Domínio do Cartel
A competente cineasta Tatiana Huezo, de 50, anos tem dupla nacionalidade, pois nasceu em El Salvador e atualmente reside no México onde se naturalizou. Iniciou a carreira com o premiado documentário El Lugar Más Pequeño (2011) que abordava a Guerra Civil Salvadorenha. Seguiu no mesmo gênero com A Aula Vazia (2015) e Tempestade (2016). Estreia na ficção com este potente drama social A Noite do Fogo (na Netflix), coproduzido com Alemanha, Brasil, Catar, Argentina e Suíça, tendo escrito o roteiro baseado no romance Reze Pelas Mulheres Roubadas, da escritora Jennifer Clement, publicado em 2014. Conquistou a Menção Especial na Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes e foi indicado para representar o México no Oscar de Melhor Filme Internacional em 2022. A realizadora não se intimida e revela muita segurança ao abordar um tema pesado, complicado, tenso, e com grandes implicações econômicas em seu país e nos EUA por envolver o dominante cartel mexicano do narcotráfico e da corrupção. Há efeitos maléficos que deixam cicatrizes como marcas definitivas das mazelas nos personagens atingidos por uma nociva guerra suja entre poderosos que reflete em inocentes na disputa de territórios para dominar o mercado.
A trama gira em uma cidade pequena e solitária situada nas montanhas mexicanas, onde três pré-adolescentes brincam numa casa de uma família que fugiu. Às vezes, se vestem e se pintam como mulheres adultas, desconhecendo o perigo iminente que ronda o lugar. Enquanto isso, a magia, a alegria e o lado lúdico tentam se fortalecer naquele inóspito e impenetrável universo. As mães orientam como podem as três garotas para se protegerem dos grupos de sequestradores de meninas que atuam na região. A diretora faz bem ao contar de maneira delicada a história sob o prisma e o cândido olhar infantil daquelas crianças. A protagonista Ana (interpretada por Ana Cristina Ordóñez González na infância e Marya Membreño na adolescência) vive com sua mãe Rita (Mayra Batalla- de atuação arrebatadora), tem como suas melhores amigas Maria (Blanca Itzel Pérez-com lábio leporino- e Giselle Barreira Sánchez) e Paula (Camila Gaal e Alejandra Camacho). A diretora buscou atores/atrizes amadores para obter mais autenticidade, tendo como preparadora de um elenco infantojuvenil a brasileira Fátima Toledo, que também orientou com os mesmos recursos técnicos Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Katia Lund, nesta fascinante temática da infância à deriva no meio da criminalidade.
O drama reflete a ingenuidade das meninas que não compreendem e nem desconfiam os reais motivos que fizeram algumas mães ardilosamente cortarem os cabelos ao melhor estilo curto masculino. É comovedora a determinação da genitora de Ana para que a filha escavasse um buraco na terra em formato de um abrigo subterrâneo, como se fosse um bunker para esconder-se quando o perigo fosse iminente pelos homens fortemente armados na busca de ninfetas para raptá-las. O intuito único é comercializar as meninas para a prostituição, diante das evidências que existem dos desaparecimentos constatados, e de uma jovem que apareceu morta na mata. O treinamento dado à filha no bosque para entender e ouvir os sons de humanos e animais emitidos bem distantes é uma esperança e uma das poucas e eficientes armas bem utilizadas pelos nativos, bem como as cores decoradas para identificar a cobra coral. A defesa ferrenha da prole reflete o ponto de vista maternal na imaginativa e enternecedora proteção pelo ataque furioso do cartel que controla o povoado. Neste meio tempo, há os momentos pueris de descoberta da primeira menstruação e a candidez do amor platônico pelo professor, com as recorrentes confidências do trio de amigas.
A Noite do Fogo é um retrato fiel das fissuras sociais abertas pelas suas complexidades no México criadas pelo tráfico, na qual se busca um espaço para chegar ao poder, envolvendo diretamente as políticas governamentais. A violência extremada e explícita é o cartão de visita destes grupos do narcotráfico, provocando o horror constante, como já foi muito bem abordado em filmes da mesma temática sobre o cartel mexicano, entre os mais vigorosos estão Sicário- Terra de Ninguém (2015), de Denis Villeneuve, numa realidade de barbárie da divisa dos EUA com o México, com cercas de arames como se fosse uma guerra entre os dois países, expondo as vísceras de uma situação traumática dos excluídos da sociedade, pelo prisma da CIA, que prepara uma audaciosa operação para deter o grande líder de drogas na fronteira. Segue na mesma esteira o excelente Heli (2013), do espanhol Amat Escalante, na denúncia de um país envolvido num clima nebuloso e catastrófico sob o ponto de vista do comércio ilegal e da corrupção ativa, em que o realizador intencionalmente provoca mal-estar no espectador, decorrente da violência explícita da história. Tem ainda o comedido La Playa (2012), do colombiano Juan Andrés Arango Garcia, sob um contexto humano naquele cenário de uma cidade violenta, num retrato sombrio de um país em ebulição, em que o tráfico também se faz presente.
A triste e dolorosa sina de uma realidade de barbárie que expõe uma situação caótica pelo abalo constante dos habitantes que estão sozinhos nessa árdua luta contra as forças do tráfico. Até mesmo o exército consegue enfrentar o temido cartel, enquanto isto a própria polícia dá suporte por estar em conluio com os criminosos. Os moradores do povoado para sobrevierem trabalham para uma facção daquele lugar com o pagamento correspondente a uma pífia ajuda de custo nos campos de plantação de papoulas na qual a flor produz a seiva que serve de matéria-prima para a fabricação de heroína e outros opiáceos. Porém, vivem sob o domínio diário do medo aterrorizante, inclusive os professores são ameaçados e desistem de dar aulas. A inevitável catarse trágica está anunciada, como parafraseando Gabriel García Márquez, em sua obra Crônica de Uma Morte Anunciada, no clímax de tom dramático que chega de maneira devastadora, como se arrebentasse uma grande guerra com barricadas nas ruas que contrapõe com os prazeres da infância, pré-adolescência e adolescência neste conflitado ambiente. Há se ressaltar a bela analogia do resistente professor no desfecho ao divulgar tese da cadeira virada para algum aluno se sentar, instigando pela luta de seus direitos de cidadãos numa narrativa que vai do delicado ao intenso pela explosão na épica noite para a sobrevivência. Transita da estupidez humana irracional para o grito de liberdade das amarras neste drama imperdível para quem aprecia singularidades com ênfase neste painel delirante.
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