terça-feira, 24 de maio de 2022

Tre Piani

 

Angústias Familiares

O festejado cineasta Nanni Moretti flutua entre os dramas familiares e filmes religiosos, políticos e sociais como O Crocodilo (2006), quando abordou o ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi, que teve sua imagem abalada sem perdão, questionou a escolha do papa em Habemus Papam (2011) com boa dose de humor e ironia fina, ao discorrer sobre a eleição do Sumo Pontífice realizada entre os cardeais na escolha do vacilante Melville, como já o fizera em A Missa Acabou (1985), ao satirizar a igreja através de um complicado padre na periferia de Roma. Ganhou o Prêmio do Júri em Cannes com Mia Madre (2015), num retorno às origens de abordagens profundas sobre a morte e a forte sensação da perda pelas lembranças pretéritas, bem como o que poderia ter feito e não fez para quem partiu, quase um remorso instintivo dos que ficaram. Uma análise sincera e despojada das picuinhas que remanesceram da existência e sua complexidade, como fez no drama O Quarto do Filho (2001), possivelmente sua obra maior, sendo premiado com a Palma de Ouro em Cannes, na história do psicanalista residente em Ancona, tem dois filhos, até que uma tragédia o transtorna completamente, por deixar de acompanhar o filho à praia, e que acabou morrendo afogado. Moretti gosta de usar situações que vivenciou para incrementar suas realizações de cunho pessoal, assim foi em Caro Diário (1993), Aprile (1998) e Mia Madre, drama este que o faz relembrar a morte de sua própria mãe durante as filmagens de Habemus Papam.

Retorna agora em grande estilo no drama Tre Piani (em tradução livre significa Três Andares) ao retratar três famílias que vivem no mesmo condomínio de classe média alta, e suas vidas acabam ardilosamente se entrelaçando. No impactante prólogo, o jovem Andréa (Alessandro Sperduti) dirige o carro embriagado, atropela e mata um pedestre ao desviar para evitar bater em Monica (Alba Rohrwacher), uma gestante que estava indo para o hospital ao romper a bolsa. Está sempre sozinha, pois o marido vive viajando a trabalho, tem na filha a única companhia até surgir o cunhado, um vigarista simpático. A solidão faz com que ela imagine muitas coisas, o que a deixa ainda mais tensa porque pensa que pode ter herdado da mãe problemas mentais. Os pais de Andréa são os juízes Vittorio (Nanni Moretti) e Dora (Margherita Buy). A doce mãe quer ajudar o filho, mas o austero e inflexível pai não faz nada, por entender que ele é o culpado e terá que pagar pelo crime, numa espécie de reserva moral incorruptível. Na sequência, o rapaz acaba também batendo o carro no imóvel de Lucio (Riccardo Scamarcio) e sua esposa Sara (Elena Lietti), que tem uma filha pré-adolescente que frequenta a casa da vizinhança, pois seus pais estão sempre ocupados com seus afazeres profissionais. A garotinha chama o vizinho de avô, um idoso (Paolo Graziosi) com demência, que mora com a neta adolescente (Denise Tantucci). Porém, um inusitado incidente no parque desperta em Lucio a suspeita de que sua filha poderia ter sido abusada sexualmente, dúvida que irá persistir por quase toda sua vida.

O longa foi baseado no livro homônimo do escritor israelense Eshkol Nevo. O diretor, que escreveu o roteiro em parceria com Valia Santella, traz o cenário de Tel Aviv para Roma de maneira admirável, embora pudesse pelas circunstâncias conduzir a trama para um filme menor com demagogias baratas e lacrimejantes, mas habilmente foge das armadilhas piegas e faz uma obra espetacular com cenas marcantes, como dos casais dançando na rua. Cada um dos moradores do prédio, enquanto os anos passam pela narrativa que dá saltos de cinco em cinco anos, no qual todos terão suas vidas transformadas e irão avançar no tempo. As pessoas crescem, tanto na idade como em suas maneiras de vida através de mudanças de hábitos, para gradualmente buscarem um lampejo de paz, em alguns casos; estender o perdão para refazer as relações, em outros. Moretti é hábil ao apresentar o pai obcecado pelo suposto estupro de sua filha vulnerável, mas o mesmo acaba se envolvendo com a adolescente desmiolada. Passa com sensibilidade as agonias e devaneios à flor da pele com ingredientes delicados e demolidores até chegar ao epílogo transformador.

Neste grande mosaico construído por uma gama enorme de personagens em ciclos de amor e ódio, em que as histórias são de desencontros e aflições da vida no universo do cotidiano, com luzes de esperanças contrapondo com desesperanças, em muitas vezes. O medo do presente traz os fantasmas do passado que atormentam paulatinamente pelas recordações que fragilizam um futuro incerto povoado de temores pelas referências do destino ingrato. A solidão vem acompanhada pelas mazelas de um mundo conturbado que provoca um grande vazio existencial da maioria dos personagens em foco. Tre Piani é uma grande babel que resulta neste filme significativo de qualidade superior, que mostra com extrema profundidade os desencantos da humanidade através de uma abordagem madura, transparente e equilibrada pelo olhar atento do realizador sobres os dramas pessoais em que as desavenças acabam sendo retratadas pelas reveladoras imagens na busca do equilíbrio para o convívio harmonioso.

O cineasta traça com sutileza um retrato com realismo sem metáforas para tentar entender a subtração marcante daquelas famílias em seus microcosmos amargurados como decorrência da solidão e dos vínculos estremecidos em vias de ruínas. Dilacera e mergulha nos momentos conturbados do cotidiano carregado de problemas sociais e complexos oriundos de uma sociedade em desconstrução universal de seus habitantes, embora o desfecho traga um sopro de esperança e vida de continuidade e renascimento através da simbolização da criança. O diretor dá o recado ao mostrar a manutenção da herança infinita familiar de valores a serem seguidos, mesmo que num lugar quase que inacessível, mas em que a natureza propicia o reencontro com a vida e a dignidade como elementos sublimes e maiores da perseverança. A narrativa tem o naturalismo exposto como vísceras expostas da decadência humana intensa, embora bergmaniano na abordagem proposta como o envelhecimento, morte e solidão, além das superações diárias, tem na forma e na estética criativa os traços singulares da marca registrada do mestre italiano com seu estilo do controle preciso de tempo e intensidade com notável construção psicológica na complexidade dos personagens focados como conexões numa teia de aranha. Há perdas, culpa, arrependimentos, renovações e desajustes pelas decepções e sofrimentos familiares na essência da abordagem reflexiva deste drama estupendo.

Um comentário:

Marcelo Castro Moraes disse...

Ainda preciso ver esse filme