A Liberdade
O premiado cineasta Asghar Farhadi se notabilizou por realizações voltadas para seus conterrâneos, através de obras em que aborda os conflitos sociais do dia a dia, os aspectos morais da sociedade conservadora, as imposições religiosas, além de lançar um olhar sobre as gerações futuras e as relações com o passado. Assim foi com o inesquecível, talvez seu melhor filme, A Separação (2011), em que é o primeiro iraniano a ganhar o Oscar de Filme Internacional, Globo de Ouro e Urso de Ouro em Berlim. Depois viria conquistar novamente o Oscar em língua estrangeira com o admirável O Apartamento (2016), vencendo ainda em melhor roteiro e melhor ator no Festival de Cannes. Tem em sua filmografia importantes títulos, tais como o frenético e acolhedor À Procura de Elly (2009), ganhador do Urso de Prata de Direção no Festival de Berlim; O Passado (2013) abocanhou o prêmio do júri ecumênico no Festival de Cannes, tendo sido sua primeira produção fora do Irã, com rodagem na França, testou suas habilidades em outra cultura. Mostrou-se um realizador voltado essencialmente para as coisas do cotidiano conflitado de seu país, embora bem distante de seu povo, não se afastou das relações intrincadas com a tradicional naturalidade. Todos Já Sabem (2018) foi seu penúltimo longa, agora em língua espanhola, reitera sua universalidade depois da experiência exitosa em francês, num misto de drama com thriller policial.
Laureado em Cannes com o Prêmio do Júri, Um Herói, lançado no Festival Varilux, segue a trajetória narrativa semelhante aos dramas anteriores A Separação e O Apartamento. Aborda a história de Rahim Soltani (Amir Jadidi, de estupenda interpretação), um calígrafo que está preso por conta de uma dívida que não conseguiu pagar, mas que ao ganhar um benefício de dois dias fora da prisão, tenta convencer o seu credor a retirar a queixa, oferecendo o pagamento de parte do valor devido. Com o auxílio da namorada, Farkhondeh (Sahar Goldtur), que esboça apenas um sorriso no frio encontro diante da proibição do contato físico entre homens e mulheres no país, um obstáculo a mais para se filmar que é repassado pelo diretor ao espectador. Assim como é vetado no cinema lá realizado à dispensa do xador que deixa apenas os olhos sem proteção, embora o cenário seja na distante Shiraz, no sudoeste do país. A origem do dinheiro para pagar o empréstimo é uma sacola de moedas de ouro encontrada numa parada de ônibus, que é trocada em espécie em uma loja de câmbio de acordo com a valorização do dia, mas que dá apenas para pagar metade da dívida para o agiota.
Antes, Farhadi coloca a situação como dúvidas éticas e morais do endividado quanto ao direito de usufruir das moedas. Ingenuamente, ele espalha cartazes procurando o verdadeiro dono, após tentar vender e descobrir que a cotação está em baixa. Inevitavelmente surge uma vigarista que conta um melodrama familiar, alegando que seriam economias guardadas e escondidas de um suposto marido inconfiável. Diante da devolução à mulher, esta desaparece sem deixar rastros. A trama toma contornos inverossímeis como uma torrente de situações absurdas do cotidiano kafkiano que recai sobre o protagonista com repletas adversidades por tintas doloridas que impregnam suas relações familiares já abaladas pela desgraça da prisão. Tudo fica completamente fora de controle e ele cada vez mais se sente encurralado. Vai perdendo a credibilidade até no seio da família, inclusive de seu filho, dos amigos, e dos colegas de cela. Os dois dias de liberdade vão se esgotando, tudo parece conspirar contra. Está num beco sem saída e as circunstâncias contrárias aumentam, enquanto que nada evolui para a busca do perdão do credor. Mas surge uma tênue luz no fim do túnel que poderá ser sua salvação, quando é eleito na prisão como um modelo de homem ético, honesto e indulgente. A imprensa é chamada para entrevistá-lo e sua boa imagem toma conta da televisão, deixando-o conhecido, porém também há uma incrível inveja que vem emergir. Tenta arrumar um emprego para quitar toda a dívida e receber o indulto, mas numa engenharia do roteiro as conjunturas irão ao sentido contrário com uma mescla de corrupção subreptícia de vários setores do sistema teocrático vigente predominado pelo fanático fundamentalismo. Surgem os questionamentos nas redes sociais com vídeos e opiniões agindo como tribunais da inquisição contemporâneos, que tomarão conta nos debates sobre a verdadeira identidade do personagem central, se um falso altruísta ou um brilhante dissimulador.
A narrativa construída pelo cineasta é advinda da forte influência do neorrealismo italiano, movimento cultural surgido na Itália ao final da Segunda Guerra Mundial, cujas maiores expressões ocorreram no cinema. Seus maiores expoentes foram Roberto Rosselini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti, que iria influenciar a cinematografia produzida no Irã, como os cineastas Abbas Kiarostami em Onde Fica a Casa de Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), a obra-prima Gosto de Cereja (1997), e O Vento nos Levará (1999), bem como de Mohsen Makhmalbaf com o admirável A Caminho de Kandahar (2001), em que os detalhes são fundamentais de um realismo puro que reflete uma sociedade machista atrasada e completamente arcaica de pensamentos e comportamentos retrógrados. As possíveis soluções são buscadas dentro de um contexto de personagens fragilizados pelas feridas abertas, dando margens para os fantasmas se locomoverem de um lado para outro neste jogo de xadrez. O passado é colocado em xeque nas vidas entrecruzadas com fragmentos rancorosos sobre amor, dinheiro, frustrações, ética, manipulações e ganância.
Um Herói sintetiza uma moralidade repressora por costumes obsoletos e corrompidos de um microcosmo de vínculos familiares rompidos por situações oriundas da inveja pela fama repentina de um prisioneiro. Acompanha a rotina dos parentes próximos na construção psicológica, onde ninguém é esquecido pela câmera numa estética pragmática, sem que a imagem abandone todos os personagens envolvidos. O desenvolvimento do enredo bem urdido vai ao encontro do criativo epílogo que sinaliza uma esperança tênue, embora difusa e pouco luminosa. Deixa uma melancólica impressão com um misto de perplexidade diante de uma realidade às avessas de uma sociedade de valores tradicionais, com alguns flertes com a modernidade, onde celulares último tipo e redes sociais começam a predominar. Impacta com a opção por um criminoso condenado à morte em detrimento de um inadimplente anti-herói com um agiota à margem da lei. As particularidades do sistema judicial do país chamam a atenção pela burocracia e parciais métodos duvidosos com o alijamento do estado de direito democrático, bem contado em A Separação. Com elegância e sutileza, Farhadi deixa o primoroso desfecho para reflexão sobre qual foi a melhor escolha. Um filme extraordinário que coloca a dignidade nas entrelinhas sobre questões controversas, usando a sensibilidade para apontar a prepotência estatal com seus valores discutíveis neste conteúdo de protesto silencioso dos dissabores e as complexidades das relações humanas do povo com sua pátria mãe, como elementos indispensáveis que contribuem para as angústias de um imenso sofrimento que ainda restam como sombras permanentes.
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