Uma Diva Reverenciada
Um filme sobre a vida da grande diva da ópera do século 20, a bela e talentosa Maria
Callas, uma das mais consagradas cantoras e intérpretes da história da música,
teatro e cinema. Maria Callas- Em Suas
próprias Palavras é dirigido pelo competente Tom Volf, que tem em sua
filmografia Le Nègre de Molière (2005),
filmado apara a televisão, e Les Aristos
(2006). Realizado
como documentário intimista obteve um resultado muito além da expectativa, numa
narrativa sensível, poética e reveladora que passeia pela conturbada trajetória
da personagem-título, através de versões e fatos verídicos que marcaram sua
existência entre prós e contras, alegrias e dissabores, mas sem aquele ranço
viciado de simplesmente contar uma história recheada de futilidades, ou
explicar didaticamente situações evidentes, mas que imprime boa velocidade num
clímax certeiro. Lança um olhar sombrio de lembranças do passado, sem deixar de
mostrar seus derradeiros dias, já abalada por crises existenciais como uma triste
enfermidade da alma, tentando voltar aos palcos que a legitimou como uma
soprano tecnicamente perfeita. O retorno sempre foi seu objetivo maior, para
relembrar os episódios marcantes de sua virtuosa carreira.
A protagonista nasceu em Nova Iorque em 1923, vindo
a falecer em 1977, aos 53 anos. Oriunda de uma família de imigrantes gregos,
foi incentivada pela mãe a desenvolver os dotes artísticos desde cedo, teve
aulas de canto lírico com a mentora Elvira Hidalgo no Conservatório de Atenas,
mostrava-se disciplinada e boa aluna. Logo foi reconhecida internacionalmente
como a melhor cantora de ópera de todos os tempos para a maioria dos críticos. O
documentarista lança mão de entrevistas na imprensa, com imagens raras buscadas
nos arquivos, além de vídeos pessoais amadores realizados pela própria
personagem central, com revelações através de diários e cartas íntimas da
biografada, em especial com a amiga Grace Kelly. Traça com isenção todo o
percurso pessoal e profissional desta celebridade. A vida e a carreira da
artista são reconstituídas pelo fio condutor de uma entrevista numa televisão
preto e branco, de formato quadrado, dos anos de 1950. Mas é pela atriz francesa Fanny Ardant, que a
viveu no drama Callas Forever,
que irá emprestar sua voz às cartas confessionais de Callas, narradas em off, num achado significante para a
emblemática realização.
O documentário aborda com simplicidade e boa dose de
profundidade os grandes momentos do sucesso estrondoso, apresentando
interpretações na íntegra como as árias de Donizetti e Rossini, La
Traviata , de Giuseppe Verdi, La Sonámbula,
de Vincenzo Bellini, e arrasa com Carmen de Georges Bizet. Um dos grandes traumas da diva, foi quando
teve uma crise de bronquite e interromper a apresentação de uma ópera em Roma,
considerado como um grande escândalo para o público e a imprensa. Foi
hostilizada sem dó e nem piedade. Outra situação que o filme tenta esclarecer é
a demissão no Teatro Metropolitan, nos EUA. Volf dá voz e apresenta a versão diferente
da cantora sobre estes episódios nos bastidores com revelações pouco divulgadas
na época. A recuperação aconteceu parcialmente, como ela mesmo diz, a família
que imaginava nunca aconteceu, porque o destino guinou para a carreira iniciada
precocemente aos 13 anos.
O realizador foca e aborda com farto material o
relacionamento de Callas com Aristóteles Onassis. Uma paixão louca que a fez se
divorciar do marido, num casamento fracassado, sem apoio e com um viés voltado
para as finanças. Renunciou a cidadania norte-americana para se casar com o
todo poderoso magnata grego, mas foi trocada pela viúva Jacqueline Kennedy.
Outra decepção traumática, ao saber pelos jornais do casamento de sua grande
paixão com a não menos linda “Jackie”. Com uma saúde já debilitada acabou por
mergulhar numa depressão profunda, que foi curada com o tempo, se reconciliou
com Onassis para ficarem bons amigos. O filme aborda a dualidade entre Maria, uma
mulher frágil e ao mesmo tempo ousada para época, quando se divorcia, enfrenta
as críticas de uma sociedade conservadora numa relação mantida ainda casada com
um homem famoso, mas tenta sustentar a imagem de Callas num paradoxo que a leva
para crises existenciais e que afetará a carreira profissional. São escolhas
difíceis que a marcou pela trajetória de vida, como uma saga. Ao se distanciar
e ser incapaz de unir estes dois aspectos cruciais, surgirão os problemas com
cobranças severas, bem retratadas como elemento central deste extraordinário documentário.
Maria Callas- Em Suas
próprias Palavras é um retrato pungente documentado da vida amarga de uma
estrela e sua fervorosa vocação como cantora lírica, com todo seu magnetismo e
brilho pessoal inigualável no universo cultuado da ópera, dito por muitos como
entediante, porém quando não apresentada de forma correta, afirmava sem
titubear a artista. Ainda teve participação expressiva na incursão pelo cinema,
ao ser protagonista em Medeia (1969),
filme de Pier Paolo Pasolini, um de seus grandes amigos pessoais. Mas gostava
mesmo era de interpretar no palco e soltar a voz lírica nas apresentações que a
consagraram. Uma pessoa sofrida, mas que acreditava em Deus, nunca desistia, e
com muita força de vontade voltava para brilhar. Determinada a lutar contra o
conservadorismo de uma época para uma mulher moderna que queria ser livre, imprimindo
muita coragem para enfrentar as rígidas
regras morais daqueles anos.
Volf não tem o intuito de colocar julgamentos morais às
atitudes no documentário. Transparece um relato conflitado entre os ideais
feministas na defesa da mulher de espírito libertário, sem amarras, e com
poucas raízes de vínculos afetivos maternais, embora fosse seu desejo íntimo. Havia
um contraste na falta de um diálogo harmonioso entre a mulher Maria e a soprano
Callas dedicada à ópera como elementos de amor e paixão pela vida e pela
profissão, e, pelo que fez e deixou de fazer, que se fundiriam como uma
simbiose, dizia: "Quem escutar todas as minhas interpretações vai me
compreender por inteiro". Um filme sobre a trajetória marcada por
ensinamentos reflexivos e existenciais nada convencionais num passeio pela
história de La Divina e seu fascínio.
Uma ode para os apreciadores da pura arte na companhia saborosa de uma genial
artista com suas dolorosas lacunas pela vida nas armadilhas do destino neste tributo
arrebatador.
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