante movimento cinematográfico
brasileiro, ocorrido nos anos de 1960, que projetou nosso país no universo
mundial. São 90 minutos de pura magia e beleza apresentado pelo diretor Eryk
Rocha, 38 anos, filho de Glauber Rocha, um dos idealizadores e divulgadores
exponenciais de uma era artística que já merecia o resgate, tendo em vista que
foi importante para nossa autoestima, bem como para a evolução de nosso cinema,
com imagens poderosas de clássicos de arquivos e trechos de 130 filmes, como Rio, 40 Graus (1955), Vidas Secas (1963), Terra em Transe (1968),
Macunaíma (1969), entre tantas realizações agora homenageadas para não cair
no esquecimento e reativar a memória, através da rigorosa montagem poética de
Renato Vallone.
Diretor de Rocha que
Voa (2002), Transeunte (2010) e Campo de Jogo (2015), Eryk Rocha
recupera entrevistas de cineastas que estiveram envolvidos e consagraram o
movimento homônimo, tais como: Gustavo Dahl, Mário Carneiro e Paulo Cezar
Saraceni, apenas pelas suas vozes, pois ao ser montado o filme, o realizador
optou em não colocar imagens atuais deles por já serem falecidos, exceto as antigas. É feito um estudo
profundo e vai até os primórdios da história cinematográfica brasileira para
evoluir até o Cinema Novo, traz para subsidiar O Limite (1931), de Mário Peixoto. Faz uma saudação especial ao
pioneiro Humberto Mauro, falecido em 1983, para chegar até os expoentes Ruy Guerra, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, David Neves,
Walter Lima Jr., Orlando Senna, Geraldo Sarno, Alex Viany, Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, Zelito Viana e o crítico Paulo Emílio Salles Gomes, até chegar a Luiz Carlos Barreto, o maior
produtor em atividade, mas sem esquecer e ter um carinho todo especial com o pai,
Glauber Rocha, e sua célebre frase: “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”,
numa defesa intransigente da utilização dos meios de produção artística a
serviço da transformação social.
Cinema Novo dialoga com as novas gerações,mas sem esquecer da
velha guarda que acompanhou e prestigiou aquela fome por inovar o cinema
brasileiro. É um fascinante tributo de amor e paixão pelas cores verdes
amarelas transformadas em anseios e dificuldades, às vezes regionalizadas, em
outras universais como os temas reivindicatórios de uma nação que foi sufocada pelo
Ato Institucional nº. 5, o abominável AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968,
pelo duro golpe da ditadura militar. Um digno retrato dos protestos nas ruas e os jogos de futebol com
Garrincha como símbolo. Fala das religiões, profanando ou não, e suas
implicações alienantes no contexto nacional. Um movimento que tinha, e por isto
foi marcante, um grau de preocupação e engajamento com as dificuldades socioeconômicas
e políticas. Tem em Antônio das Mortes com seu trágico destino de
matador de cangaceiro em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969),
de Glauber Rocha, vencedor do Festival de Veneza, alegórico e sintetizador das
realizações anteriores, como denúncia do imperialismo multinacional e das
elites na manutenção do subdesenvolvimento e da pobreza brasileira.
O documentário retrata com precisão e detalhes cronológicos a
evolução do cinema na essência da estética com planos, contraplanos, closes e
planos sequências longos, bem como é além de tudo, uma declaração pública da
construção de um legado inesquecível pelo ponto de vista político com imagens
do passado até o presente, para aproximar e desvendar enigmas para o espectador
mais atento e preocupado com a cultura de nosso país, tão vilipendiada e
massacrada por alguns governos paraquedistas. Além de uma análise importante, prólogo
e epílogo têm a mesma sequência do lendário Deus
e o Diabo na Terra do Sol (1963), há uma similitude com o movimento musical
no documentário Tropicália (2012),
que revelou como lideranças Caetano Veloso e Gilberto Gil, a partir de 1967, do
diretor Marcelo Machado, que também resgata uma fase cultural quase esquecida
na história do Brasil, onde fervilhavam os festivais de músicas populares, numa
época difícil na vida dos brasileiros que viviam amordaçados pelo regime
ditatorial implantado, e que tinha a simpatia de Glauber Rocha ao Tropicalismo. Mostrava o realismo e a
nitidez de tempos antagônicos culturalmente, com a imposição de uma censura não
só dos militares como dos próprios artistas de outras matizes, que não
entendiam o que estava acontecendo, mas que deixou raízes e veio para ficar,
abrir cabeças fechadas e vislumbrar novos horizontes.
O Neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa estão no
contexto de Cinema Novo e as influências
da Europa para marcar os fragmentos que constituem o todo de nossa
cinematografia brasileira. São os subsídios buscados no Exterior que
alavancaram para uma evolução e um certo amadurecimento de nossos cineastas,
tanto na estética como no conteúdo enriquecedor que teve como espírito objetivo
para se chegar até a integração por uma geração que inventou uma nova forma de
filmar e fazer cinema autoral. Uma aula de conhecimentos retirados da história
para ser sorvido como uma boa reflexão de riqueza artística que está sempre se
modificando para dar luzes de estímulos e recompensas. Eis um registro
importante advindo de um olhar pela observação atenta de um diretor promissor
neste belo filme-ensaio de coerente narrativa de uma coletânea construída com
consistência e amor com marca própria.
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