segunda-feira, 24 de setembro de 2018

O Banquete



Fogueira das Vaidades

Depois do polêmico filme histórico de época Vazante (2017), sobre a escravidão em Diamantina, Minas Gerais, no ano de 1821, pelo olhar de uma garota branca também vítima de uma sociedade austera, e ainda completamente ausente no sentido dos direitos iguais entre homens, mulheres e raças, Daniela Thomas fez ali sua primeira incursão sozinha como diretora. Agora está de volta com seu segundo longa, o fascinante O Banquete, inspirado em personagens reais. O drama foi retirado pela própria realizadora da mostra competitiva do Festival de Gramado deste ano, logo após tomar conhecimento da morte do jornalista Otávio Frias Filho (1957 - 2018), diretor do jornal Folha de S.Paulo, que inspirou o personagem Mauro, um intelectual tímido, sedutor com as mulheres e poderoso num país em efervescência política durante o controvertido governo Collor de Melo.

A cineasta começou a carreira no início dos anos 1980, no Teatro Experimental La MaMa, em Nova York, mas sua estreia foi codirigindo Terra Estrangeira (1995) com Walter Salles. A mesma dupla realizou O Primeiro Dia (1999) e Linha de Passe (2008). Em 2009, codirigiu o longa-metragem Insolação, desta vez com Felipe Hirsch. Filha do famoso cartunista Ziraldo, Daniela começou a escrever o roteiro há mais de 20 anos, com a ideia original para ser uma peça de teatro. Além das lembranças de desenhistas, escritores, jornalistas, atores, músicos e demais artistas que frequentavam a residência da família, ela não se baseou especificamente em um evento que a tenha marcado durante as reuniões com seu pai, um dos fundadores do festejado semanário O Pasquim. Mas se inspirou em obras como O Banquete, de Platão, que se constituiu basicamente numa série de discursos sobre a natureza e as qualidades do amor, e Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos, sempre atual através dos tempos, em sua universalidade e na capacidade de antecipar conceitos apenas muito mais tarde consagrados, nesse caso, as teorias de Freud.

A trama de Daniela tem um formato consistente e teatral, em um único cenário numa noite apenas, no fim da década de 80, quando o Brasil engatinhava em uma democracia com suas fraquezas e o temor da iminência da retomada do governo pelos militares. Era uma época de extrema instabilidade política e econômica que causava uma incerteza geral no frágil equilíbrio da nação, onde a civilização flertava com a barbárie ditatorial. Nora (Drica Moraes) organiza um grande jantar para festejar os dez anos de casamento de Mauro (Rodrigo Bolzan), um editor de uma célebre revista- em que ela trabalha- com a icônica atriz Bia Moraes (Mariana Lima). O marido da anfitriã é o advogado Plínio (Caco Ciocler), que chega bêbado e fica sabendo da festa minutos antes. Dois colegas de trabalho são convidados: a jornalista Maria (Fabiana Gugli) e o colunista social Lucky (Gustavo Machado), além dos convivas surpresas Cat Woman (Bruna Linzmeyer) e Claudinha (Georgette Fadel). A tragicômica refeição é servida pelo jovem Ted (Chay Suede), alvo de investidas amorosas pelo sarcástico colunista e suas tiradas desconcertantes.

No grande jantar de iguarias requintadas regado com variadas bebidas importadas e muita fumaça dos cigarros em profusão, todos se derramam em teses sobre o amor e as relações sexuais. Falam sobre vaginas e pênis eretos e funções, flutuando entre Platão até Sócrates, num retrato sobre a intelectualidade brasileira em discussões prolixas, sendo desprovida de um senso crítico mais apurado para uma capacidade de questionar e analisar de forma racional e com alguma inteligência. Há uma total ausência na busca da verdade para questionar e refletir com profundidade sobre os assuntos colocados de maneira extravagante entre eles, com uma tensão e um pulsar esquizofrênico de ideias a cada minuto que se passa, partindo para explosões que ultrapassam o limite da sensatez, redundando em baixarias orquestradas. A diretora encaixa os personagens num clímax como se estivessem em uma terapia de grupo para exorcizar os fantasmas do passado e as soluções inacabadas de relacionamentos que ainda subsistem com mágoas e rancores. Há uma atmosfera de puro cinismo comprometedor que coloca em xeque aquela casta intelectual de esquerda, diante da arrogância, blefes e investidas libidinosas da turba apresentada como pessoas descoladas e libertárias. Neste contexto todo há a iminente prisão do editor da revista, que assinou uma carta aberta contra o presidente do país, e o seu enquadramento na lei de imprensa vigente à época.

O Banquete é uma simbiose escarrada da contradição dos convidados de conteúdo vazio que buscam um norte numa reunião em torno de uma mesa para discutir assuntos variados de uma burguesia decadente. Eles se insultam e se seduzem, armam pequenos barracos nas ameaças intercaladas por beijos e pequenos afagos com ou sem sentimentos numa orgia de intenções perversas com algumas rasgações de seda em meio a acusações levianas e iconoclastas. A realizadora demonstra eficiência autoral e domínio do ótimo elenco (todos estão muito bem, mas Drica e Mariana estão soberbas) para uma construção magnífica de personagens complexos em suas vaidades que irão se queimando gradualmente na grande fogueira de uma cilada macabra da anfitriã, onde todos já transaram entre si. Daniela ajusta com perfeição as falas com enquadramentos dos rostos tensos para extrair as angústias, anseios, frustrações e o medo da polícia bater na porta. O tom da história vai progredindo até atingir o ápice da histeria e se transformar numa catarse coletiva, em que ninguém escapa de alguma traição ou esteja imune pela inocência. São atitudes de falsas verdades com efeitos danosos para o psicológico do ser humano, diante da gravidade das palavras sem a noção da lógica e do equilíbrio. Predomina o destempero pela facilidade da verve acusatória de não medir as consequências quase que trágicas neste vigoroso drama desafiador pelos diálogos e imagens corrosivos em sequências devastadoras.

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