Reminiscências
Arrebatadoras
O cineasta mexicano Alfonso Cuarón é reconhecido pelas obras
E Sua Mãe Também (2001), Filhos da Esperança (2006), e os
hollywoodianos Harry Potter e o Prisioneiro
de Azkaban (2004) e Gravidade (2013).
Agora em seu último longa-metragem, Roma,
em que dirigiu, escreveu, produziu, montou e foi o responsável pela fotografia,
um dos filmes mais comentados e aguardados do ano, que por méritos merece todo
o clamor de púbico e da crítica. Por questões de logística de lançamento nos
cinemas, foi barrado no Festival de Cannes deste ano, após decisão da
organização de excluir produções da Netflix da competição. Mas no Festival de
Veneza logrou êxito ao abocanhar o Leão de Ouro de Melhor Filme. Conseguiu ser
incluído na programação do Festival de Toronto, e desponta como um dos fortes favoritos
a ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro de 2019, como representante do
México, além de ser indicado em três categorias para o Globo de Ouro do próximo
ano.
O título do drama memorialista não tem relação com a capital
da Itália, porém a um bairro de classe média da cidade do México, próxima do
aeroporto, que serve de cenário entre 1970 a 1971, para ser relembrada e contada as
reminiscências da infância e o cotidiano dos familiares do realizador, através de
uma família observada com acuidade de maneira silenciosa pela carismática Cleo
(Yalitza Aparício- de ótima interpretação), que trabalha como babá e doméstica
de confiança extrema, vive e divide um quarto pequeno com a irmã, também empregada.
A protagonista foi inspirada na vida de Liboria Rodríguez (Libo), uma espécie de
ouvidora do casal pelas passagens atritadas nas relações pessoais que envolvem
a infância do diretor, nos remete para o nacional Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert. Também há algumas
semelhanças com o documentário intimista brasileiro Santiago (2007), de João Moreira Salles, visto pela ótica do
mordomo da família.
A produção se passa durante um ano, onde diversos
acontecimentos inesperados afetam a vida de todos os moradores daquela casa, que
dará origem a várias mudanças comportamentais, coletivas e pessoais. O machismo
é cutucado com ironia, tanto na figura do marido pouco presente, como pelo
namorado que rejeita a paternidade e ainda faz ameaças à doméstica. A gravidez
e as consequências nefastas que irão advir, tais como o terremoto ocorrido
durante a ida de Cleo ao hospital, soa como uma metáfora para o desenlace do
parto. O protesto dos estudantes nas ruas com o namorado da personagem central
em luta que acaba em mortes beirando o fuzilamento, também é outro presságio de
mau agouro. O carro Ford Galaxy enorme que mal entra na garagem e a vida da
patroa que terá de se reinventar após a separação, diante do choro compulsivo
dos quatro filhos menores inconsolados são os sinais das mudanças iminentes e devastadoras.
Não há pregação de falso moralismo entre patrões abastados e os subalternos
sofridos, muito menos o panfletarismo recorrente nestas relações próximas em realizações
menores.
A cena do mar revolto que quase traga a menina, no contraste
novamente entre a vida e a morte em disputa para o renascer da esperança,
brilhantemente filmada com a câmera entrando dentro d’água, sem mostrar a
criança, cria-se um clímax de suspense com a expectativa agoniante. São tomadas
longas de tempo e espaço no enquadramento em oposição aos movimentos panorâmicos,
para cima, para baixo e para os lados, nos quais a câmera gira sem se deslocar.
Por isto, Roma é um filme soberbo com
tintas marcantes de influência da escola italiana do neorrealismo, a começar
pela deslumbrante fotografia em preto e branco como elemento de desglamourizar
as delicadas e efervescentes mazelas do dia a dia. Atinge no âmago pelo exemplar
tom melancólico das situações que perdem a lucidez e ingressam nas conturbadas
crises familiares, além da crítica social colocada em xeque pelo cineasta. Um
retrato fiel de uma sociedade em transformação com ingredientes amargos dos
novos tempos através da impactante narrativa com alta dose de densidade. Neste
aspecto está bem evidente a presença dos grandes mestres Roberto Rossellini em Roma, Cidade Aberta (1945), bem como
Luchino Visconti com Rocco e os Seus
Irmãos (1960) e Vittorio De Sica em Ladrões
de Bicicleta (1948).
Há outro aspecto relevante da produção que foi ressaltado
pelo designer de produção Eugenio Caballero, ao revelar que 70% da mobília da
casa no filme é oriunda da própria família do realizador, além de serem
recriadas ruas e até uma avenida de acordo com as suas memórias, como a da cena
em que as crianças caminham até o cinema, bem como as cabeças de cachorros
empalhadas. Cria-se uma semelhança de realismo puro e próximo de um passado
rememorado. Os sons de animais como os cães sempre presentes, os pássaros, o
cotidiano com pouco barulho, exceto os aviões, daquele bairro suburbano, são fatores
que contribuem para uma extraordinária referência do silêncio emblemático e da
solidão aterradora dos personagens, que traz algumas similitudes com o drama O Som ao Redor (2012), de Kleber
Mendonça Filho.
Pelas abordagens profundas, sutis e sensíveis que são
estampadas na telinha (na telona ficaria ainda melhor), Roma é um estupendo drama de intimismo pelas memórias do passado
sobre um cotidiano reminiscente que tem na complexidade familiar as
consequências marcantes que subsistem como forma para a elaboração do
diagnóstico desta mini obra-prima de Cuarón. Dá para dizer, sem medo de errar,
que é a realização mais madura, pessoal, intimista e completa, que beira ao
épico, para atingir o ápice de uma carreira em evolução através desta fascinante
autobiografia. Embora não seja um filme fácil e de rápida digestão,
há um falso hiato entre uma produção palatável na relação com o grande público.
Porém, seu nível de autonomia estimulada com os adeptos da cinefilia é elogiável
pela concisão e o grau de narrativa até o alcance invejável na essência que se
propõe como estabelecida no diálogo entre o espectador e o diretor. Um achado
ímpar e inquestionável nesta realização em tempos de escassez de obras
comprometidas com a cinematografia e seus objetivos de desalienação como meio
de expressão e comunicação. Imperdível para quem aprecia singularidades com
ênfase na essência pura colocadas neste painel arrebatador, que se insere na
listagem dos dez melhores de 2018.
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