Maternidade em Xeque
O tema contemporâneo da maternidade parece estar na moda e vem rendendo boas e interessantes realizações com ressonância positiva nas redes sociais. Pedro Almodóvar construiu dilemas e situações bem características sobre suas figuras femininas em Mães Paralelas (na Netflix). Aborda duas mulheres que se conhecem no hospital, sendo que uma é aparentemente independente, com uma carreira sólida e alguma segurança financeira, porém não é tão bem resolvida como demonstra. A segunda é uma adolescente fragilizada, mas com pensamentos avançados teoricamente, que sofreu um estupro coletivo, tem problemas com os pais e está visivelmente assustada e traumatizada com a nova situação. No meio da trama há uma inusitada de troca das crianças no berçário. Já o diretor islandês Valdimar Jóhannsson estreou com o perturbador Lamb (disponível no MUBI), um enredo dividido em três atos com cenas de pouquíssimos diálogos. Gira em torno de um sofrido e silencioso casal de fazendeiros diante da prematura morte da filha, até o dia em que nasce um cordeiro com semelhanças e atributos humanos, que anda de pé sobre duas patas e veste um casaquinho com macacão. É batizada com o mesmo nome da bebê falecida, embora seja grotesca, anda de mãos dadas com os pais adotantes, e dorme languidamente num bercinho no quarto.
Outro sucesso com ótima repercussão de público é A Filha Perdida (em exibição na (Netflix), com a estreia na direção de Maggie Gyllenhaal, que também assina o dinâmico e instigante roteiro adaptado do livro homônimo da escritora Elena Ferrante, tendo levado o prêmio na categoria de melhor roteiro no Festival de Veneza. Demonstra sensibilidade, sutileza e boas qualidades para contar uma interessante história que prende o espectador diante do olhar investigador sobre a vida da mulher que tem dupla e até tripla jornada no dia a dia. Muitas vezes as condições humanas sobrecarregadas fraquejam durante a dura jornada com a missão a ser cumprida por imposição da estrutural sociedade machista hoje ainda existente, mesmo que anacrônica. O manual comportamental dever seguido com o cumprimento rígido dos ditos bons mandamentos orientados por uma casta aristocrática já pré-falimentar. A narrativa toca o espectador, até mesmo os mais insensíveis machos alfas de alguma maneira, diante das ideias e dos sentimentos, até então ocultos ou abafados, sem ter tido um grito de liberdade que tenha ecoado com lucidez e bravura. Romper as regras e os tabus dos conservadores do mundo dominado pelos bons costumes permanentes como prerrogativas da falsa moral é uma tarefa árdua, que reina na sociedade da hipocrisia em que a mulher/mãe perfeita cozinha, limpa a casa, cuida dos filhos, do marido, tudo de forma impecável, sem reclamar das dificuldades, por ser isto que lhe é cobrado diariamente.
O enredo foi bem elaborado e a apta imaginação deu resultados satisfatórios como uma obra de muito bom foco para atingir a meta esperada sobre uma mulher que precisa se recuperar ao confrontar o presente com o passado. Apesar disso, há um excesso de flashbacks com cortes sucessivos, e, em muitas vezes o clímax distensiona involuntariamente a trajetória. As idas e vindas da protagonista, do passado para o presente, foram a nota destoante da neófita diretora, que preteriu equivocadamente uma narrativa mais segura com o uso adequado de voz em off, mas que mesmo assim não conseguiu invalidar ou tirar méritos do todo de sua proposta. Leda (Olivia Colman) é uma professora de literatura comparada e devotada na área acadêmica, de meia-idade, divorciada, com duas filhas já emancipadas, mas que quando crianças davam muito trabalho, ainda que a jovem mãe (Jessie Buckley) fosse muito dedicada e quase sempre presente, demonstra ser sentimental, tem ambição, faz sacrifícios, é explosiva algumas vezes, charmosa e sensual em outras, fica conflitada entre estar com as filhas ou ter que optar pela profissão, além da ausência constante do marido que só lhe cobra resultados do cotidiano. O envelhecimento inevitável traz as angústias do passado, inclusive uma paixão impulsiva que estava anestesiada, mas que aos poucos veio à tona, pelas lembranças pretéritas que emergem ao tirar férias numa paradisíaca ilha costeira da Grécia. Lá ela começa a se sentir mais leve e livre apesar de estar envergonhada pela sensação solitária, pois aproveitou a brecha das filhas que foram visitar o pai no Canadá, ficando com a imagem da boneca raptada por maldade ou impulso que irá ao encontro da relação ambígua na infância de suas crianças agora já adultas.
O zigue-zague do roteiro aproxima a personagem central de uma família nova-iorquina suspeita de pertencer a uma máfia, pois elementos e situações corriqueiras não faltam, como supostas ameaças e um jogo sujo de alguns integrantes daquele esquisito núcleo. Leda se identifica e demonstra um certo fascínio incomum pela jovem Nina (Dakota Johnson), uma espécie de alter ego na frente de seus olhos reflexivos, que lançam luzes novas para um resgate, quase como um fantasma, que martela sua cabeça naquele lugar aprazível e redentor. Tudo é muito semelhante, até mesmo o desaparecimento da filha pequena na praia, rendendo uma procura incessante por todos nos arredores, até chegar ao ápice que é a iminente traição ao marido ameaçador (Oliver Jackson-Cohen). O vínculo e a amizade se estabelecem para elas interagirem com confissões recorrentes que irão construir um forte vínculo diante do atual momento das duas com as inerentes adversidades do cotidiano intenso de caminhos tortuosos. Mas prevalece a intensidade com o denodo do instinto maternal, embora as reações amorosas por ausência de afeto de seus pares sejam uma realidade profunda e mesmo não sendo descartadas as paixões de outrora, marcam corações, almas e mentes infinitamente, deixando feridas abertas com lacunas doloridas. A frase da famosa filósofa francesa feminista Simone de Beauvoir resume tudo: “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”.
Nem tudo é só lazer no passeio turístico na vida de Leda, que encontra naquela estranha família coincidências que a faz lembrar dos períodos conturbados e as penitências que teve de absorver como mãe, que lhe vem instantaneamente como memórias recuperadas que passam como um filme antigo, ou nem tanto. Traz uma reflexão comovente sobre entrar nos meandros mais sombrios e inexplorados da maternidade, individualidade e culpa implícita ou explícita do que mais poderia ter feito e não realizou, principalmente o sufoco para a criação intelectual. Tanto como mãe ou como mulher com seus desejos sexuais por paixões efervescentes da juventude. Ou os grandes amores frustrados ou colocados em prática. Há uma teia de aranha envolvendo as lembranças, os esquecimentos e alguns devaneios interrompidos repentinamente com elipses corriqueiras no desenrolar da trama. Talvez a protagonista pudesse ser mais ousada, quem sabe respirar o lado feminino muitas vezes despedaçado em fragmentos que são empurrados para uma linha tênue de seus limites, tanto do cansaço físico como da opressão emocional. São perguntas latentes que ficam no epílogo em aberto para abrir muitas possibilidades interpretativas de cada pessoa na dicotomia apresentada da condição feminina e sua empatia ao trazer um olhar inovador ao questionar a maternidade com todas as complexidades inerentes neste admirável drama familiar.
Um comentário:
"A Filha Perdida" é sobre o universo solitário feminino, do qual possui inúmeros significados e que nem todos irão compreende-los.
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