quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Cinema Novo


Resgate e Tributo

Vencedor da premiação paralela Olho de Ouro no Festival de Cannes deste ano, o instigante documentário Cinema Novo conta a história do mais relevante movimento cinematográfico brasileiro, ocorrido nos anos de 1960, que projetou nosso país no universo mundial. São 90 minutos de pura magia e beleza apresentado pelo diretor Eryk Rocha, 38 anos, filho de Glauber Rocha, um dos idealizadores e divulgadores exponenciais de uma era artística que já merecia o resgate, tendo em vista que foi importante para nossa autoestima, bem como para a evolução de nosso cinema, com imagens poderosas de clássicos de arquivos e trechos de 130 filmes, como Rio, 40 Graus (1955), Vidas Secas (1963), Terra em Transe (1968), Macunaíma (1969), entre tantas realizações agora homenageadas para não cair no esquecimento e reativar a memória, através da rigorosa montagem poética de Renato Vallone.

Diretor de Rocha que Voa (2002), Transeunte (2010) e Campo de Jogo (2015), Eryk Rocha recupera entrevistas de cineastas que estiveram envolvidos e consagraram o movimento homônimo, tais como: Gustavo Dahl, Mário Carneiro e Paulo Cezar Saraceni, apenas pelas suas vozes, pois ao ser montado o filme, o realizador optou em não colocar imagens atuais deles por já serem falecidos, exceto as antigas. É feito um estudo profundo e vai até os primórdios da história cinematográfica brasileira para evoluir até o Cinema Novo, traz para subsidiar O Limite (1931), de Mário Peixoto. Faz uma saudação especial ao pioneiro Humberto Mauro, falecido em 1983, para chegar até os expoentes Ruy Guerra, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, David Neves, Walter Lima Jr., Orlando Senna, Geraldo Sarno, Alex Viany, Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, Zelito Viana e o crítico  Paulo Emílio Salles Gomes, até chegar a Luiz Carlos Barreto, o maior produtor em atividade, mas sem esquecer e ter um carinho todo especial com o pai, Glauber Rocha, e sua célebre frase: “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, numa defesa intransigente da utilização dos meios de produção artística a serviço da transformação social.

Cinema Novo dialoga com as novas gerações,mas sem esquecer da velha guarda que acompanhou e prestigiou aquela fome por inovar o cinema brasileiro. É um fascinante tributo de amor e paixão pelas cores verdes amarelas transformadas em anseios e dificuldades, às vezes regionalizadas, em outras universais como os temas reivindicatórios de uma nação que foi sufocada pelo Ato Institucional nº. 5, o abominável AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, pelo duro golpe da ditadura militar. Um digno retrato dos protestos nas ruas e os jogos de futebol com Garrincha como símbolo. Fala das religiões, profanando ou não, e suas implicações alienantes no contexto nacional. Um movimento que tinha, e por isto foi marcante, um grau de preocupação e engajamento com as dificuldades socioeconômicas e políticas. Tem em Antônio das Mortes com seu trágico destino de matador de cangaceiro em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), de Glauber Rocha, vencedor do Festival de Veneza, alegórico e sintetizador das realizações anteriores, como denúncia do imperialismo multinacional e das elites na manutenção do subdesenvolvimento e da pobreza brasileira.

O documentário retrata com precisão e detalhes cronológicos a evolução do cinema na essência da estética com planos, contraplanos, closes e planos sequências longos, bem como é além de tudo, uma declaração pública da construção de um legado inesquecível pelo ponto de vista político com imagens do passado até o presente, para aproximar e desvendar enigmas para o espectador mais atento e preocupado com a cultura de nosso país, tão vilipendiada e massacrada por alguns governos paraquedistas. Além de uma análise importante, prólogo e epílogo têm a mesma sequência do lendário Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), há uma similitude com o movimento musical no documentário Tropicália (2012), que revelou como lideranças Caetano Veloso e Gilberto Gil, a partir de 1967, do diretor Marcelo Machado, que também resgata uma fase cultural quase esquecida na história do Brasil, onde fervilhavam os festivais de músicas populares, numa época difícil na vida dos brasileiros que viviam amordaçados pelo regime ditatorial implantado, e que tinha a simpatia de Glauber Rocha ao Tropicalismo. Mostrava o realismo e a nitidez de tempos antagônicos culturalmente, com a imposição de uma censura não só dos militares como dos próprios artistas de outras matizes, que não entendiam o que estava acontecendo, mas que deixou raízes e veio para ficar, abrir cabeças fechadas e vislumbrar novos horizontes.

O Neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa estão no contexto de Cinema Novo e as influências da Europa para marcar os fragmentos que constituem o todo de nossa cinematografia brasileira. São os subsídios buscados no Exterior que alavancaram para uma evolução e um certo amadurecimento de nossos cineastas, tanto na estética como no conteúdo enriquecedor que teve como espírito objetivo para se chegar até a integração por uma geração que inventou uma nova forma de filmar e fazer cinema autoral. Uma aula de conhecimentos retirados da história para ser sorvido como uma boa reflexão de riqueza artística que está sempre se modificando para dar luzes de estímulos e recompensas. Eis um registro importante advindo de um olhar pela observação atenta de um diretor promissor neste belo filme-ensaio de coerente narrativa de uma coletânea construída com consistência e amor com marca própria.

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