Sonho e Realidade
Vem do Butão em coprodução com a China o sensível drama social A Felicidade das Pequenas Coisas (o título
original seria Lunana, um Iaque na Sala
de Aula), indicado ao Oscar e
considerado um dos favoritos para abocanhar a estatueta de Melhor Filme
Internacional. A direção é do estreante Pawo Choyning Dorji, de 38 anos, que
também assina o enxuto roteiro. Ele é cineasta e fotógrafo butanês. O cenário é Lunana,
distrito de Gasa, no noroeste do país, onde está localizada a "escola mais
remota do mundo”. A maioria do elenco é de estreantes que moram na região e
nunca saíram de lá. Butão tem a alcunha de ser “o país mais feliz mundo”, com
uma população de 771 mil habitantes, está localizado no extremo leste do Himalaia,
na Ásia, sendo conhecido por seus mosteiros, suas fortalezas e suas paisagens
impressionantes que incluem desde planícies subtropicais até montanhas íngremes
e vales. A Capital é Timbu e fica a
A trama é uma realização minimalista sobre as descobertas do jovem professor relutante Ugyen Dorji (Sherab Dorji), que está terminando sua formação profissional, mas não tem nenhuma vocação para ensinar. Seu grande sonho é conseguir um visto para a Austrália, mas há uma enorme dificuldade burocrática para sair, o que só o desanima ainda mais a cruzar o país, diante do desejo inegociável de poder cantar e tocar violão nos bares de Sydney. Ele é enviado pelo governo ao longínquo vilarejo de Lunana, no topo de uma imensa montanha, com 56 moradores aproximadamente. Um lugar de pouca transitabilidade que só é possível chegar lá a pé, após uma semana de caminhada com alguma alternância de andar no lombo de cavalos cansados por trilhas nas matas virgens. Não há condições de qualquer outro tipo de transporte, como carro, por exemplo, que é desconhecido pela população. Quando chega a nevasca, a região fica inacessível e incomunicável por vários meses. Inexiste tecnologia para o uso de celular, internet, televisão e energia elétrica, sequer um quadro negro na precária escola para os alunos, nem uma bola para se jogar basquete ou outro esporte, além do péssimo estado do quarto que é destinado ao docente com janelas protegidas do frio com papel de arroz. O estrume do iaque, uma espécie de búfalo, com presença marcante em pequenos rebanhos, serve como combustão para acender o fogo.
O diretor dá ênfase no realismo pujante da comunidade e seu afeto e louvação aos educadores que perderam sua autoridade, pois lá ainda se acredita que “os professores tocam o futuro”, razão pela qual o protagonista é visto como uma celebridade e tem um tratamento privilegiado, tendo revelações constantes para perder o gelo da alma e colocar generosidade, amor e gratidão numa pessoa que vai ao iminente encontro da felicidade. O filme nos remete para o extraordinário drama similar do gênero Sociedade dos Poetas Mortos (1989), de Peter Weir. O surgimento da jovem pastora Saldon (Kelden Lhano Gurung) que o conquista através de suas músicas pela bela voz que se esparrama na natureza para os possíveis espíritos que flutuam naqueles deslumbrantes vales montanhosos, além de presenteá-lo com um iaque que deve ser criado dentro da sala de aula, para ser protegido do frio, o animal irá dividir o espaço com os alunos. O sonho do personagem central vai sendo desconstruído com muita delicadeza e sensibilidade para o emocionante desfecho com um banho de humildade trazida dos ensinamentos de outrora, ao interpretar a canção já em Sydney, com mais de 5 milhões de pessoas, que aprendeu na aldeia. Até a metáfora do célebre educador brasileiro Paulo Freire se faz presente: “a educação se faz até debaixo de um pé de manga”. Todos vivem como se fossem uma grande família sob a batuta do chefe da aldeia e sua garra e obstinação para obter o melhor a todos. Embora haja algumas desestruturas, como o pai da encantadora menininha líder da turma de aula (Pem Zam), um alcoólatra inveterado e ausente no núcleo, fica acentuada a contextualização da vizinhança e seu cotidiano inerente com suas fraquezas, mas com um raro humanismo e solidariedade.
Com uma linda fotografia que capta com arte as cenas com imagens de paisagem exuberante das montanhas, traz sequências com grandes planos abertos de uma região vazia, porém mágica e envolvente, que será relevante para a narrativa que cresce com a evolução do enredo, embalada pela pontual e cativante trilha sonora. Uma obra que aborda de forma clara e inequívoca a educação como elemento primordial naquelas contradições de uma aldeia que refletem uma sociedade em ruínas, embora haja civilidade, ternura e amor. Mesmo que aparente um falso universo de paz nas relações humanas num contexto amargo pelas circunstâncias precárias, com poucas condições de dignidade para uma população humilde que recebe de braços abertos os indivíduos aparentemente frios, desconectados da família e da triste realidade que atinge a pureza daquelas crianças que vivem naquela natureza selvagem encravada nesta inóspita região.
A Felicidade das Pequenas Coisas tem um epílogo otimista e redentor, por ser instigante a saga do professor e seu encontro com o sentido da existência humana num filme seco, direto e com boa dose de sobriedade, sem grandes rodeios ou exercícios pirotécnicos, usando apenas a equilibrada dose de amargura mesclada com algum alento. Não há cenas de pieguismos, méritos para o cineasta que conduz com criatividade o espectador a acompanhar sem lamentar o destino dos desprivilegiados. É contagiante na essência cinematográfica pelo simbolismo do descaso com o ensino das crianças pela ausência de um vínculo de importância de seus governantes diante dos fatos que se sucedem numa atmosfera criada em torno daquele bucólico lugarejo com seus costumes cultuados que passam a fazer parte do cotidiano dos habitantes. O drama comove o espectador, fisga pela boa narrativa das idiossincrasias dos personagens envolvidos e suas más condições econômicas, ainda que sem atritos ou violência, que levam para um realismo social presente nas comunidades afastadas para ser refletido. Eis uma mini obra-prima que deverá estar entre os dez melhores filmes no final do ano.
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