Ídolo Reverenciado
Empolgante com muito frenesi e emoção à flor da pele, politicamente incorreto, assim é a cinebiografia Elvis que conta a vida e a carreira artística do músico que se torna o Rei do Rock’n’Roll. Interpretado por Austin Butler, em atuação antológica e irretocável, oferece uma performance treinada por dois anos com carisma e magnetismo bem próximos de Elvis Presley. O diretor australiano de 59 anos Baz Luhrmann traz novamente sua marca registrada característica de filmes eletrizantes com sensações intensas e de visual forte, entre os quais estão Vem Dançar Comigo (1992), Romeu+Julieta (1996), Moulin Rouge (2001), Austrália (2008) e O Grande Gatsby (2013). Os desafios para uma obra com a complexidade da trajetória do biografado e seus malabarismos de palco com inúmeras imitações foram um grande desafio para o cineasta e toda a reverência deste fenômeno cultural que ainda causa suspiros em seus abnegados fãs, embora ele tenha dito no transcorrer do longa como um desabafo angustiante: “ninguém vai se lembrar de mim, nunca fiz nada duradouro, nunca fiz um filme clássico”.
O realizador faz uma narrativa admirável, com seu olhar pessoal, do astro nascido em 1935, e morto em 16 de agosto de 1977, na cidade de Memphis, situada às margens do rio Mississipi, no sudoeste do Tennessee (EUA), famosa pela influência de blues, soul e rock'n'roll que lá se originaram. O filme mostra a admiração de Elvis por B.B. King, Johnny Cash, Big Mama Thornton, Little Richard e Fats Domino, pois eles gravaram álbuns no lendário Sun Studio. A mansão Graceland da família Presley ainda é uma das grandes atrações local. O cantor gravou 18 canções, terceiro que mais vendeu discos, atrás apenas dos Beatles e de Michael Jackson. Participou de 31 filmes sem grande sucesso como ator. Seu show especial na TV Aloha From Havai em 1973 superou a audiência do homem descendo na Lua em 1969.
Construído de maneira que beira uma denúncia, numa descrição contundente, às vezes poética e em outras reveladoras, faz um passeio pela conturbada trajetória do personagem-título, através de versões e fatos que marcaram sua existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço viciado de simplesmente contar uma história recheada de futilidades. Ou explicar didaticamente situações evidentes, imprime ótima velocidade num clímax certeiro para impactar a plateia. Lança um olhar sombrio de lembranças do passado, sem deixar de mostrar o início da carreira e seus derradeiros dias, já abalado por crises existenciais como a enfermidade da alma em frangalhos, tentando voltar aos palcos que o legitimou como um autêntico personagem de show business com sua técnica perfeita de palco através de seu rebolado e interpretação que levava seus fãs para uma catarse coletiva. Priscila (Olivia DeJonge) foi o grande amor de sua vida, desde os 14 anos, fonte de inspiração e uma das pessoas mais importantes para ele, que resultou no nascimento de uma filha. Mesmo em um papel secundário, demonstra atormentação pela fragilidade da saúde do companheiro decorrente das intoxicações por medicações fortes para mantê-lo sempre em pé e disponível para cantar e encantar seu público com os hits Suspicious Mind, I Can’t Help Falling in Love, e a última canção Unchained Melody, entre tantos com toda aquela energia pulsante, pouco se importando com dinheiro.
Luhrmann enfatiza as cenas de maneira impactante para atingir em cheio os sentidos auditivos e visuais com uma estrondosa pirotecnia estética exagerada de colagens, cores e sons, com movimentos alucinados de câmeras com elipses de edição às mancheias, porém palatável para quem venera o ídolo, pouco se importando com sutilezas e carícias agradáveis. Nada é implícito, tudo é explícito, sem ironias finas, mas com denúncias para fustigar e perturbar mesmo o espectador, desde a juventude com seus ternos cor de rosa, passando pelo uniforme militar e as roupas pretas de couro. Instiga com a morte precoce da mãe, o alistamento no Exército, a ida coagida para Alemanha por dois anos, logo após fazer um show que buscava a liberdade de expressão para dançar e requebrar sem as amarras da censura. Inspirou-se desde a infância na música de origem negra e nas lembranças de um pastor evangélico que entrava em transe nos cultos. Esta mescla usada com o objetivo de cantar deste futuro showman incomodava os conservadores e as famílias tradicionais de uma sociedade hipócrita machista, recheada de tabus, além do viés racista. Há momentos históricos retratados de uma época marcada pela violência como o assassinato de Martin Luther King em Memphis, passa pelas tragédias da atriz Sharon Tate e o senador Robert Kennedy, vitimados pela intolerância e o ódio intransigente.
Elvis é um retrato pungente documentado da vida amarga de uma estrela e sua fervorosa vocação como cantor, com todo seu magnetismo e brilho pessoal inigualável no universo cultuado do rock’n’roll que o tornou uma majestade cultuada até hoje. Uma ode para os apreciadores da arte na companhia de um genial artista com suas dolorosas lacunas pela vida nas armadilhas do destino neste belo tributo. Está bem acima de Bohemian Rhapsody (2018), de Bryan Singer e Dexter Fletcher, que mostrou no filme biográfico o cantor britânico Freddie Mercury e o grupo de rock Queen, de maneira superficial e pouca coragem para uma abordagem mais profunda; supera Rocketman (2019), de Dexter Fletcher, que segue desde a origem de Elton John até a relativa libertação dos problemas que teve na infância, a relação com o compositor e parceiro profissional Bernie Taupin e o empresário e ex-amante John Reid.
O mérito da trama que acompanha décadas da vida do artista é não esconder nada, desde a ascensão à fama, até as tentativas de retorno como objetivo maior, para relembrar os episódios inesquecíveis de sua consagrada carreira. Inclusive o relacionamento tóxico com seu empresário controlador, Coronel Parker (Tom Hanks, ótima atuação com enchimentos e próteses para torná-lo uma figura caricata). O mergulho na dinâmica entre eles por mais de 20 anos de parceria, numa turnê pelos EUA, especialmente num hotel internacional em Las Vegas. Aflora em tom de indignação o mau-caratismo deste pseudoprofissional, apátrida, sem passaporte, um sanguessuga que deixaria indeléveis cicatrizes com marcas eternas no destino da vida do cantor que nunca fez show ou turnê fora dos Estados Unidos. As escolhas difíceis de Elvis que o marcou como uma saga tortuosa estão presentes nos problemas com cobranças severas do seu mentor, bem retratadas como elemento central da trama. A frustração de um sonho que levou para o túmulo diante das idiossincrasias daquele a quem confiou como um segundo pai, pois o seu verdadeiro era uma pessoa subserviente, que só acordou e tomou pulso da situação com a morte do filho, então foi buscar na justiça ressarcimento dos milhões de dólares surrupiados pelo Coronel Parker em contratos absurdos para benefício próprio. Mesmo negando as falcatruas realizadas sob a ótica do empresário bonzinho, fica evidente que o artista se tornou uma figura manipulada. Um filme intenso e arrebatador.
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