terça-feira, 1 de março de 2022

Lamb

Revolta da Natureza

A Islândia está em alta em suas realizações e brinda os espectadores com ótimos filmes. A Ovelha Negra (2015), do diretor islandês Grímur Hákonarson, venceu a Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes, em 2015, e foi indicado para representar o país no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2016. Retratava de forma comovente a relação estremecida de dois irmãos septuagenários, que não se falavam por 40 anos, correspondiam-se por mensagens em bilhetes escritos à mão, sendo levados ao destino por um cachorro, uma espécie de pombo-correio. Surge uma violenta determinação do governo para a eliminação de todo o rebanho de ovinos da família, após ser constatada uma doença contagiosa nas respectivas fazendas deles e de alguns vizinhos criadores da espécie, onde a população de ovelhas é maior que a dos seres humanos em todo território islândico. Como um prosseguimento da realização anterior, embora menor, Hákonarson cria uma atmosfera tensa em A Resistência de Inga (2019), diante da iminente falência do sustento familiar de uma fazenda e traz como reflexão literal o monopólio de uma cooperativa de criadores de bovinos.

Agora chega à plataforma MUBI o perturbador Lamb, do diretor estreante Valdimar Jóhannsson que já se credenciou com grande potencial, vencedor do prêmio de originalidade da mostra Um Certo Olhar, em Cannes, no ano passado, também venceu o prêmio máximo do Festival Internacional de Cinema Fantástico da Catalunha, e ainda foi escolhido para representar a Islândia na categoria de Melhor Filme Internacional do Oscar de 2022, e esteve na programação da Mostra de Cinema de São Paulo no ano de 2021. Há elementos suficientes para uma primorosa história contada com simplicidade, ternura e situações típicas do cotidiano de uma bucólica aldeia de pastores de ovelhas. Ali encontraremos a ruptura e a reaproximação forçada para uma reintegração da união familiar estremecida neste suspense com variações para uma fábula adulta de terror com pitadas de fantasia sensorial. Proporciona uma rara oportunidade de se conhecer alguns estilos de vida diferentes dos habituais que desfilam nas telas dos cinemas, como os aspectos pitorescos arraigados de uma cultura pouco difundida.

A trama é dividida em três atos com cenas de pouquíssimos diálogos e gira em torno do casal de fazendeiros Ingvar (Hilmir Snaer Guönason) e Maria (Noomi Rapace, atriz sueca famosa por protagonizar Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres, de 2011) que vivem numa fascinante planície isolada de uma região muito fria com frequentes nevascas. Sofrem com a morte prematura da filha pequena, até o dia em que um suposto milagre na noite de Natal proporcionaria o nascimento de um cordeiro com semelhança, forma e atributos humanos, que anda de pé sobre duas patas e veste um casaquinho com macacão. É batizada com o mesmo nome da bebê falecida, Ada, sendo uma figura grotesca que anda de mãos dadas com os pais e dorme languidamente num bercinho no quarto como se fosse natural. O realizador dá asas à imaginação ao transformar um drama familiar aparentemente simples mergulhado num luto profundo, quando o roteiro, também escrito pelo diretor, dá uma guinada na envolvente história, com significativa mudança de rumo para um surrealismo sutil e de boa narrativa numa construção alegórica que beira a inverossimilhança.

O casal ao abraçar este presente que teria caído como uma dádiva superior dos horizontes celestiais, jamais imaginaria que estivesse infringindo algumas regras claras da natureza, como humanizar um cordeiro, que seria de Deus ou do demônio? Mesmo que para isto houvesse o sacrifício da verdadeira mãe em forma de execução dentro do processo de luto. Neste meio tempo surge o irmão do protagonista, Pétur (Björn Hlynur Haraldssson), um homem forasteiro e descompromissado, com um passado nada íntegro, que dá em cima da cunhada, mas mostra-se sensível ao tentar aceitar a aquela criatura nada convencional. O trator que enguiça na estrada e os sinais que surgem durante a trajetória do longa são evidências e acenos de que a natureza acusou o golpe das armadilhas que lhe foram impostas. O ritmo lento da tensão pelo silêncio constante leva para um grau de imprevisibilidade permanente, conduzindo o espectador para uma surpresa que está por acontecer a qualquer momento.

A fotografia de Eli Arenson traz sequências com grandes planos abertos de uma região vazia, porém bela e envolvente, que trará uma intensidade relevante para a narrativa que cresce com a evolução do enredo. Tudo conduz para um desfecho catártico ao ser humano, porém com o viés redentor e significativo do conjunto de elementos do mundo natural advindos das montanhas, árvores, animais decorrentes do ecossistema, diante dos desmandos e irracionalidades coercitivos do egoísmo e da intransigência fruto de uma melancolia enraizada pela perda da filha. A maternidade ficou fragilizada com resquícios doentios para uma sobrevivência com um mínimo de qualidade, ainda que o preço seja muito alto, e ao ir de encontro das forças da natureza, a vingança pode demorar mas virá como um prato frio pelas mãos e/ou patas do além.

Lamb é um filme contagiante e traz na sua essência o lado sinistro de um certo mistério no bojo da narrativa, por isto prende o espectador que cria uma interessante perspectiva de visão para o desenlace, toda vez que observa a fisionomia daquela criatura aparentemente meiga que carrega algo sobrenatural. A simbiose da paz e da felicidade que poderia lacrar uma união abalada pela perda inesperada é negada. A própria criatura que solta seu balido ecoante no prólogo irá se socorrer da espécie que sai em sua defesa pelo tom da fábula mitológica reveladora. Uma magnífica reflexão sobre as consequências diante da interferência da dita civilização em situações aberratórias que buscam na excentricidade, como se vivêssemos num universo com características de um grande hospício. Qualquer ação violenta com uma retirada abrupta haverá uma resposta de punição à humanidade pela revolta da natureza agredida de maneira egoísta, sórdida e pusilânime. As referências do vínculo familiar, independente de espécie, ficarão ali marcadas pelo tempo e pelas adversidades inevitáveis nesta estupenda obra com tintas fortes de tragicidade, que mexe com o mais distraído dos espectadores no epílogo.

Um comentário:

Marcelo Castro Moraes disse...

Vou ter que ver esse filme pois ouvi falar muito sobre ele.