Verdades e Mentiras
O festejado cineasta Hirokasu Kore-eda herdou a sutileza e a
sensibilidade dos inspirados diretores japoneses conterrâneos Yusujiro Ozu de Era Uma Vez em Tóquio (1953), Mikio
Naruse por Midareru (1964), e o
criador do cinema de animação Hayao Miyazaki com temas recorrentes da relação
da humanidade com a natureza. Na sua extensa filmografia encontramos o longa Ninguém Pode Saber (2003), com a
temática da mãe ausente dos filhos e a falta de afeto aos mesmos que
literalmente viviam confinados num apartamento; em Pais e Filhos (2013), conquistou o Prêmio do Júri em Cannes,
discutia-se os efeitos futuros dos bebês trocados no berçário com as revelações
recebidas, num clima de tensão instalado diante do amor pelo filho de outros
pais e a intolerância de um deles;
O realizador prima pelas crônicas ambientadas na classe média de seu país, dando um mergulho no microcosmo familiar para contar histórias verossímeis do dia a dia. Segue a trajetória do questionamento primoroso dos velhos mestres para mergulhar no universo peculiar das tradições da cultura japonesa. É um observador das mudanças inerentes que acontecem com o passar dos anos, expondo as feridas não cicatrizadas para lançar luzes ao universo das distorções dos lares desagregados e em ruínas, ou pela violência doméstica ou pela desestruturação financeira. Sempre com uma temática voltada para as perdas, enigmas da vida, a hipocrisia social e os desatinos pelas rupturas dos laços que unem os seus respectivos membros no microcosmo familiar, amizade e amor, o preconceito numa idade em que há tantas mudanças da pré-adolescência para a adolescência colocada de maneira direta, embora haja sutilezas na narrativa. São as construções impostas pela sociedade que nos rege e com elementos fortes de bullying, principalmente entre os grupos de colegas do colégio onde estudam os personagens amigos em foco. Diante da prática sistemática de atos de violência psicológica, intimidação e humilhação, com duras consequências pelo rumo da reviravolta da história, acaba por se tornar uma amarga e cruel realidade. Abordagens estas encontradas no laureado Monster, vencedor na categoria de roteiro no Festival de Cannes deste ano, escrito por Yuji Sakamoto, um quebra-cabeça inspirado na versão do filme Rashomon (1950), do mestre Akira Kurosawa, que realçou as dificuldades inconclusas na análise de fatos quando há vários interesses envolvidos.
Em seu novo filme, o diretor reconstitui o cotidiano e deixa os personagens darem suas versões numa história contada pelos diversos ângulos dos pontos de vista. O espectador faz parte do enredo como uma suposta testemunha dos acontecimentos reconstituídos numa estrutura de mistério que é usada para apontar uma burocracia rígida que tem o viés das hipocrisias latentes e destruidoras de seres humanos para sufocar e humilhar num contexto de submissão de um universo contemporâneo doentio. As versões são intercaladas por flashbacks que tentam reconstituir uma verdade eivada de mentiras. Nada é o que parece e fica pontuada a pressa em julgar. Saori (Ando Sakura) é uma viúva angustiada diante dos entraves burocráticos do mundo dito civilizado. Preocupada com a possibilidade do filho Minato (Soya Kurokawa) estar sofrendo agressões de um professor (Eita Nagayama), tenta resolver na administração da escola. Recebe apenas frases vazias devidamente ensaiadas que não solucionam seu problema, apenas há olhares confusos e elucubrações estéreis. O comportamento do menino apresenta sinais de anormalidades e indícios de bullying, violência física e psicológica que estão aparentemente evidentes. O sistema conservador, representado pela diretora do colégio (Yûko Tanaka), uma mulher fria que repassa a culpa de uma tragédia familiar ao próprio marido para manter a fleuma aristocrática e se passar por vítima do destino. A mãe só recebe pedidos de desculpas num mecanismo social de submissão e concordância para afastar as verdades e desviar o foco das causas originárias dos sofrimentos num cenário da total ausência de lucidez.
Ryuichi Sakamoto, autor da linda música original, falecido após o encerramento das filmagens, teve o filme dedicado nesta narrativa com um eletrizante roteiro repleto de reviravoltas, no qual as aparências enganam e as revelações vão surgindo no tempo certo em doses homeopáticas. Não julgar ninguém ao ouvir uma história, é o recado do diretor, que nos remete na primeira parte de seu longa para o magnífico drama A Caça (2012), do dinamarquês Thomas Vinterberg, na abordagem nua e crua de forma transparente ao colocar em xeque a crença equivocada de que crianças não mentem. Os preconceitos contemporâneos e a pressão de uma casta dentro de uma comunidade conservadora sobre os direitos e princípios morais de um indivíduo acuado e liquidado moralmente numa acusação injusta de pedofilia numa creche. Na segunda parte até o epílogo fica evidente a influência e a similitude com Close (2022), o admirável drama belga sobre amizade e amor, do diretor Lukas Dhont. Retrata o dia a dia com uma delicadeza naturalista marcante registrada com notável sensibilidade poética, que mostra dois meninos de 13 anos, dois amigos inseparáveis, que passam 24 horas juntos. Eles brincam, andam de bicicletas, dividem tudo que gostam, dormem um na casa do outro. Mas logo as insinuações e as provocações dos colegas colocam em xeque a conexão da amizade pueril.
Em Monster, os vínculos que unem são fortes ao revelar um cotidiano de intenso afeto e sentimento de apreço, solidariedade humana, e liberdade para uma reflexão humanista pelo despojamento de falsos tabus do pai preconceituoso do melhor amigo do protagonista. O cineasta tem como marca registrada as histórias familiares tradicionais e suas gerações, mas agora se detém nas transformações de uma composição ampla e irrestrita, para retratar estas novas situações diárias de simples coisas que irão ao encontro de relações intrincadas e modificações relevantes. O drama é marcante pelo equilíbrio, embora seja sombrio com alguns momentos de felicidade para os jovens personagens. O desfecho traz cenas comoventes, como o renascer diante da foto do pai morto. O desenlace é fascinante e poético entre os destroços de um trem como processo de deterioração. Mas iluminados pela liberdade do lindo cenário das imagens de um outro mundo, como se uma luz alentadora brilhasse para uma nova realidade substituindo as ruínas, como uma alegoria sob os acordes da trompa e do trombone. Eis uma temática universal sobre angústias humanas num mundo ameaçado pelo fogo e pela dissimulação. Um extraordinário filme sobre as sutilezas dos laços de ternura com suas ligações se esboroando, que remanescem entre verdades e mentiras. Emociona por ser intenso na complexidade das relações conceituais de uma provável nova sociedade, por isto é uma obra madura e completa na carreira de Kore-eda.
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