quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Roma



Reminiscências Arrebatadoras

O cineasta mexicano Alfonso Cuarón é reconhecido pelas obras E Sua Mãe Também (2001), Filhos da Esperança (2006), e os hollywoodianos Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (2004) e Gravidade (2013). Agora em seu último longa-metragem, Roma, em que dirigiu, escreveu, produziu, montou e foi o responsável pela fotografia, um dos filmes mais comentados e aguardados do ano, que por méritos merece todo o clamor de púbico e da crítica. Por questões de logística de lançamento nos cinemas, foi barrado no Festival de Cannes deste ano, após decisão da organização de excluir produções da Netflix da competição. Mas no Festival de Veneza logrou êxito ao abocanhar o Leão de Ouro de Melhor Filme. Conseguiu ser incluído na programação do Festival de Toronto, e desponta como um dos fortes favoritos a ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro de 2019, como representante do México, além de ser indicado em três categorias para o Globo de Ouro do próximo ano.

O título do drama memorialista não tem relação com a capital da Itália, porém a um bairro de classe média da cidade do México, próxima do aeroporto, que serve de cenário entre 1970 a 1971, para ser relembrada e contada as reminiscências da infância e o cotidiano dos familiares do realizador, através de uma família observada com acuidade de maneira silenciosa pela carismática Cleo (Yalitza Aparício- de ótima interpretação), que trabalha como babá e doméstica de confiança extrema, vive e divide um quarto pequeno com a irmã, também empregada. A protagonista foi inspirada na vida de Liboria Rodríguez (Libo), uma espécie de ouvidora do casal pelas passagens atritadas nas relações pessoais que envolvem a infância do diretor, nos remete para o nacional Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert. Também há algumas semelhanças com o documentário intimista brasileiro Santiago (2007), de João Moreira Salles, visto pela ótica do mordomo da família.

A produção se passa durante um ano, onde diversos acontecimentos inesperados afetam a vida de todos os moradores daquela casa, que dará origem a várias mudanças comportamentais, coletivas e pessoais. O machismo é cutucado com ironia, tanto na figura do marido pouco presente, como pelo namorado que rejeita a paternidade e ainda faz ameaças à doméstica. A gravidez e as consequências nefastas que irão advir, tais como o terremoto ocorrido durante a ida de Cleo ao hospital, soa como uma metáfora para o desenlace do parto. O protesto dos estudantes nas ruas com o namorado da personagem central em luta que acaba em mortes beirando o fuzilamento, também é outro presságio de mau agouro. O carro Ford Galaxy enorme que mal entra na garagem e a vida da patroa que terá de se reinventar após a separação, diante do choro compulsivo dos quatro filhos menores inconsolados são os sinais das mudanças iminentes e devastadoras. Não há pregação de falso moralismo entre patrões abastados e os subalternos sofridos, muito menos o panfletarismo recorrente nestas relações próximas em realizações menores.

A cena do mar revolto que quase traga a menina, no contraste novamente entre a vida e a morte em disputa para o renascer da esperança, brilhantemente filmada com a câmera entrando dentro d’água, sem mostrar a criança, cria-se um clímax de suspense com a expectativa agoniante. São tomadas longas de tempo e espaço no enquadramento em oposição aos movimentos panorâmicos, para cima, para baixo e para os lados, nos quais a câmera gira sem se deslocar. Por isto, Roma é um filme soberbo com tintas marcantes de influência da escola italiana do neorrealismo, a começar pela deslumbrante fotografia em preto e branco como elemento de desglamourizar as delicadas e efervescentes mazelas do dia a dia. Atinge no âmago pelo exemplar tom melancólico das situações que perdem a lucidez e ingressam nas conturbadas crises familiares, além da crítica social colocada em xeque pelo cineasta. Um retrato fiel de uma sociedade em transformação com ingredientes amargos dos novos tempos através da impactante narrativa com alta dose de densidade. Neste aspecto está bem evidente a presença dos grandes mestres Roberto Rossellini em Roma, Cidade Aberta (1945), bem como Luchino Visconti com Rocco e os Seus Irmãos (1960) e Vittorio De Sica em Ladrões de Bicicleta (1948).

Há outro aspecto relevante da produção que foi ressaltado pelo designer de produção Eugenio Caballero, ao revelar que 70% da mobília da casa no filme é oriunda da própria família do realizador, além de serem recriadas ruas e até uma avenida de acordo com as suas memórias, como a da cena em que as crianças caminham até o cinema, bem como as cabeças de cachorros empalhadas. Cria-se uma semelhança de realismo puro e próximo de um passado rememorado. Os sons de animais como os cães sempre presentes, os pássaros, o cotidiano com pouco barulho, exceto os aviões, daquele bairro suburbano, são fatores que contribuem para uma extraordinária referência do silêncio emblemático e da solidão aterradora dos personagens, que traz algumas similitudes com o drama O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho.

Pelas abordagens profundas, sutis e sensíveis que são estampadas na telinha (na telona ficaria ainda melhor), Roma é um estupendo drama de intimismo pelas memórias do passado sobre um cotidiano reminiscente que tem na complexidade familiar as consequências marcantes que subsistem como forma para a elaboração do diagnóstico desta mini obra-prima de Cuarón. Dá para dizer, sem medo de errar, que é a realização mais madura, pessoal, intimista e completa, que beira ao épico, para atingir o ápice de uma carreira em evolução através desta fascinante autobiografia. Embora não seja um filme fácil e de rápida digestão, há um falso hiato entre uma produção palatável na relação com o grande público. Porém, seu nível de autonomia estimulada com os adeptos da cinefilia é elogiável pela concisão e o grau de narrativa até o alcance invejável na essência que se propõe como estabelecida no diálogo entre o espectador e o diretor. Um achado ímpar e inquestionável nesta realização em tempos de escassez de obras comprometidas com a cinematografia e seus objetivos de desalienação como meio de expressão e comunicação. Imperdível para quem aprecia singularidades com ênfase na essência pura colocadas neste painel arrebatador, que se insere na listagem dos dez melhores de 2018.

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