Sonhos Familiares
Marte Um é a grande surpresa das produções brasileiras recentes. Tomou por empréstimo o nome de um programa espacial criado e lançado pela NASA em 2012, com o objetivo de levar uma tripulação humana para a colonização do planeta vermelho Marte. Indicado para representar o Brasil no Oscar de 2023, a escolha não poderia ter sido melhor; ganhador de quatro kikitos no Festival de Gramado deste ano (Melhor Filme do Júri Popular, Roteiro, Trilha Musical e Prêmio Especial do Júri) com aclamação do público presente e da crítica; teve a estreia no Festival Internacional de Sundance (EUA). O competente jovem mineiro Gabriel Martins, de 34 anos, dirige e assina o roteiro com muita sensibilidade e extrema habilidade. Tem em sua filmografia os longas Aliança (2014), O Nó do Diabo (2018) e No Coração do Mundo (2019), além do curta-metragem Nada (2017).
A trama começa após o anúncio das eleições presidenciais de 2018, com a posterior posse do presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, como pano de fundo, num clima de incerteza, dúvida e angústia sobre o futuro do Brasil, principalmente para as camadas sociais de pessoas em situações vulneráveis economicamente. A família Martins é de classe média baixa, formada por pessoas negras, que vive às margens de uma cidade da Grande Belo Horizonte, dentro de um país sob o prisma do contexto impregnado pelo racismo estrutural. A história é contada com muita delicadeza e sutilezas sobre o microcosmo familiar, onde Deivinho (Cícero Lucas), um garotinho que imagina ser um astrofísico e participar da missão espacial que parece inalcançável. Porém, além da condição de pobreza, terá que convencer seu pai - o porteiro Wellington (Carlos Francisco), um fervoroso torcedor do Cruzeiro de Minas Gerais -, que tem outros planos. Ele sonha e deposita todas as esperanças que o filho se torne um grande jogador de futebol, com uma auspiciosa carreira. É o desejo de ascensão, ainda que jogue de óculos e tenha pouca intimidade com a bola, não mede esforços para colocá-lo no clube do coração, inclusive com o auxílio de um ex-craque cruzeirense, mesmo contra a vontade do menino.
O enxuto e prodigioso roteiro apresenta a mãe, Tércia (Rejane Faria), uma diarista que teria sido vítima de uma circunstância inesperada com resquícios nefastos. Ela terá sérios problemas com visões que motivam situações paranormais ao mergulhar em uma crise existencial por se achar uma pessoa amaldiçoada pelo fato pitoresco que vivenciou. No meio deste painel familiar de elucubrações, está a emponderada Eunice (Camilla Damião), filha primogênita que está na faculdade de Direito e vive uma paixão homossexual por uma jovem colega de espírito livre, que lhe questiona para sair de casa e buscar sua independência, como uma maneira objetiva de libertação para a fase adulta. Faz o papel de mediadora entre o pai e o filho, mas terá que lutar com inteligência para resolver seu destino e os tabus que irá encontrar dentro do eixo familiar e da própria sociedade conservadora e preconceituosa que lhe afetarão pela escolha de sua opção sexual.
Os méritos do cineasta são muitos na construção deste drama familiar e social que realça o poder de indignação e de sobrevivência de pessoas praticamente alijadas da sociedade. Mostra um realismo puro que reflete uma sociedade retrógrada de pensamentos e comportamentos quanto à cor da pele do indivíduo e a sua orientação sexual, que agem com o instinto machista, dominada essencialmente por brancos conservadores. O mérito maior é buscar a transformação para inquietar o espectador de maneira contundente pela dádiva de evitar a violência e o confronto brutal oriundos de propostas torpes de governos reacionários. Esta é a maior transgressão do ser humano, pela ótica do diretor. Eis uma saga com seus dilemas intrínsecos e extrínsecos, como a demissão sumária do pai pela síndica de um condomínio de classe alta, onde a alegria, a tristeza e o sonho são tão genuínos de seres descartados. Mas não há outra alternativa, senão em deixar a vida conduzir com dignidade e altruísmo trazidos de berço, para um futuro de sonhos e realizações, bem focados nos filhos do casal.
Marte Um não tem grandes reviravoltas no enredo, sequer cai em armadilhas quixotescas ou discursos vazios e enfadonhos. O filme não embarca no proselitismo político que poderia levar para o melodrama folhetinesco. O magnetismo do longa está na construção psicológica de personagens fortes e naturais, no qual encontramos pessoas de carne e osso de nosso cotidiano recheado de injustiças sociais no seio de uma família planificada com sentimentos puros, às vezes ingênuos, mas com instinto inalienável do afeto em tempos conturbados; em outras vezes, de sonhadores sensíveis e esperançosos, numa conexão direta com a realidade que atinge o alvo, ou seja, o espectador em sua zona de conforto. Cada personagem enfrenta com solidez as vicissitudes apresentadas pelos tombos do dia a dia. Uma espécie de corrente de apoio para manter viva a alma e a luz no fim do túnel como elemento inspirador de empatia e coragem para vencer os percalços que afligem os mais desprotegidos pela sua condição social, e o maniqueísmo epidérmico monstruoso da coloração. Embora a pobreza salte aos olhos como uma deplorável força arrasadora, há garra, dignidade e muita dor no coração e na alma contrapondo com as desigualdades que estruturam nossa sociedade.
Através da bela fotografia assinada por Leonardo Feliciano, com o embalo musical da trilha sonora de Daniel Simitan, bem pontual e sem atravessar o enredo, o drama reflete os efeitos sociais impactantes na abundante falta de solidariedade mesclada com o deboche arrogante. Aponta atitudes condenáveis que fazem sofrer pessoas realmente vitimizadas pelo infortúnio do destino neste triste relato que abala consciências lúcidas e revela as mazelas impregnadas pela desumanidade com os excluídos. O realizador conduz a trama com eloquência e admirável bom humor, ternura e amor para alcançar um efeito raro a ser encontrado. Este conjunto harmonioso estético o distancia de Parasita (2019), do festejado cineasta Bong Joon-ho, embora haja consideráveis similaridades de exclusão social com a obra-prima da Coreia do Sul. São paradigmas humanos resultantes de uma reflexão pontual, que faz com que as cenas tenham o caráter da luta contra a humilhação pela persistência contumaz. “A gente dá um jeito”, diz o pai em uma cena inesquecível, para não se afastar do futuro com marcas de uma esperança redentora comovedora, mostrando a importância do olhar de um para o outro nas relações de afinidades e sintonias familiares marcantes nesta extraordinária obra cinematográfica brasileira.
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